quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Filipe Chinita - ontem, na 2

* Filipe Chinita
 
ontem na 2
- a
agrária revolução
nos campos do alentejo e ribatejo -
.
imperdível...

(mas)
mesmo assim...
contado/a de uma margem... de certa.maneira.

que eu há já muito! o/a havia visto
.
no entanto
a reforma agrária - que 'revolução foi!' -
foi (ainda)... mais. muito mais!
do que mostrado
nos foi
e
em todos
os planos da vida
do.s humano.s
e
se visto/a
pelo olhar.pele.sangue.e mente - ainda hoje -
de quem a 'fez' e a viveu...

antes... e depois de (ela)
ter acontecido

quando
de sol a sol...
passámos à heróica luta
pela oito horas de trabalho.no.s campo.s

então... nem
se fala...
.
fj
11.07
19.11.2020

foi
simplesmente
avassaladora de mudança de mundo.s
e
mentalidade.s de homens e mulheres

e por isso... - tal era a sua exemplar
força revolucionária.
para todo
o país -

a
golpearam
de todas as formas

- incluso (de) contra
a.s própria.s leis e constitução! -

e
enfim!
a mataram

assassinando-a
.
em casquinha e caravela.quais novas catarinas

- não por acaso - gente da minha gente
da minha aldeia/vila
de escoural

2020.11.18

Manuel Augusto Araújo - Pode a Esquerda renunciar à Cultura?

* Manuel Augusto Araujo
2020.11.25

Quando já nada me indignar (e só então) terei começado a envelhecer – André Gide

O meu amigo António Cabrita, a quem enviei a carta de despedida aos meus colegas da Câmara Municipal de Setúbal, fez o favor de a publicar na Revista Caliban antecedendo-a de um texto muito incisivo, como é seu timbre.

Ilustrou-a com a imagem dos Paços do Concelho de Setúbal em que está impressa mais uma brutalidade de iniciativa da Dores Meira. Além da tinta utilizada ser completamente inadequada a um edifício de qualquer centro histórico, a cor deve fazer o Raul Lino, autor do projecto, dar voltas no túmulo. Um dia alguém com um mínimo de cultura e bom senso terá que as corrigir. Agora mais uma selvajaria feita na Casa da Cultura e a proclamação de Setúbal Cidade Taurina, que remendos mal colados apressadamente não disfarçam

. São mais algumas das muitas iniquidades a acrescentar ao catálogo do Bestiário dessa prepotente e ignorante personagem.

Dores Meira é uma populista suburbana, uma pequeno-burguesa alumiada por deslumbramentos com rascas tiques dondocas. Os seus grandes desvios de direita são contumazes. Vão da concordância com algumas medidas dos governos do PS e até do PSD-CDS, em dissidência com as posições do PCP, cedências a grandes empresas sediadas em Setúbal travadas à beira do precipício, conflitos constantes com as estruturas sindicais alinhando com políticas reaccionárias, um comportamento na autarquia reiteradamente pidesco de que até faz gala, o público e repetido apoio a personagens como Tomás Correia nas eleições e assembleias do Montepio, são algumas dessas evidências. Na Câmara de Setúbal o que de bom foi e é feito deve-se sobretudo ao trabalho de outros de que ela arrecada os louros. O que de bom há de arte pública em Setúbal nenhuma é de iniciativa dela e do seu adorado decorador.

A Dores Meira é uma fraude, um embuste bem emplumado. Reconheça-se que o que lhe falta em inteligência, cultura e saberes sobra-lhe em esperteza e neste mundo sem dignidade os chicos-espertos são os que melhor caminho fazem. O seu fundo ideológico é o que colhe nas peregrinações a Fátima alumbrada com os pastorinhos, as aparições, os milagres, as revelações. Sobre esta personagem, o seu perfil, atitudes e decisões é muito o que se atira para debaixo do tapete por oportunismo político em concessão aos resultados que obtém por um desbragado populismo sempre num dá cá o pé toma lá o pé vicioso. Isto acaba sempre por ter um custo, já conhecido com outros personagens e em diversas circunstâncias que, mais tarde ou mais cedo de um ou de outro modo, se irá pagar

 

Quem ignora efectivamente que os lobos andam em alcateia, perguntava Deleuze, e a inquietação não nos deve largar o pé, porque não é incomum que os lobos se queiram dissimular de cães nossos amigos.

Infelizmente, no reino da Esquerda aflora como noutros quadrantes o pior dos cinismos. Tempos houve em que ser de Esquerda implicava uma moral e uma cultura, mas os piores vícios institucionais infiltraram os partidos e vemos como o mau exemplo de uma “política da indiferença” contagiou a acção política. Aí avançam os medíocres, e com eles apodrecem os ideais.

Quando abandonamos qualquer pauta para os valores na cultura e a exigência da dignidade no alvor das novas sensibilidades e seguimos a estratégia de esvaziamento do mercado, é de admirar que gradualmente a Esquerda perca votos?

Como achar que é aceitável, por exemplo, que em Setúbal, na Praça José Afonso, um partido de Esquerda acolha em época eleitoral o espectáculo de um cantor kitsch como o Toy? Não faz doer a alma, uma tão grande rendição à venalidade mais inconsciente? É um exemplo do desnorte que chegou às Câmaras e das más escolhas dos Partidos nos seus cabeças-de-listas, esses novos cínicos que “sabem sempre do que povo gosta”.

É de Calvino, um líder religioso muito antigo, a seguinte observação: «os governantes de um povo devem envidar todo o esforço a fim de que a liberdade do povo pelo qual são responsáveis não desvaneça de modo algum em suas mãos. Mais do que isso: quando dela descuidarem, ou a enfraquecerem, devem ser considerados traidores da pátria.» A bondade deste postulado não deve ser encarado como ingénuo e é exigível que seja reivindicado como fundamento. Se associarmos este pronunciamento às políticas culturais de tantas câmaras ligadas a partidos de Esquerda ficamos deprimidos com a facilidade com que afinal também se acostam a derivas populistas e como isso encurta a dignidade, o primeiro plinto para a consciência livre.

Não há ressalvas para aqueles que se abandonam à oportunidade e fazem do populismo o cerne do seu poder — sejam de Direita ou de Esquerda. Quem nadifica nadificado fica.

Há coisas irrenunciáveis no projecto de Esquerda e uma das mais perenes é a reconstrução da justiça por meio da qualidade da cultura que se promove e cultiva — são cegos aqueles líderes camarários que se entregam cegamente à facilidade e aos baixos ditames do mercado, em nome de uma ignorância que o actual momento político já não consente.

É preciso fazer a crítica e a rectificação dos modelos.

O que aconteceu na Câmara de Setúbal nos últimos anos, como nos mostra o retrato pungente e pouco menos que indignado que dela faz Manuel Augusto Araújo é um bom exemplo dos maus exemplos em que a Esquerda se deixa encurralar.

Mas deixemos que esta Carta de Despedida com que Manuel Augusto Araújo reagiu à sua dispensa da vereação cultural da Câmara fale por si. Leiam-na.

António Cabrita



e o exigente espírito de Bocage continua a ser traído

UMA BREVE CARTA PARA UM LONGO ADEUS

Caros colegas, amigos e camaradas

A presidente da Câmara de Setúbal , Dores Meira, e o vereador da Cultura, Pedro Pina, decidiram que sou um excedentário e que a autarquia dispensa a existência de um assessor cultural por, segundo eles, ser desnecessário. Julgo que com todos trabalhei bem e de muitos com quem trabalhei fiquei amigo. Obrigado a todos. O mesmo não poderei dizer de quem ocupa os mais altos cargos executivos relacionados com a cultura.

Durante estes anos tenho a consciência de ter cumprido com o que me foi possível, dado o contexto existente. A maioria dos projectos que delineei não conseguiram ultrapassar a espessura óssea que protege a noz de massa cinzenta encerrada naquelas cabeças dos mandantes em Setúbal. Alguns realizaram-se com êxito. Outros ainda, como no ano passado o Festival de Poesia “O Som Da Tinta”, de que com a Maria João Cantinho elaborei o programa a quem muito agradeço a colaboração, e o assinalar dos 150 anos da Abolição da Escravatura no território sob administração portuguesa, foram roídos até não ficar quase nada, mau grado o empenhamento da Mónica Duarte e da Teresa Neto, que salvaram o que era possível salvar, que foi muito pouco, enquanto outros, como um Encontro Nacional sobre Cultura, nem sequer foram considerados. Os propostos para 2020, recuperando alguns adiados, outros erodidos e um de grande exigência e que tinha a ambição de ter impacto nacional, foram detalhados e enviados para avaliação. Devem ter caído da corda bamba do funambulismo cultural.

Do que consegui fazer — o rol apesar de tudo não é curto — refiro, em particular, O Museu está na Rua, no Bairro da Bela Vista, o ter conseguido que o escultor Virgílio Domingues fizesse uma importante doação das suas obras à cidade de Setúbal, o ter proposto que os escultores Sérgio Vicente e João Duarte fizessem obra pública — fiz mesmo uma montagem de esculturas de João Duarte a situar em Setúbal que apresentei à Dores Meira, numa reunião em que participou a Ana José Carvalho, na altura chefe de Divisão da Cultura, a presidente Meira nem sequer sabia que existia um escultor João Duarte — que se distinguem da banalidade que por aí abunda, quando não são mesmo coisas obscenas e culturalmente abjectas, como os chocos ou aquela decoração da entrada dos Paços do Concelho que devem deixar roxas de inveja as mais bem sucedidas madames blanches. Dirão que é o que muita malta gosta. Haverá quem goste, também gosta das rosinhas, dos barreiros, dos gouchas, dos famosos, dos mais reles aos mais polidos. É a degradação generalizada do gosto que abre caminho aos conservadores e ao pior reaccionarismo, mas uma câmara, sobretudo uma câmara comunista, não pode nem deve alimentar e incentivar populismos rasteiros, as predilecções dos beócios. Contribuir para a corrupção do gosto e do espírito crítico acaba sempre por ter custos elevados. Como escreveu Albert Camus, “tudo o que degrada a cultura encurta o caminho para a servidão”. O aviltamento que se promove a médio, mesmo a curto prazo, contribui para o crescimento da direita. Só por oportunismo e estupidez é que os filisteus não o percebem, já que confundem que contrariar a escória é elitismo .

Dos muitos projectos que foram parar ao caixote do lixo há dois que me ferem particularmente. O primeiro, praticamente no princípio de vir para cá, quando Setúbal integrou o Clube das mais Belas Baías do Mundo. Propus e elaborei o projecto de se realizar um Festival de Literatura de Viagens em que as viagens muitas vezes são pretexto de grandes dramas humanos. Quando falei no projecto à Dores Meira, então vereadora da Cultura, apercebi-me da sua perplexidade. Apesar disso, pus mão à obra, falei com alguns escritores e editores meus conhecidos, que se entusiasmaram com o projecto. Detalhei-o entregando para avaliação da vereadora. Embati num tremendo silêncio. Quando voltei à carga disse que aquilo não interessava. Devia ter imediatamente percebido que para ela, Lord Jim, A Ilha do Tesouro, Ultramarina, Peregrinação, Pela Estrada Fora, O Coração nas Trevas, Viagens na Minha Terra, As Cinco Semanas em Balão, Moby Dick, na sua imensa diversidade, lhe eram completamente desconhecidos, um desconhecimento que se estende mesmo aos Guide Bleu da Hachette ou os de Portugal do Raul Proença. Para aquela ignorante, com tiques de snobeira suburbana, literatura de viagens são os guias que se vendem nos quiosques da esquina.

O outro foi quando a autarquia adquiriu o Quartel do 11 e se chegou a pensar aí instalar a Divisão de Cultura. Obtive uma planta, fiz uma distribuição pelos espaços sem grandes alterações à estrutura, para minimizar custos. Nessa planta — deve estacionar numa gaveta qualquer se é que não foi já destruída — figuravam uma galeria de arte e um auditório onde até seriam possíveis realizar espectáculos de pequeno formato. Mais tarde a Câmara chega a acordo com o Turismo de Portugal para aí se instalar uma escola de hotelaria. A arquitecta encarregada do projecto foi Teresa Pontes que, enquanto fazia levantamento do existente, estabeleceu vários contactos para apresentar um programa de ocupação de espaços. Uma dessas reuniões foi com a Ana José Carvalho e comigo. Expus-lhe a ideia da galeria e do auditório. A galeria a ser gerida autonomamente pela Câmara, o auditório partilhado entre a Câmara e a escola de hotelaria. Aceitou-as imediatamente, passou à prática. Deve ter ficado algo surpreendida quando a autarquia nomeia o Luís Liberato e o José Luís Catalão para acompanharem a obra da galeria. Talvez por isso teve a delicadeza de, nalgumas das vezes em que visitou a obra, dirigida no terreno pelas arquitectas Karoline e Lígia, me convidar para a acompanhar. Nesses encontros surgiu-nos a ideia de a primeira exposição a realizar na galeria ser sobre o projecto de reabilitação do Quartel do 11, a sua relação com o Centro Histórico de Setúbal, contextualizar esses conteúdos com as questões mais gerais da reabilitação dos edifícios históricos, organizando-se um amplo debate sobre essa problemática com a participação da Ordem dos Arquitectos. Iniciaram-se trabalhos nesse sentido. Na câmara, as dras. Maria Francisca Ribeiro e Ana Catarina Stoyann começaram a recolher elementos sobre o centro histórico de Setúbal. A Teresa Pontes e eu, no atelier dela, a tratar do guião da exposição e das questões a propor e discutir com a Ordem dos Arquitectos. Subitamente, tudo foi suspenso e descartado. A presidente, com a prepotência e a incultura que a caracterizam, tinha decidido organizar uma exposição muitíssimo mais relevante: a Vida e a Obra de José Mourinho!!! exposição que inaugurou aquela galeria de arte. A cabal demonstração do gabarito intelectual e cultural dessa gente e do populismo mais rasca.

Pouco depois Pedro Pina chega à câmara, é-lhe atribuído o pelouro da cultura e tive a esperança, ainda que bruxeleante, de alguma coisa mudar. Enviei-lhe mail com alguns projectos e algumas mudanças estruturais no pelouro da cultura, que considerava e continuo a considerar nucleares. As mais relevantes eram integrar as bibliotecas no pelouro da cultura; assumir a direcção das galerias municipais no referente às exposições, aliás projecto e plano amplamente discutido e aprovado no Departamento antes da inauguração da Galeria do 11, discussão inútil como o tempo transcorrido comprovou. Isso vinha na sequência das exposições nos Claustros do Palácio Frixel do IPS, colaboração entre a CMS/IPS que coordenei e teve impacto. Destaquem-se, entre as realizadas, as de Paula Rego, Bartolomeu Cid dos Santos, José Santa Bárbara, Teresa Dias Coelho, Isabel Sabino. Libertar a Divisão da Cultura de acções que são sobretudo entretenimento, em que a cultura é mais que residual, de que o exemplo mais flagrante são as marchas populares que deveriam ser produzidas pelo turismo e afins e não pela Cultura. Encontrei o Pina, já impante como vereador da Cultura, que afirmou nada ter recebido. Reenviei o mail, a mesma resposta. Esquece o Pina que o gmail tem uma coisa chamada mailtrack que comprova a recepção dos mails, embora lhe dê o benefício da dúvida de não ter lido o mail por ter ficado encalhado nos fradelins da sua adjunta.

Pouco tempo decorrido, quando da finalização de O Museu está na Rua, projecto em que só os pormenores finais, insignificantes para o projecto, aconteceram no princípio do mandato Pina, houve uma sessão que assinalou o seu término e que precedeu a visita à obra acabada. Foi exibido um pequeno vídeo onde eu, que tinha desenhado a ideia e acompanhado o projecto criativa e brilhantemente realizado por João Limpinho, tinha sido rasurado. Mais, o vereador Pina tinha nomeado para coordenadora do projecto a sua adjunta Ana Luísa Domingues, uma presunçosa e pretensiosa personagem de saberes colhidos no google e na wikipédia, que não tinha percebido nada de nada de O Museu está na Rua, a obra e os objectivos, como demonstrou na exibição de um parvóide power-point na Casa da Baía. Quando se pensou instalar um Centro de Interpretação de O Museu está na Rua, fiz um texto justificativo teorizando sociológica e esteticamente as suas bases, tem cerca de cem páginas, texto que até chegou a ser enviado ao editor da Abysmo, João Paulo Cotrim, para ser publicado e integrado nesse Centro. Deve andar por aí a caminho de algum contentor.

Confrontado com esse espectáculo, ausentei-me sem aviso o que, por um azar dos távoras, pelo meu telemóvel ter ficado sem bateria do que só dei conta já em casa em Lisboa, provocou algum alarido. A conclusão do Pina é que tenho mau feitio. É um facto. Tenho mau feitio perante a prepotência, a videirice, a ignorância, o oportunismo, a rasquice, o populismo, as mentirolas grandes ou pequenas.

O segundo sinal foi quando, pouco tempo antes de ser inaugurada a exposição das obras de Virgílio Domingues, no primeiro andar da Galeria Municipal, ter detectado que três esculturas tinham desaparecido. Rebobinando. As esculturas do Virgílio Domingues estavam já há muito tempo estacionadas num armazém em Azeitão. Enquanto não se encontrava um espaço para as colocar definitivamente, fiz mesmo

algumas propostas para exposições parciais em locais possíveis para dar a conhecer parte do espólio cedido à CMS. Nos impasses fizeram-se algumas exposições, uma primeira na Casa da Baía, outras duas por cedência temporária à Câmara da Amadora e à galeria do SPGL. Estas duas a pedido expresso do Virgílio Domingues, exasperado por as esculturas não serem exibidas — entre a entrega das obras à autarquia e a sua instalação na Galeria Municipal decorreram cinco anos! — mas sempre e só com as esculturas sujeitas a rigoroso inventário e comprovativos de seguro à saída e à reentrada. Aconteceu mesmo que, no caso da cedência à C.M. Amadora, o primeiro transporte retornou sem nenhuma escultura porque traziam a listagem das esculturas mas tinham-se esquecido do comprovativo do seguro, não se aceitaram as reiteradas garantias telefónicas. O Liberato, director do Departamento, decidiu e bem transferi-las para outro armazém na Bela-Vista, onde existiam melhores condições de segurança. Quando soube, fui verificar como estavam depositadas. Estavam lá todas, bem distribuídas num espaço autónomo em relação ao restante armazém. A segurança era garantida por um fiel de armazém. Sucede, quando aconteceu o seu desaparecimento, que o fiel de armazém tinha sido removido por ordem do Liberato que, com essa decisão, assumiu a responsabilidade do que pudesse suceder. É o mínimo que a melhor boa vontade lhe pode conceder sem, no entanto, deixar de registar a ligeireza, a leviandade de tal, decisão dado o que ali estava estacionado, mas para ele esculturas, candeeiros, latas de tinta, etc., devem ter equivalente valor. O armazém estava sem qualquer controlo. Pós-inauguração, passados quase seis meses sem novas nem mandados, o Virgílio, que delicadamente se absteve de referir o facto na inauguração, escreve à presidente para saber que medidas tinham sido tomadas para se conhecer o paradeiro das esculturas. Aqui del-rei, o Pina e o Liberato foram tirar o sucedido debaixo do tapete. O caso foi parar à Judiciária, um pró-forma para se procurarem ilibar dado o tempo decorrido. Face a negligência tão grave da autarquia o Virgílio poderia se quisesse, disso foi alertado por várias vias, colocar um processo à Câmara para ser indemnizado, o que nunca iria fazer. Nada paga o desaparecimento de uma obra de arte. Se a Mona Lisa do da Vinci, é subtraída ao Louvre, o Nascimento de Vénus do Boticelli aos Uffizi, As Les Demoiselles de Avignon de Picasso ao Moma, que interessam as indemnizações? Nada. Nada paga o desaparecimento de uma obra de arte. O caso aqui era o da responsabilidade directa e indirecta do Liberato por ter retirado segurança, qualquer que fosse, ao armazém o que facilitou aquela ocorrência. Abriram um inquérito interno para se irresponsabilizarem, se possível tentar entalar alguém. Até hoje nada de relevante sucedeu. Há responsáveis, pelo menos morais, pelo sucedido. Fora um outro funcionário da autarquia e seria objecto de rigoroso processo disciplinar.

Para terminar e não me alongar numa lista que poderia ser bem longa, a Dores deve-me um favor, não é pequeno. No centenário do Lopes-Graça houve uma reunião para definir um programa comemorativo. Seis elementos da Associação Lopes-Graça, a Dores e eu. A Dores entrou em grande estilo afirmando a sua admiração pelas CANÇÕES ERÓTICAS DO LOPES-GRAÇA!!! Silêncio, olhares constrangidos nos outros sete participantes em que se discutia uma proposta elaborada pelo Alexandre Branco Weffort, a que dei algumas contribuições, de gravação da obra coral do Lopes-Graça, projecto a ser liderado pela Câmara de Setúbal, que a Dores anulou porque não admitia que os coros de Setúbal fossem seleccionados em função do reportório e da tipologia dos coros pelos maestros José Robert, José Luís Borges Coelho e Alexandre Branco. Seria ela, com toda a sua ciência musical, quem decidiria a apuração dos coros, obviamente para distribuir benesses, o que é mais que risível sobretudo se se soubesse de outro sucesso de que tive, por acaso, conhecimento. Fiz parte, durante uma dezena de anos, de um júri de atribuição de bolsas de artes visuais da Fundação Gulbenkian, conhecia muita gente de outros departamentos da FCG. No intervalo de uma dessas reuniões fui abordado por um dos directores do sector da música que, entre o assombrado e o sarcástico, me inquiriu do que se passava em Setúbal. O caso era que a Dores tinha ido à FG angariar apoios para o Concurso de Canto Lírico Luísa Todi. No decorrer da conversa esse director perguntou-lhe porque é que a Câmara de Setúbal/Cultura não tinha dado resposta a uma oferta, já com um ano, de dois concertos da Orquestra da Gulbenkian em Setúbal. A resposta da Dores deixou-o siderado: em Setúbal não havia público para esse género de música (sic)!!! Caramba, era aquilo uma vereadora da Cultura!!! Mais tarde teve um raro acesso de bom senso convidando o João Pereira Bastos para dirigir o FLT embora com o propósito de “Setúbal ser Capital do Peixe e da Música ” (sic).

Retornando às Canções Eróticas do Lopes-Graça. Com tanta gente naquela reunião, naturalmente afirmação tão altissonante ultrapassou as paredes da sala. Umas semanas depois fui assediado por dois jornalistas, um de um diário outro de um semanário, que me pediam que a confirmasse. Fiz tudo para tirar a espoleta da bomba, sem nunca ter a certeza de o ter conseguido. Obviamente avisei quem devia avisar caso se desse a explosão. Tive sucesso sem saber bem como. A Dores deveria ter ficado devedora de agradecimento por a ter libertado desse ónus. Deve ter ficado desagradada, mesmo furiosa, por a ter impedido de ser, com as Canções Eróticas do Lopes-Graça, quiçá mais célebre que Santana Lopes e os Concertos de Violino de Chopin.

Em conclusão, para não me alongar nesta listagem, dado o perfil intelectual, cultural e político destes dois edis, que é nulo ou muito próximo do zero, passarem-me a ferro é natural. Podem alegar que pouco contribuí para as políticas culturais, uma inexistência em Setúbal tal como no país. As Divisões de Cultura praticamente são variantes das agências de promoção de espectáculos afirmando estar a valorizar a formação e a captação de novos públicos, consigna que atravessa o país de lés a lés e que de tanto ser repetida perdeu qualquer significado. As excepções, as raras excepções de algumas iniciativas, só confirmam a regra. As outras são biombo para uma sucessão de entretenimentos ditos culturais, uns melhores outros piores, uns com mais substância cultural outros nem por isso, outros em que a alienação subjacente, na melhor das hipóteses, é disfarçada com tiques modernaços, segue a lógica perversa das modas das indústrias culturais e criativas da gestão das artes, em que não se promove ou só se promove muito residualmente a humanização e a socialização dos sentidos, são de pouca memória cultural e política. Globalmente alienam as artes e a cultura, numa sucessão de espectáculos e eventos que tanto podem ser aqui como numa câmara PS, PSD ou CDS, anulando qualquer perspectiva de democratização da cultura, o que deve, deveria, ser o objectivo de uma Câmara liderada pela CDU.

Fiz o que consegui fazer entre boicotes, incompreensões, rasteiras. O que consegui fazer, pouco mas relevante, foi feito com seriedade intelectual, cultural e política. O que não consegui fazer a eles pode ser assacado. Nunca poderiam esperar que alinhasse no popularucho, nos populismos miseráveis objectivamente retrógados que invadem a cultura já de si frágil, por se submeterem sobretudo à lógica do entretenimento, em que a cultura disfarça o vazio desta sociedade, dissimulando-o.

Como escreveu Musil no Homem sem Qualidades”se de dentro a estupidez não se assemelhasse tanto à inteligência, se de fora não pudesse passar por progresso, génio, esperança, aperfeiçoamento ninguém quereria ser estúpido e a estupidez não existiria. Ou pelo menos seria mais fácil, combate-la”. Tudo se agrava quando a estupidez tem êxitos, alguns pontuais outros factícios. Torna-se mais convencida e arrogante, até se ufana de ser aplaudida pelos reaccionários que deles tirarão dividendos. Nunca contribuirei para esse triunfo, que será mais que previsível com a continuidade desses comportamentos.

Aparentemente somos do mesmo Partido. Não somos nem nunca seremos. Eu sou militante, eles inscritos tal como poderiam ser de uma qualquer associação ou de um clube de futebol.

Até sempre, com um obrigado a todos com quem trabalhei a navegar nesse mar de escolhos.

Manuel Augusto Araújo

https://revistacaliban.net/pode-a-esquerda-renunciar-%C3%A0-cultura-30a4b08aed67

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Carlos Esperança - Que raio de sorte!

* Carlos Esperança

Quando a esperança de vida se ia reduzindo, fruía-se o tempo com os amigos e os dias eram contados em função do regresso de filhos e netos. Os afetos explodiam e os braços enchiam-se de corpos que se estreitavam; os lábios encontravam faces que se ofereciam à doce carícia de contactos; os dias eram o espaço de tempo para exprimir sentimentos, cultivar ócios e regressar às leituras que nos preencheram a vida.

Tudo nos fazia esquecer as rugas, os lapsos de memória, moléstias da idade e dores do corpo e da alma. Tudo se desvaneceu numa reclusão autoimposta ou em deambulações solitárias, na esperança de um impossível regresso à normalidade.

Um homem nunca anda só, é verdade, traz consigo memórias de vida, marcas do trajeto que percorreu, histórias por contar, recordações que nos preenchem os vazios, mas falta agora a alegria que os amigos traziam à tertúlia e até o ar que se inspirava na tranquila e lenta oxigenação dos pulmões, agora concentrado de anidrido carbónico que se acumula na máscara que nos defende e oprime.

Hoje, todos os amigos são suspeitos, e os filhos e netos, perigosos. Receamos o ar onde passou o troglodita sem máscara ou tossiu um mascarado a aliviar o catarro. Fugimos do restaurante habitual, que antes regurgitava de gente, agora com o espaço vazio à espera de melhores dias.

Há meio século os homens tiravam o chapéu por cortesia, agora colocam a máscara por delicadeza e olham-se de soslaio os energúmenos que a usam no pescoço, no pulso ou a trazem no bolso.

Lenta e inexoravelmente o distanciamento físico converte-se em afastamento social.

Que raio de sorte!

novembro 18, 2020


https://ponteeuropa.blogspot.com/2020/11/que-raio-de-sorte.html

sábado, 14 de novembro de 2020

José Goulão - VIRAM POR AÍ A DEMOCRACIA?

* José Goulão

Que há de comum entre a farsa globalizada das eleições norte-americanas e a banalização da imposição de situações que reduzem a pouco mais que resquícios os direitos cívicos dos cidadãos a pretexto, por exemplo, da saúde pública? Na verdade, tudo. São manifestações comuns de uma maneira cada vez mais excepcional de olhar a sociedade em todo o mundo gerido pela ortodoxia neoliberal, ditada pela crise em que continua a afundar-se a própria ortodoxia neoliberal.

Com algum pudor, que é importante assinalar, ao mesmo tempo fala-se cada vez menos de democracia. Está implícito que tudo continua a processar-se em nome da democracia, assim prosseguindo a transição para a institucionalização do autoritarismo globalizado, mecanismo político com o qual o neoliberalismo se identifica na perfeição. Ou seja, instaura-se gradualmente o regime autoritário, de preferência através do abastardamento das instituições democráticas até que, na prática, se esfumem os restos de democracia – entendida como manifestação da vontade popular. Para isso é preciso ensinar os povos a comportar-se como um imenso rebanho obediente e, como todos sabemos, já estivemos bem mais longe disso.

O “exemplo da América”

A farsa das eleições presidenciais nos Estados Unidos tornou-se uma prática rotineira, mas fulcral neste processo. Trata-se de impôr o tipo de estrutura gestora da sociedade que melhor serve, em determinado momento, os interesses do establishment norte-americano e do chamado “Estado profundo”, entidade totalitária e bipartidária que exerce efectivamente o poder enquanto as administrações passam. No fundo, a entidade não institucionalizada que mexe os cordelinhos da globalização neoliberal como estratégia imperial.

Salta à vista que, ao fim destes quatro anos, Donald Trump teria de ser despedido pelo “Estado profundo”. Porque tendo cumprido a vertente autoritária com zelo, burilando o ambiente ideológico fascista – bem ao gosto neoliberal – fracassou estrondosamente na frente da globalização. Principalmente deixou a União Europeia e a NATO a queixarem-se de orfandade e nem o gigantesco investimento militar no cerco à Rússia, a diabolização da China, a asfixia do Irão e os golpes na América Latina lhe valeram. A actuação casuística e a navegação à vista praticadas por Trump, conjugadas com o estilo trauliteiro, nada polido e errante, terão “desprestigiado a América”, no parecer de doutos analistas internos e externos – que tanto o admiraram, por exemplo, a propósito do assassínio do general iraniano Qasem Soleimani e das manobras contra a Venezuela.

Joe Biden é de outra estirpe. Emana do aparelho do Partido Democrata, que na fase actual do neoliberalismo parece corresponder aos interesses do “Estado profundo”: assegura também uma ordem autoritária, é o garante do globalismo e da gestão imperial coordenada com os aliados através da NATO e da União Europeia, não hesita em lançar guerras onde for necessário e de promover golpes e revoluções coloridas onde for preciso, mantém a Rússia e a China sob pressão como os inimigos a abater. E fá-lo de uma maneira bem-falante, polida, restaurando “o exemplo da América”.

Por isso, os ministros dos negócios estrangeiros da União Europeia e a própria Comissão Europeia foram lépidos a saudar a “eleição” de Biden, mesmo aqueles que nunca negaram um sim a Trump quando se tratou de hospedar manobras conspirativas e criminosas patrocinadas pelo presidente norte-americano ou de ajudar nos golpes de Juan Guaidó, na redução do povo venezuelano à fome e no roubo de ouro à Venezuela.

Obviamente todos saberão que não é de Biden que se trata, porque não passará de uma figura mais ou menos virtual de uma gestão também autoritária, belicista e trauliteira – mas com chancela “politicamente correcta” – assegurada nos bastidores pelo triunvirato formado por Hillary Clinton, Barack Obama e a vice-presidente eleita Kamala Harris – eventualmente promovida a presidente ainda antes do fim do mandato. Estão de regresso os autores de obras de grande relevância para o bem da humanidade como as guerras de destruição da Líbia e da Síria, o golpe fascista na Ucrânia e ainda os golpes no Brasil, Paraguai e Honduras. E, com eles, as patranhas ambientais do capitalismo “verde” e outras causas cavalgadas pela corte de magnatas globalistas que apostam preferencialmente no Partido Democrata, como Bill Gates, Elon Musk, Soros e outros nomes igualmente sonantes.

Quando o “Estado profundo” define os gestores de turno “na América”, o sistema funciona de modo a minimizar o erro dos eleitores. Daí o caos eleitoral, as mudanças súbitas das tendências de voto em Estados-chave – a fazer lembrar os apagões nas Honduras que permitiram ao candidato “correcto” passar de terceiro para primeiro – as dezenas de milhares de votos postais dados como perdidos, as pen de última hora contendo carradas de votos num só candidato, enfim coisas que a acontecer na Venezuela ou na Bolívia, por exemplo, mereceriam golpes de Estado e mesmo invasões militares para restaurar “a ordem democrática”.

A comunicação social corporativa não valoriza nada disto, faz até de conta que não existe e, na realidade, esses fenómenos nada têm de novo. Assim foram eleitos George W. Bush e o próprio Donald Trump – que provou agora da receita venenosa que o levou ao trono.

Assim é no país que tem a patente da democracia.

A banalização da excepção

Um dia, se restarem condições de liberdade que o permitam, será feito o balanço da maneira como o neoliberalismo tirou proveito da COVID-19 para acelerar o processo da transição política e social para o autoritarismo, designadamente através da banalização de casos extremos de cerceamento dos direitos cívicos.

A começar por uma investigação séria da origem do próprio vírus SARS-CoV-2, com a qual ninguém pretende realmente preocupar-se uma vez postulado que surgiu num mercado de peixe em Wuhan, China – embora abundem provas de que já circulava muito antes, por exemplo na Europa e na América.

O espectáculo deplorável a que se assiste, país atrás de país, excepto no caso pontual da Suécia – que ainda resiste a violentas pressões internacionais para mudar de estratégia – é o da proliferação de medidas de excepção, acompanhadas pelo culto do pânico social, alegadamente para combater a proliferação do vírus.

Deixemos de lado as legítimas discussões sobre a real taxa de mortalidade do vírus, sobre a suposta necessidade de impôr estratégias autoritárias com base em dados estatísticos proporcionados por testes sem o adequado enquadramento clínico. As opiniões sobre essas matérias que contrariam a doutrina imposta foram encafuadas na caixa censória das teorias da conspiração e de lá não podem sair sem riscos para os próprios defensores. Em matéria de liberdade de expressão o autoritarismo viral precede em muito o dos estados de excepção.

Desde a imposição do uso de máscaras – arrasando quaisquer opiniões que a contestem fundamentadamente – à dança das horas do recolher obrigatório, aos estados de emergência hard ou soft, à arbitrariedade dos limites de ajuntamentos que tanto podem ser de cinco aqui, de seis além, ou mesmo de oito se isto ou aquilo, às medidas que pretensamente evitam o descalabro da economia mas penalizam sobretudo os trabalhadores e os pequenos e médios empresários, à institucionalização abusiva do teletrabalho, o desfile da insanidade é interminável.

Numerosos governos parecem ter perdido de vez a noção do que é o interesse dos cidadãos, sacrificados a sucessivas medidas restritivas supostamente para os proteger do vírus. Não hesitando até, como acontece em Portugal mas está longe de ser caso único, em disseminar a sensação perversa de que o recurso a uma aplicação electrónica invasiva da privacidade pode pôr as pessoas a salvo de contaminação, o que é uma manobra profundamente falsa e traiçoeira, uma exploração inconcebível da boa-fé e da vulnerabilidade dos cidadãos. 

Através da União Europeia abundam as medidas restritivas, avulsas ou coordenadas, acompanhadas por chicanas verbalistas em que tenta demonstrar-se que as eliminações das liberdades se fazem para o bem dos cidadãos, aterrados e ameaçados. Trata-se, no mínimo, de um processo cruel, desumano, desenvolvido enquanto se proíbem, na prática, as acções susceptíveis de pôr transparência e alguma serenidade no tratamento de um assunto abordado com opacidade desde o início.

No final do próximo mês de Janeiro, o Fórum Económico Mundial, essa essência do neoliberalismo agora exultante com a “eleição” do mais globalista dos candidatos presidenciais norte-americanos, irá lançar em Davos o “Great Reset”, o grande reinício ou grande restauração, tendo como pano de fundo a situação gerada pela pandemia, parecendo até que esta não poderia ter sido mais oportuna. Num vídeo posto em circulação a propósito dessa iniciativa promove-se o mote “Seja dono de nada e seja feliz”.

Trata-se da nova ideia de organização da sociedade global num futuro já próximo: automatizada, robotizada, gerida pela inteligência artificial de maneira autoritária e sem qualquer privacidade da pessoa humana. O mundo em que os “donos de nada” serão quase todo os habitantes do planeta, formando um rebanho “feliz”, enquanto a ínfima migalha da elite será dona de tudo.

Significa esta antevisão que em cima do vírus há quem faça ambiciosos planos – e quem os faz são os expoentes do neoliberalismo. Isto diz muito sobre a fase que estamos a viver, uma fase seguramente de transição e de experiências.

Uma fase de onde foi arredado o respeito pela democracia.

José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/ AbrilAbril

António Louçã - A Alemanha e a Revolução dos Cravos. Uma investigação sobre a Fundação Ebert

 * António Louçã     14.Nov.20     Outros autores

A ajuda e o incentivo internacional à contra-revolução em Portugal desempenhou um papel decisivo: as forças internas não teriam sido capazes de a levar a cabo. A RFA (seja com a democracia-cristã como com a social-democracia no poder) não deve ser ignorada, tanto pelo apoio que manteve ao Portugal fascista, como pela activa intervenção após o 25 de Abril. Intervenção que vai do ataque ao MFA à promoção do divisionismo sindical, do incentivo à ingerência estrangeira ao vultuoso financiamento de toda a acção contra-revolucionária. E que teve como interlocutores (e títeres) privilegiados o PS de Soares e o PSD de Sá Carneiro.

A República Federal da Alemanha (RFA) foi o país europeu que mais activamente apoiou a ditadura salazarista. E foi também o país europeu de onde a oposição anti-salazarista recebeu um apoio mais substancial. Compreender o paradoxo é meio caminho andado para compreender o papel decisivo da RFA no processo de controlar e dominar a Revolução dos Cravos.

O livro de Peter Birle e Antonio Muñoz Sánchez, publicado em julho deste ano (Partnerschaft für die Demokratie. Die Arbeit der Friedrich-Ebert Stiftung in Brasilien und Portugal. Bonn: Verlag Dietz, 2020), tem como tema o trabalho da Friedrich Ebert Stiftung (FES) - fundação ligada ao SPD - no Brasil e em Portugal durante os últimos anos das respectivas ditaduras, durante a transição e durante os primeiros anos dos regimes democráticos que depois se estabeleceram.

A parte referente a Portugal ficou a cargo de António Muñoz Sánchez e apresenta para o público português a inestimável vantagem de se basear não só em arquivos já relativamente explorados por investigações portuguesas (como o arquivo político do Auswärtiges Amt, equivalente alemão do MNE, ou o Bundesarchiv, em Koblenz), como noutros menos explorados (o da Fundação, em Bona), ou mesmo em arquivos pessoais de actores importantes da História de então.

Os amigos alemães da ditadura

Sánchez recorda por um lado o contexto internacional em que se deram os primeiros confrontos da guerra colonial, sustentando que Salazar, na ausência de um apoio britânico ou norte-americano à sua obstinação colonialista, só pôde decidir-se pela guerra devido aos apoios francês e alemão - nenhum deles assumido publicamente, num ambiente internacional favorável às independências africanas.

O apoio alemão em especial foi concedido com requintes do mais elaborado secretismo, mas beneficiando também do empenhamento de personalidades destinadas a altos voos na política alemã, como Richard Jäger, ministro da Justiça de Adenauer e mais tarde presidente do Bundestag.

Em termos práticos, foi decisivo o líder bávaro Franz-Joseph Strauss que, como ministro federal da Defesa, urdiu toda a teia para o acordo secreto luso-alemão de 1960. Aí se incluíam a base aérea de Beja, a base militar de Alcochete, armazéns da Bundeswehr em Setúbal e, reciprocamente, a venda de armamento alemão a Portugal.

Por outro lado, não deixa de ser significativo que inicialmente Strauss tenha considerado prudente ocultar os detalhes do acordo aos próprios colegas ministros. A RFA movia-se num contexto internacional altamente volátil e em Junho de 1966, quando Amílcar Cabral denunciou bombardeamentos feitos na guerra colonial com aviões alemães, o Governo de “Grande Coligação” que sucedera a Adenauer ponderou mesmo encerrar o aeroporto de Beja e limitar drasticamente a cooperação militar com Portugal.

Sánchez sublinha acertadamente o papel do embaixador em Lisboa, Müller-Roschach, em conseguir salvar o periclitante acordo. E, logo em seguida, não deixa de lembrar-nos que esse diplomata tão entusiástico pela colaboração germano-portuguesa havia de ser destituído dois anos depois, ao vir a público na Alemanha o papel que desempenhara no extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial (mas o escândalo não ia servir de emenda ao AA, que depois nomeou para o posto de embaixador em Lisboa o ex-SS Schmidt-Horix e, depois do suicídio deste em 1970, o antigo jurista nazi Ehrenfried von Holleben).

“Evolução na continuidade” como política do SPD

Para além do papel desempenhado por Müller-Roschach na preservação do acordo, há sobretudo a ter em conta a viragem política que o SPD efectuara, desde o Congresso de Bad Godesberg, em 1959, aproximando-se da política externa de Adenauer. Com essa viragem, o trio composto por Willy Brandt, Herbert Wehner e Fritz Erler fazia tirocínio como parceiro credível para soluções governamentais de coligação ao centro. No que diz respeito às relações com Portugal, a viragem traduz-se numa renúncia do SPD a pôr em causa os fornecimentos militares alemães.

E, quando finalmente o SPD passa da oposição para o governo, Willy Brandt ascende a ministro federal dos Negócios Estrangeiros e ainda mais acentua essa viragem. O SPD continua a ignorar o grupo mais ou menos informal conhecido como Acção Socialista Portuguesa (ASP), onde pontifica acima de todas as outras a dinâmica personalidade de Mário Soares. A muito custo, e só sob pressão da Internacional Socialista, o SPD se decide em 1968 a protestar contra a deportação de Soares para S.Tomé.

A política externa alemã aposta entretanto numa evolução interna da ditadura e não numa reviravolta política que catapulte a oposição para o poder. A Embaixada da RFA, mais do que qualquer outra em Lisboa, tem o cuidado de se manter longe da oposição portuguesa e ganha com isso uma fama de pró-salazarista.

A chamada “primavera marcelista” vem ainda reforçar o argumentário justificativo da aposta numa evolução interna, em colagem ao slogan de “evolução na continuidade” popularizado pelo novo chefe da ditadura. Ao visitar Portugal, o mesmo Brandt que continua no verão de 1969 a recusar os pedidos de audiência de Soares comete mesmo a gaffe de confraternizar com o seu homólogo Franco Nogueira, um dos “ultras” do fascismo.

Muñoz Sánchez não tem, portanto, contemplações com a política de Brandt, entretanto ascendido ao lugar de chanceler. Também como chanceler, Brandt toma partido pela política pró-marcelista do MNE Walter Scheel, contra o ministro da Cooperação Económica, Erhard Eppler, que era favorável a um distanciamento perante a ditadura.

Fundação Ebert, ou os ovos também no outro cesto

Mas, precisamente quando o SPD acentuava a sua viragem à direita, a FES estabelecia, através do seu colaborador Robert F. Lamberg, os primeiros contactos com a ASP. O trabalho de Muñoz Sánchez consegue manter um rumo lógico e racional na interpretação deste paradoxo. E permite-nos entender como, apesar da relativa indiferença dos correligionários europeus, Mário Soares pôde realizar em 1970 uma tournée pelo Velho Continente, radicalizando o seu timorato discurso anticolonial e classificando como fascista o regime de Marcelo Caetano.

Com efeito, a ASP não estava tão abandonada como parecia e, graças a um financiamento da FES, poderia em breve dispor, como órgão oficioso, do diário “República”. Muñoz Sánchez não hesita em classificar a criação do “República” como uma das iniciativas mais custosas e mais bem sucedidas da FES na fase final das três grandes ditaduras da Europa meridional - Espanha, Portugal e Grécia.

As políticas internacionais da social-democracia e da Fundação iriam, nos anos seguintes, continuar a evoluir em direções diferentes. Por um lado, a FES intensificava o seu apoio à ASP, colocava-a em contacto com a poderosa central sindical alemã, DGB, e tomava a seu cargo a organização do congresso fundador do Partido Socialista (PS), em Bad Münstereifel, em abril de 1973.

Já o SPD, obrigado pela pressão da opinião pública a carregar nos tons críticos do seu discurso contra o colonialismo português, continuava no entanto a ignorar o PS. Os congressos, praticamente simultâneos, do PS e do SPD realizaram-se portanto de costas voltadas um para o outro, sem que qualquer dos dois partidos estivesse representado no congresso do outro por alguma delegação digna de nota.

A própria Internacional Socialista, embora tivesse aceitado a integração da ASP em junho de 1972, vinha desenvolvendo um consenso no sentido de favorecer a tal evolução interna da ditadura portuguesa, e não o seu derrubamento. A Internacional aproximava-se assim da política do SPD e deixava de constituir uma instância de recurso dos socialistas portugueses contra a Realpolitik de Brandt.

Soares, desde o início apostado em combater o PCP

Só em 1974 Mário Soares ia conseguir que Brandt finalmente lhe concedesse uma audiência. Viajou portanto para Bona e foi pernoitar no hotel de onde devia sair ao encontro do chanceler. Mas o calendário marcava 25 de abril e, de madrugada, Soares foi avisado da revolução que estava a eclodir em Portugal. Desta vez foi ele a cancelar o encontro e a deixar plantado o líder da principal potência europeia. A revolução invertia por um breve instante a ordem de importância dos dois putativos interlocutores.

Para além de relatar episódios saborosos como este, o trabalho de Muñoz Sánchez retoma a perspectiva mais ampla do processo revolucionário e, ao referir a tournée europeia que Soares faz logo no início de maio, permite-nos reavaliar criticamente a ideia de que o PS chegara a Portugal com um espírito unitário, de colaboração com o PCP, e que só depois, devido ao sectarismo comunista, foi tomando distâncias.

Apesar de discursos como o de Soares no 1º maio de 1974 parecerem confirmar a imagem tradicional de uma inclinação unitária do PS, os contactos do líder socialista com os seus confrades europeus, logo em maio, mostram que desde o primeiro instante ele reclamou por trás dos bastidores um apoio político, logístico e financeiro da social-democracia internacional, com o objectivo assumido de disputar a hegemonia do PCP no início do processo revolucionário.

A pose unitária assumida em público por Soares era, nessa fase, uma mera concessão ao ambiente político do país, e não o reflexo de uma genuína convergência com o PCP. Na social-democracia internacional, o seu parceiro natural não era o líder socialista François Mitterrand, que, na luta pelo poder em França, adoptara uma táctica frente-populista. O parceiro de Soares devia ser, pelo seu anticomunismo apimentado com as sofisticações tácticas da Ostpolitik, aquele mesmo Willy Brandt que até pouco tempo antes lhe fechava todas as portas.

A obstinada desconfiança de Brandt face ao PS

Ao eclodir a revolução, os social-democratas alemães tinham portanto, apesar de si próprios e muito graças à FES, condições ideais para se ingerirem eficazmente no processo político português.

Por um lado, as democracias-cristãs europeias tinham ignorado arrogantemente os católicos oposicionistas portugueses e foram surpreendidas pelo 25 de Abril sem quaisquer interlocutores em Portugal. As fundações democratas-cristãs estavam completamente a leste e a FES era a única solidamente implantada no terreno.

Por outro lado, Soares tinha uma afinidade espontânea com a política anticomunista de Willy Brandt e não deixaria que as subjectividades suscitadas pela anterior indiferença deste interferissem com a aproximação desejada.

Mesmo assim, a FES continuou durante algum tempo a ser o veículo privilegiado para uma influência social-democrata que Willy Brandt relutava em assumir. Assim, ficamos a saber pelo trabalho de Muñoz Sánchez que foi o responsável da FES Günter Wehrmeyer quem emitiu um primeiro diagnóstico sobre o aparelho partidário do PS ao visitar Portugal logo em julho de 1974.

Wehrmeyer ficou chocado com a debilidade desse aparelho, apenas com uma dezena de funcionários, segundo nos diz, face ao milhar de funcionários que se estimava existirem no PCP. E ficou principalmente chocado por ver os dirigentes socialistas tão ofuscados pelo glamour da alta política que permaneciam inteiramente alheados desta fragilidade do PS.

Em consequência, a FES empenhava-se em encontrar soluções para as debilidades organizativas do partido, dando por suposto que sem essas soluções o PS não se atreveria a uma demarcação mais frontal face ao PCP. Por seu lado, o SPD, aparentemente sem ter captado o nexo causal entre debilidade organizativa e timidez política, continuava a suspeitar que o perfil baixo do PS perante o poderoso PCP traduzisse, não um calculismo táctico, mas uma atitude politicamente conciliadora e porventura frente-populista.

Tal foi a preocupação manifestada por dois altos quadros do SPD, Jürgen Wishnewski e Bruno Friedrich, ao serem enviados a Portugal no verão de 1974. A visita seguinte foi de ainda mais alto nível: o próprio Willy Brandt veio a Portugal em outubro de 1974, com a prioridade, bem no topo da sua agenda, de contrabalançar o efeito da visita de Mitterrand em julho.

Essa anunciada prioridade era tão visível logo desde os preparativos que Brandt foi recebido festivamente no aeroporto de Lisboa por um número apreciável de militantes do PPD, eclipsando estes a discreta presença do PS. Durante a visita, Brandt acedeu também a abrir um diálogo com o PPD, alimentando ainda as expectativas deste em ser admitido na Internacional Socialista, com natural desagrado de Soares.

Não surpreende que depois, na RFA, tenha sido principalmente um jornal de direita, Die Welt, a dar largas ao seu entusiasmo, considerando “verdadeiramente modelar” o desempenho de Brandt em Lisboa.

As eleições promovem o PS a principal interlocutor

Escapava ainda à superficial observação do SPD o desconforto que já então Mário Soares sentia perante o reforço da esquerda, de cada vez que a direita dava algum tiro no pé, com uma das suas intentonas abortadas. Já assim fora perante o golpe abortado de 28 de setembro de 1974, em que o líder socialista teve dificuldade em esconder a sua apreensão por Spínola se ter demitido. E assim voltou a ser com o 11 de março de 1975.

Olhando a revolução a partir da Alemanha, o SPD alarmou-se com a radicalização do processo revolucionário e realizou em 21 de março, sob a direção de Helmut Schmidt, uma reunião de emergência para discutir um pedido de socorro enviado por Mário Soares. Nessa mesma noite Schmidt telefonou para o presidente norte-americano Gerald Ford e para o primeiro-ministro britânico Harold Wilson, a pedir-lhes que se tomassem medidas contra o perigo de um “golpe de Praga” em Portugal.

Cinco dias depois, sem ter alcançado os resultados que pretendia, o mesmo Schmidt lamentava-se sobre a atitude passiva da comunidade internacional. O Governo da RFA decidiu então, em reunião de 8 de abril, aprovar um plano para intervir por sua conta em Portugal, sem esperar que os aliados saíssem da inércia em que continuavam mergulhados. E o SPD decidiu injectar na campanha eleitoral portuguesa vultosas quantias - em dinheiro vivo, do partido ou mesmo do orçamento do Estado, trazido em malas como nos filmes de espionagem, devido à suspensão das transferências bancárias.

Com tudo isto, o SPD ainda se encontrava longe de ter a clareza política da FES e faltava-lhe decidir quem seria o seu principal interlocutor do lado português: o apoio financeiro destinado à campanha para as eleições constituintes foi repartido salomonicamente entre PS e PPD. E só quando o PS emergiu do escrutínio de 25 de abril de 1975 como o partido mais votado passou a notar-se uma clarificação das preferências do SPD.

O que era até então uma divisão de tarefas entre SPD e FES assume daí em diante contornos de colaboração cada vez mais homogénea e consistente. Na Embaixada de Lisboa é criado um cargo de “adido social”, para acompanhar a actividade de sindicatos, partidos e fundações, e logo preenchido com um quadro da FES, Hans-Ulrich Bünger.

Schmidt, que no início de maio substituíra Brandt como chanceler, cauciona nessa fase uma diplomacia paralela a partir dos relatórios de Bünger, que são entregues a Carlucci. E tudo se faz nas costas do parceiro liberal na coligação, Hans-Dietrich Genscher, que no entanto, como máximo responsável da política externa alemã, era suposto ser o primeiro a saber.

Já neste novo contexto eclode a crise do “República”, que o PS utiliza como arma de arremesso contra o PCP, embora saiba que não foram militantes deste partido a desencadear a ocupação do jornal. E aqui tem lugar um episódio sintomático que Muñoz Sánchez nos revela: depois de anunciar, por volta da meia-noite de 11 de julho, que o PS vai retirar-se do IV Governo Provisório, Soares apressa-se a telefonar, minutos depois, para a Embaixada alemã, e marca um encontro que terá lugar logo na manhã seguinte, com Bünger e com Karl-Heinz Sohn. Em perfeita coordenação, o Governo da RFA sai da sua reserva sobre o MFA e pela primeira vez o critica publicamente.

Da clarificação política à viragem militar

Aqui valerá a pena recuar um pouco e lembrar os dilemas que se colocavam à política das grandes potências ocidentais em janeiro de 1975, quando Kissinger substituiu o embaixador Nash Scott no seu posto de Lisboa por Frank Carlucci. Não custa crer que a decisão de Kissinger fosse ditada pela expectativa de poder bisar em Portugal o êxito obtido no Chile com a receita putschista.

Mas, se alguém sabia apalpar o terreno e avaliar as condições para um putsch, esse alguém era certamente o experiente Carlucci. Depois de Spínola por duas vezes ter tentado golpes de Estado, de forma prematura e diletante, as condições para um terceiro do mesmo tipo pareciam definitivamente comprometidas. Não por escrúpulos democráticos, mas por realismo político, Carlucci entendeu o que se passava e não chegou, seriamente, a conspirar para uma espécie de pinochetazo português. Por isso mesmo Kissinger, como sublinha Muñoz Sánchez, se lamentava de alguém lhe ter vendido a imagem de Carlucci “como um tipo duro”.

Na impossibilidade de fazer de Portugal o Chile da Europa, Kissinger rapidamente passou a preconizar que se tratasse o país como a Cuba da Europa. E também a essa avaliação e às ilações práticas correspondentes se opôs Carlucci, mas neste caso em estreita colaboração com o embaixador alemão em Lisboa, Fritz Caspari, e com o respaldo do Governo de Bona.

Com efeito, contra a “teoria da vacina” defendida por Kissinger, Schmidt opunha-se a que Portugal fosse expulso da NATO. Neste contexto, forçou mesmo em maio de 1975 um encontro entre o secretário de Estado norte-americano e o seu homólogo português, Melo Antunes. E, à margem deste contacto infrutífero, o Governo de Bona ia-se comprometendo com um auxílio a Portugal no valor de 70 milhões de marcos.

Um dos méritos, e não o menor, do trabalho de Muñoz Sánchez consiste em introduzir uma nuance significativa na visão corrente até agora, que dava o “falcão” Kissinger a perder um braço de ferro contra o seu embaixador em Lisboa, Frank Carlucci. Por muito hábil que tenha sido Carlucci, e foi, ficava sempre por explicar como ele se teria imposto ao seu chefe, que nunca teve tendência para se contentar com um papel decorativo.

Na verdade, a conhecida colaboração que mantiveram no terreno os embaixadores norte-americano e alemão não foi mero produto de uma afinidade pessoal ou de uma visão comum sobre o processo revolucionário que ambos estavam empenhados em travar. Essa colaboração contou também, do lado alemão, com o apoio do Governo Federal.

Se Carlucci conseguiu fazer da vitória eleitoral do PS a principal alavanca para suscitar um movimento militar de restauração da disciplina castrense, como primeiro passo para controlar a dualidade de poderes no país, isso deveu-se em grande parte ao facto de ele poder colocar no seu prato da balança o peso da principal potência europeia, que partilhava dessa aposta estratégica.

Parece, assim, credível a versão de Schmidt, apresentada em público meses depois do 25 de novembro e citada por Muñoz Sánchez, reclamando para si o crédito por ter convencido os renitentes Henry Kissinger e Harold Wilson de que a revolução portuguesa devia ser domada pelo PS e pelos seus aliados militares - não por um putsch de tipo chileno ou por uma quarentena de anos ou décadas como no caso de Cuba.

Esplendor e queda da Fundação Ebert em Portugal

A parte da investigação do livro que ficou a cargo de Muñoz Sánchez estende-se depois aos temas da transição democrática e da integração europeia num arco de tempo mais largo, que não nos propomos tratar nesta recensão. Mas lança também um olhar sobre o período imediatamente pós-revolucionário, que aqui especialmente nos interessa por fazer também alguma luz sobre o sentido último da estratégia da FES durante o PREC.

Para além do papel da FES, primeiro como sucedâneo, depois como intermediária, da intervenção do SPD e do Governo de Bona na revolução portuguesa, há o balanço de duas outras intervenções muito concretas da Fundação na sociedade portuguesa: uma, ao nível sindical; outra, ao nível da reforma agrária.

No processo que conduziu à criação da Carta Aberta e, depois, da UGT, Muñoz Sánchez classifica, muito assertivamente, como decisivo o papel da FES em criar uma central que veio quebrar o monopólio sindical dos comunistas. E a este juízo de facto logo acrescenta um outro, mais valorativo, mas igualmente razoável: é duvidoso que os trabalhadores tenham ganho alguma coisa com isso, pelo menos nos moldes em que sucedeu.

No que diz respeito à reforma agrária, o nosso autor aponta o protagonismo da FES na criação da Servcoop, entidade que se dizia apostada em contribuir para a “democratização” das cerca de 500 unidades colectivas ou cooperativas agrícolas predominantemente influenciadas pelo PCP. Mas a dita Servcoop estava condenada ao fracasso porque, em vez de “democratização”, o que veio a seguir foi um processo de restituição das terras aos latifundiários, sob a batuta do então ministro socialista António Barreto. E, com as terras devolvidas aos agrários, não havia ficção democratizadora que pudesse sobreviver.

Contrastando com Espanha, onde os meios investidos pela FES deixaram até hoje um rasto visível, em Portugal as fundações próximas do PS desmoronaram-se assim que lhes foi faltando o empenhamento da FES. E isso que Munõz Sánchez designa como discrepância entre os vultosos investimentos e a magreza dos resultados é sem dúvida um balanço expectável quando se lida com um partido, o PS, que é sobretudo uma máquina de combate eleitoral.

Fonte: https://www.rtp.pt/noticias/politica/a-alemanha-e-a-revolucao-dos-cravos-uma-investigacao-sobre-a-fundacao-ebert_n1270524