quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Eugénio Lisboa - AS INSISTENTES PALAVRAS

 * Eugénio Lisboa

Enviado pelo académico e crítico literário Eugénio Lisboa, transcreve-se, com o prazer de sempre, mais um seu valioso texto literário publicado no “Jornal de Letras”:

“e as insistentes palavras
parecem desistir enquanto avançam”

Armando Silva Carvalho


Convocado para glosar estes dois versos em epígrafe, pareceu-me que poderia, sem dificuldade, glosar, quase interminavelmente, o insistente poder da palavra, no poema. As pistas são muitas. Tomemos por uma delas, um pouco ao acaso.

Nestes dois versos do poeta Armando Silva Carvalho, alude-se àquilo que é fundamental no texto poético e, também, no texto literário, em geral: a palavra, o poder da palavra, como elemento nuclear constituinte desse mesmo texto. A palavra: mas não se trata, aqui, de uma palavra qualquer, ou, antes, não é a palavra usada no seu modo corrente da fala de todos os dias. No texto poético, as palavras são usadas de modo muito especial, com o fim de permitirem ao poeta fazer uma exploração eficaz dos seus próprios assombros (como dizia Christopher Fry). Paul Claudel, falando de poesia, dizia: “São as palavras de todos os dias e contudo não são as mesmas.” (“Ce sont les mots de tous les jours et ce ne sont pas les mêmes”). São realmente as palavras de todos os dias, mas deslocadas – nem que ligeiramente – do seu sentido e uso corrente: por associações inesperadas e refrescantes com outras palavras ou por qualquer outro tipo de “deslocação”.

No texto literário e, sobretudo, no texto poético, interessa não só o significado da palavra, mas também o seu som, o seu volume, o seu peso. O poema faz-se com palavras usadas com toda a sua carga significante e sonora. Conta-se que o pintor impressionista Degas (o das bailarinas) se lamentou, um dia, junto do poeta Mallarmé, dizendo que, tendo embora ideias magníficas, não conseguia escrever um poema que prestasse. Sibilino, Mallarmé respondeu-lhe que um poema não se fazia com ideias, mas sim com palavras. É claro que a afirmação de Mallarmé contém alguma verdade, mas é extremista: os poemas fazem-se de facto com palavras, mas não  com palavras, fazem-se também com ideias. Simplesmente, as ideias, só por si, não fazem o poema: é preciso construir essas ideias com palavras determinadas, associadas de maneira especial e colocadas no discurso de maneira peculiar. No final, fica-se sem muito bem saber se o que nos toca, nos comove, nos atinge é a ideia ou o modo como ela é formulada, com aquele acervo peculiar de palavras e com aquele som (aquela música) que emitem. É o que exprimia o poeta Paul Valéry, ao dizer: “O poema é uma hesitação prolongada entre o som e o sentido.” Isto é, hesitamos interminavelmente em decidir se é a ideia ou o som dela (a música dela) que nos atinge.

É extraordinário o inventário enorme que se pode estabelecer, de testemunhos dados por escritores eminentes – isto é, por pessoas que vivem e trabalham com palavras – sobre o poder nuclear da palavra, sobre o fascínio que, para eles, tem a palavra. Por exemplo, o grande contista e notável poeta inglês Rudyard Kipling observava: “Words are, of course, the most powerful drug used by mankind” (“As palavras são, é claro, a droga mais poderosa usada pela humanidade”).

Reparem que, nos dois versos de Armando Silva Carvalho, as palavras são “insistentes” e não desistem, apenas “parecem desistir”, porém “avançam”. Vem aqui a propósito assinalar que, muito embora, o poeta saiba que a sua matéria prima é a palavra, por vezes, hesita e duvida da sua eficácia, da extensão do seu poder, da sua total adequação ao projecto que tem em vista. Estes versos de T. S. Eliot são disso testemunho: “É estranho que as palavras sejam tão inadequadas. / No entanto, qual asmático lutando por um pouco de ar, / assim o amante deve lutar pelas palavras. /” Isto é: apesar de uma possível inadequação, o manipulador de palavras (o amante, o poeta) não deve desistir de as usar para os seus fins. E sabe que só com elas – as palavras – se poderá salvar.

No entanto, as palavras não são utilizadas, manipuladas  por toda a gente, com o mesmo grau de empenho, de intensidade, de investimento. O poeta francês Charles Péguy observava, a este respeito, que “uma palavra não é a mesma num escritor e noutro escritor. Um arranca-a do ventre. Outro tira-a do bolso do seu sobretudo.”

A palavra, repito, com o seu volume, o seu sabor, a sua sonoridade singular tem, no poema, um valor essencial. Faz-nos hesitar, como já disse, entre o som e o sentido.

A palavra tem de distinguir-se, de maneira muito clara e forte, do silêncio. Se o não fizer, melhor será que nos remetamos ao silêncio : Eurípedes: “Fala, caso tenhas palavras mais fortes do que o silêncio ou, então, guarda silêncio.”

O poeta sabe muito bem que vive de palavras e que fenece da falta delas: não da falta de quaisquer palavras, mas da falta daquelas palavras especiais de que precisa para fazer poesia. Perguntaram um dia ao poeta irlandês, William Butler Yeates se ele se sentia bem. Respondeu: “Não muito bem. Hoje só consigo escrever prosa.” Queria com isso dizer que, nesse dia, só conseguia usar palavras, para o fim básico da comunicação e não, daquela maneira especial que faz com que as palavras de todos os dias não sejam as mesmas palavras de todos os dias. Na prosa de pura – e básica – comunicação, as palavras perdem aquele peso e sabor especial que têm na poesia ou na prosa literária. “A poesia está para a prosa como o dançar está para o andar”, disse o poeta inglês John Wain. Na poesia, as palavras são diferentes, soam diferente, funcionam de maneira diferente, percutem um som diferente. Os testemunhos disto chegam-nos de todo o lado. O poeta francês Léon-Paul Fargue, por exemplo, dizia-o desta maneira: “É preciso que cada palavra que cai seja o fruto bem maduro da suculência interior.”

Poderíamos continuar, interminavelmente, nesta sinalização da palavra, como constituinte fundamental (mas não único) do texto poético ou, simplesmente, do texto literário.

Seja como for, repito, teimosamente, com Claudel: “São as palavras de todos os dias e contudo não são as mesmas.” São as “insistentes” palavras do poema de Armando Silva Carvalho, que “parecem” desistir mas não podem desistir, porque têm de “avançar”, com todo o seu som, com toda a sua música encantatória, para construírem, ante nós, atónitos, o poema.

Posted by Rui Baptista at 18:54   

domingo, 28 de maio de 2017

  ttp://dererummundi.blogspot.com/2017/05/as-insistentes-palavras.html

Poesia: «São as palavras de todos os dias e contudo não são as mesmas»


Foi redigida por Paul Claudel a frase citada no título, recordada por Eugénio Lisboa na mais recente edição do "Jornal de Letras", em texto que tem por epígrafe dois versos de Armando Silva Carvalho: «E as insistentes palavras/ parecem desistir enquanto avançam».

«São realmente as palavras de todos os dias, mas deslocadas - nem que ligeiramente - do seu sentido e uso corrente: por associações inesperadas e refrescantes com outras palavras ou por qualquer outro tipo de "deslocação", sublinha o ensaísta.

Mesmo de um escritor para outro, frisa Charles Péguy, «uma palavra não é a mesma», até porque «um arranca-a do ventre» e «outro tira-a do bolso do seu sobretudo».

Para o escritor e diplomata, «no texto literário e, sobretudo no texto poético, interessa não só o significado da palavra, mas também o seu som, o seu volume, o seu peso. O poema faz-se com palavras usadas com toda a sua carga significante e sonora».

O crítico literário observa que «as ideias, só por si, não fazem o poema: é preciso construir essas ideias com palavras determinadas, associadas de maneira especial e colocadas no discurso de maneira peculiar», observa o crítico literário.

«No final, fica-se sem muito bem saber se o que nos toca, nos comove, nos atinge, é a ideia ou o modo como ela é formulada, como aquele acervo peculiar de palavras e com aquele som (aquela música) que emitem. É o que exprimia o poeta Paul Valéry, ao dizer: "O poema é uma hesitação prolongada entre o som e o sentido"», assinala.

A crónica acentua que «muito embora o poeta saiba que a sua matéria prima é a palavra, por vezes hesita e duvida da sua eficácia, da extensão do seu poder, da sua adequação ao projeto que tem em vista». E dá como exemplo versos de T.S. Eliot: «É estranho que as palavras sejam tão inadequadas./ No entanto, qual asmático lutando por um pouco de ar,/ assim o amante deve lutar pelas palavras».

«O poeta sabe muito bem que vive de palavras e que fenece da falta delas: não da falta de quaisquer palavras, mas da falta daquelas palavras especiais de que precisa para fazer poesia. Perguntaram um dia ao poeta irlandês William Butler Yeates se ele se sentia bem. Responde: "Não muito bem. Hoje só consigo escrever prosa"», aponta Eugénio Lisboa.

E ainda que as palavras na prosa e na poesia seja, as mesmas, nesta elas «são diferentes, soam diferente, funcionam de maneira diferente, percutem um sote». Como dizia o poeta francês Léon-Paul Fargue: «É preciso que cada palavra que cai seja o fruto bem maduro da suculência interior».

Fonte: "Jornal de Letras" - Edição: SNPC . Publicado em 19.05.2017

https://www.snpcultura.org/poesia_sao_as_palavras_de_todos_os_dias_e_contudo_nao_sao_as_mesma.html

Armando Silva Carvalho - POEMA QUE FOI CURTO

 *  Armando Silva Carvalho


Num poema curto a corrente do sangue corria

como um planeta levando no dorsal

a filosofia pública da hora,

e a luz nua e directa incidia sobre o corpo,

real, absoluta.

 

Hoje o poema teima sempre em ser maior,

e a história, o tempo, a memória e o verso porque é velho,

ocultam-lhe a idade nas curvas irreconhecíveis

dum vulto.

É sempre cada vez mais longa a maratona,

e as insistentes palavras

parecem desistir enquanto avançam.

 

De A Sombra do Mar, (Assírio & Alvim).

Anabela Fino - Palavras

* Anabela Fino

Aos votos para o novo ano é necessário acrescentar, se é que ainda ninguém o fez, o pedido urgente de um novo léxico. As palavras que usamos já não servem para exprimir a realidade, estão gastas. Não pelo uso, não, longe disso, mas pelo abuso a que são sujeitas todos os dias, em todas as línguas, em todos os azimutes.

Diz-se amor e ódio com a displicência com que se fala do dia ou da noite. Declara-se amor à t shirt da moda, ao brunch vegan, à namorada ou ao jardim da Estrela com a mesma ligeireza com que se afirma odiar a couve de Bruxelasos bombons de Joana Vasconcelos ou as peúgas de homem brancas.

Fala-se de dor e tortura para contar uma ida ao dentista onde as intervenções são feitas sob anestesia. Morre-se de fome quando se falha ou atrasa uma refeição. Morre-se de medo a ver um filme de terror e a comer pipocas. Equipara-se uns dias de bloqueio de estrada e a perda do Natal com a família à vida nos campos de refugiados. Classifica-se de humanitário o extermínio de milhões de seres humanos em fornos crematórios.

Nos discursos oficiais, fala-se com pompa e circunstância da justiça e da igualdade, ainda que a força bruta de realidade grite o contrário. «A justiça e a igualdade de acesso sempre foram essenciais e ver a vacinação começar em todos os estados-membros, sejam pequenos ou grandes, é um momento importante de solidariedade da UE», garantiu há dias a comissária europeia da Saúde, Stella Kyriakides, numa nota à comunicação social, asseverando que a «UE atravessou esta pandemia em unidade e agora também estamos a iniciar o processo para pôr um fim duradouro à pandemia, juntos e unidos». Seria cómico se não fosse tão trágico.

Depois de se ter assistido ao salve-se quem puder no início da pandemia, com cada Estado-Membro a olhar para o umbigo e a fechar-se, literalmente, em casa, a que se seguiu o indecoroso espectáculo do regateio das ajudas para sobreviver à crise, a que se junta agora a distribuição, segundo critérios não divulgados, de vacinas adquiridas num (mais um) negócio sigiloso, depois de tudo isto, dizia, ocorre perguntar o que significa justiça, igualdade, solidariedade, unidade...

Parafraseando o poema de Chico Buarque – ... de muito gorda a porca já não anda / de muito usada a faca já não corta / como é difícil, pai, abrir a porta / essa palavra presa na garganta... –, o vocabulário a uso de tão torcido já não serve, de tão deturpado já não presta, de tão conspurcado já não assiste ao que verdadeiramente importa.

Neste início de ano ainda por estragar, e porque é nosso dever falar, fazemos nossas as palavras do poeta francês Léon-Paul Fargue: «É preciso que cada palavra que cai seja o fruto bem maduro da suculência interior». Bom ano.

https://www.avante.pt/pt/2457/opiniao/161787/Palavras.htm


quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Alexandre O’Neill - Perfilados de Medo

* Alexandre O’Neill 

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido…

Poemas com endereço (1962)

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Francisco Buarque - Cálice

* Francisco Buarque


Cálice - Chico Buarque & Milton Nascimento

Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

domingo, 27 de dezembro de 2020

José Gameiro - Saudades do Mário


* José Gameiro

DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA

Não sou, por natureza, desconfiado, mas não fiquei tranquilo. De manhã perguntei-te

Conheci-te numa daquelas idas à Figueira da Foz. Os meus pais habituaram-nos desde pequeninos a ir passar umas semanas à praia. Dizem-me, não me lembro, que fui lá fazer um ano. O ar do mar fazia-nos bem, abria-nos o apetite, outros tempos, outras crenças. O meu Pai só estava connosco poucos dias, nesse tempo as férias não abundavam e ele tinha um pequeno comércio, que tinha de fechar a porta, quando se ausentava. Morreu cedo, esgotado. Criou, com a minha Mãe, seis filhos. Ficou-me o “vício” dessa praia. Quando fui estudar para Coimbra, enfim, quando fui para a Universidade, estudar era um eufemismo, sempre que podia e tinha uns escudos, ia para a Figueira. Nunca me consegui desligar daquele mar, daquela água gelada e, depois de ti, quando te conheci. Já lá vão uns anos. Lembro-me como se fosse hoje. Um acaso, que esteve quase para não acontecer, fez encontrar-te. Nem me apetecia muito sair, as noitadas anteriores tinham dado cabo de mim, mas aos 20 anos parece que a energia nunca se esgota e, sabes bem, não tínhamos aditivos, era só a vontade de viver e não perder uma única pitada da vida. Ia com um grupo de malta a passear na Marginal, quando tu passaste com uma amiga. Tentavas acender um cigarro, a nortada era forte. Dei-te lume e disse uma daquelas frases, para ver se pega... — Venham connosco, podem precisar de lume mais vezes. Naquele tempo ainda não havia o conceito de assédio, se fosse hoje poderia ter acabado mal... O namoro durou dois anos, até casarmos. Naquele tempo a malta casava, era a única hipótese de viver juntos, sobretudo se fosse necessária alguma ajuda parental. Não foi fácil convencer-te a irmos para o interior, uma pequena vila da Beira, um forno no verão, um gelo no inverno. Mas era lá que podia ter clientela como advogado e para ti seria fácil ser professora. E assim foi. Os nossos primeiros anos foram fáceis. Até achavas graça conhecer gente diferente, habituada à dureza daquele clima, mas leal e com uma qualidade rara nas grandes urbes, a solidariedade. Nunca ficámos sem apoio nos momentos difíceis, fosse ficarem umas horas com as crianças, fosse qualquer outro apoio. Adoravas os miúdos, teus alunos, sentia-te feliz, tínhamos uma vida fácil, éramos um casal de sucesso. No verão íamos sempre para a Figueira, passar duas semanas. Tu revias as tuas amigas, eu recordava os tempos de estudante, com os colegas que continuavam a ser adeptos daquela praia. Quando voltávamos, sentia-te sempre um bocado triste, mas as rotinas faziam-te voltar ao que eras. Num desses regressos continuavas triste, diferente, arisca, irritada, sem paciência para mim e para os filhos. Chegou o inverno e a situação agravou-se. Pensei que uma saída nas férias de Natal te faria bem. Fomos à neve com os miúdos. Ficavas no quarto a ler todo o dia, mal falavas comigo. Uma noite acordei contigo a falar. Como sempre acontece nos sonhos, não consegui perceber nada do que dizias, mas uma palavra percebi claramente, Mário. Não sou, por natureza, desconfiado, mas não fiquei tranquilo. De manhã perguntei-te. Garantiste que não conhecias nenhum Mário, que eu estava a delirar. Sosseguei, mas não por muito tempo. Já na nossa terrinha voltaste a falar de noite e o gajo voltou a ser nomeado. Disse-te, basta, ou me explicas o que se passa na tua vida ou acabamos mal. Voltaste a insistir que não tinhas ninguém, que me amavas com a mesma força do início. Passei por cima do exagero e decidi utilizar a técnica, que tinha visto numa série de televisão.

Debaixo da nossa cama coloquei um gravador, ativado pela voz, com um software inovador, que decifra a salada de palavras. Arrastarei a culpa até ao final dos meus dias. Sou uma má pessoa, nunca me perdoarei ter duvidado de ti. Tantas vezes me tinhas falado dele, abriste-te comigo, confessaste que tinhas muitas saudades, confiaste em mim. Só um tipo do interior profundo, que não é capaz de perceber as saudades do MAR.

https://expresso.pt/opiniao/2020-12-24-Saudades-do-Mario


sábado, 26 de dezembro de 2020

Ary dos Santos . Meu Camarada e Amigo

* Ary dos Santos 

Revejo tudo e redigo 
 meu camarada e amigo. 
 Meu irmão suando pão 
 sem casa mas com razão. 
 Revejo e redigo 
 meu camarada e amigo 
 As canções que trago prenhas 
 de ternura pelos outros 
 saem das minhas entranhas 
 como um rebanho de potros. 
 Tudo vai roendo a erva 
 daninha que me entrelaça: 
 canção não pode ser serva 
 homem não pode ser caça 
 e a poesia tem de ser 
 como um cavalo que passa. 
 É por dentro desta selva 
 desta raiva   deste grito 
 desta toada que vem 
 dos pulmões do infinito 
 que em todos vejo ninguém 
 revejo tudo e redigo: 
 Meu camarada e amigo. 
 Sei bem as mós que moendo 
 pouco a pouco trituraram 
 os ossos que estão doendo 
 àqueles que não falaram. 
 Calculo até os moinhos 
 puxados a ódio e sal 
 que a par dos monstros marinhos 
 vão movendo Portugal 
 — mas um poeta só fala 
 por sofrimento total! 
 Por isso calo e sobejo 
 eu que só tenho o que fiz 
 dando tudo mas à toa: 
 Amigos no Alentejo 
 alguns que estão em Paris 
 muitos que são de Lisboa. 
 Aonde me não revejo 
 é que eu sofro o meu país. 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

José Malheiro Dias - Depois do Natal

* José Malheiro Dias

O Natal absorvia tudo. Passávamos dias inteiros ainda antes das férias a escolher materiais e a fazer decorações de Natal para toda a casa, a comprar papéis dourados e a cortar, colar e pintar estrelas, velas e anjinhos. Era preciso ir à serra de Sintra buscar musgo para o presépio, que levava um dia a montar. A árvore ocupava outro dia. Depois as listas de compras, de presentes e de doces, as encomendas especiais, o bolo-rei nesta pastelaria, as broas na outra, os fritos a uma senhora que fazia para fora, a procura pelas lojas, depois o périplo por casa daqueles que não iríamos ver no Natal mas a quem deixávamos dias antes as prendas para abrir na Consoada.

Não era possível imaginar como seria o mundo depois do Natal, nem pensar sequer que houvesse um mundo depois do Natal. Ainda menos considerar a possibilidade de o Natal não ser aquilo que esperávamos, de não oferecer tudo o que se desejava.

E, mesmo que a realidade frustrasse uma parte das expectativas, no ano seguinte elas renasciam, da mesma maneira que um jogador compulsivo aposta todas as suas esperanças no jogo seguinte, sem pensar por um segundo em todos os jogos que já perdeu. E era verdade que depois do Natal ainda havia a passagem do ano e, na minha família, depois do fim de ano ainda havia o Dia de Reis, com festa na véspera e mais presentes, ainda que desta vez pouco mais que simbólicos, que tornavam o regresso à vida de todos os dias um processo gradual, sem ressacas violentas.

Essa magia do Natal durou para além da minha infância. Até que houve um ano em que dei por mim num dia do início de Dezembro a pensar no que iria fazer depois do Natal e percebi que a magia tinha desaparecido. O Natal tinha deixado de ocupar o horizonte, tinha perdido a capacidade de lançar o seu manto diáfano de fantasia sobre o prosaico dia-a-dia. Os pozinhos dourados mágicos que as fadas lançavam em torvelinhos pelo ar e que tornavam o mundo um sítio maravilhoso e onde os milagres eram possíveis tinham desaparecido.

A suspension of disbelief que nos permite viver todas as aventuras e deixarmo-nos embalar por todas as fantasias tinha desaparecido. O Natal tinha passado a ser uma data no calendário – uma festa com coisas agradáveis, com prendas a dar e receber, com uns jantares especiais e com as pessoas a tentar ser mais simpáticas do que de costume, mas apenas uma data. Depois da qual todos voltaríamos a ser iguais ao que éramos antes, depois da qual o mundo voltaria a ser o que era antes, sem que a festa tivesse operado qualquer magia duradoura.


Antes disso, o Natal era mágico porque era transformador. Transformador como no Conto de Natal de Dickens, capaz de transformar as pessoas más em pessoas boas, capaz de transformar para melhor a vida das pessoas – não porque fosse apenas um dia agradável. Era especial porque permitia a esperança. A esperança de que nunca mais nenhuma rapariguinha dos fósforos morresse de frio. E, não possuindo esse poder, passou a ser irrelevante e até triste. Triste porque não dá prendas aos meninos pobres que se portam bem e que lhe escrevem cartas a pedir uma casa, uma família, uma camisola, livros para a escola, um emprego para o pai, uns sapatos, o fim da guerra.

Este ano o Natal não consegue ocupar todo o horizonte de ninguém, nem sequer o das crianças, porque elas sabem que este ano as coisas estão mais difíceis, vêem que os seus pais sorriem menos e adivinham que poucos dos seus desejos serão satisfeitos. Este Natal não consegue tapar a miséria do ano que vem a seguir. Este Natal e este fim de ano é apenas o preâmbulo de um ano onde os Ebenezer Scrooge não serão tocados pela magia do Natal, onde continuarão a explorar e a torturar os seus empregados e onde as crianças continuarão a morrer de frio.

Este Natal veio para nos mostrar que as coisas podem sempre piorar e que não há nenhuma justiça divina ou mágica que premeie os bons e castigue os maus. Este Natal veio para nos mostrar que a justiça não é algo que nos vá ser oferecido e que tem de ser arrebatada das mãos daqueles que a sequestram. E a única esperança que ele permite consiste em acreditar que haverá cada vez menos pessoas a pensar como escravos e a compreender que há, lá fora, um mundo a conquistar.

(jvmalheiros@gmail.com)
24 de Dezembro de 2013, 2:40

www.publico.pt › opiniao › depois-do-natal-1617380

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Francisco Louçã - Le Carré, o maior escritor britânico do pós-guerra

* Francisco Louçã 

Em outubro de 2019, o autor deixou um recado: os seus velhos espiões cansados são, como nós, testemunhas do desencantamento do nosso tempo

John le Carré sempre recusou que os seus livros fossem candidatos a prémios, e quando o seu nome apareceu, em 2011, na lista do Booker exigiu que fosse retirado. Hesitava em considerar-se um “autor”, e essa estranha modéstia favoreceu que a sua obra fosse acantonada num género entendido como secundário, o romance de espionagem. No entanto, nada de mais injusto. Le Carré foi o maior escritor britânico do pós-guerra e criou uma literatura sem par, inventou um estilo e, em contraste com Fleming e o seu 007, um dandy que brilha pela tecnologia e por um glamour passadista, criou personagens e enredos extraordinários, contraditórios e vivos. Depois da Guerra Fria, o tema dos seus primeiros grandes livros, Le Carré continuou a pintar um meticuloso inventário da viragem do século e nenhum outro autor se lhe compara nesse monumento.

UM VELHO ESPIÃO CANSADO

Como os obituários recordaram, Le Carré teve uma primeira vida como espião. Por mais de uma década, sob o disfarce primeiro de estudante e depois de diplomata, fez parte do MI5 e do MI6. O princípio não foi heroico: recrutado em Berna em 1948-1949, conta que um casal o abordou numa igreja, convencendo-o de que a pátria precisava dos seus serviços, voltou a Oxford encarregue de espiar esquerdistas na faculdade. Seguiu depois carreira na Alemanha, responsável por entrevistar desertores soviéticos de segunda linha. E começou a escrever os seus primeiros romances, até que o serviço o aconselhou a abandonar funções em 1963, temendo inconfidências ou a liberdade da pena, tanto mais que a sua identidade fora revelada pela mais bem sucedida toupeira dos serviços russos, Kim Philby. Mikhail Lyubimov, que dirigiu a espionagem russa em Londres de 1960 a 1964 e depois se ocupou em Moscovo do departamento britânico ao longo da década seguinte, confirmou que terá sido Philby a revelar a função de David Cornwell, aliás, Le Carré.

O culminar da sua obra é a figura de Geor­ge Smiley. No primeiro livro em que surge, “Chamada para a Morte”, de 1961, é apresentado pela sua mulher: “Quando Lady Ann Sercombe casou com George Smiley, no fim da guerra, descreveu-o às suas amigas de Mayfair, muito espantadas pela notícia, como um personagem de uma banalidade surpreendente.” Ele já era o “velho espião cansado”, um “solteirão falhado de meia idade” que preferia ter estudado obscuros escritores alemães do século XVII, mas que fora chamado para uma carreira nos serviços de informação. Smiley é o contraponto do misterioso e implacável Karla, que dirige os serviços de Moscovo, com quem joga um xadrez fascinante até ao fim.

Pergunta Borges, em ‘Notas sobre (para) Bernard Shaw’, incluído em “Outras Inquirições”: “Um autor pode criar personagens superiores a ele? Eu responderei que não, e nesta resposta irei abranger o intelectual e o moral. Penso que de nós não sairão criaturas mais lúcidas ou mais nobres do que os nossos melhores momentos.” Pois Le Carré prova o contrário. Smiley, que foi o seu “pai de substituição”, ou o seu “mentor secreto”, é mais verdadeiro para si próprio do que para as conveniências do seu criador. É um poderoso retrato de uma época, de uma atitude, é uma história: “Eles (os personagens) foram os veteranos de um conformismo burguês, encontram penosamente o seu lugar e respeitam a estabilidade das instituições burguesas. Parece-me que eram todos uns românticos que sofriam por serem testemunhas da sua morte espiritual na sociedade que defendiam”, escreve Le Carré. Essa decadência é penosa, e quando Smiley regressa, 56 anos depois da sua entrada em cena, foi para invetivar Trump e o ‘Brexit’ em “Um Legado de Espiões” (2017), uma vida de desilusão.

O MUNDO COMO ELE É

O primeiro sucesso de Le Carré foi “O Espião que Veio do Frio” (1963), mas foi depois “A Toupeira” (1974), que iniciou a trilogia de Karla (1977 e 1979), que o estabeleceu como o mestre do thriller de espionagem. Dez anos depois, a queda do Muro de Berlim deslocou a geopolítica da Guerra Fria, mas o autor recriou-se como o escritor das sombras, da duplicidade e da manipulação em que assenta o domínio. Percorreu o Ruanda, a Chechénia, a Turquia, o Panamá, voltou à Rússia e Alemanha, foi à Palestina, ao Caribe, ao Líbano, veio a Lisboa e escreveu. As suas duas dúzias de livros constituem um dos melhores retratos, se não o melhor, destas adaptações do poder como crime ao longo do fim do século.

Tratam do conflito israelo-palestino (“A Rapariga do Tambor”, 1983), dos traficantes de armas (1993, “O Gerente da Noite”), da mentira (“O Alfaiate do Panamá”, 1996), das manigâncias da lavagem de dinheiro (“Single & Single”, 1999), da exploração de África (“O Fiel Jardineiro”, 2001, “O Canto da Missão”, 2006), do papel de Tony Blair na invasão do Iraque (“Amigos até ao Fim”, 2003), das técnicas de sequestro e das prisões clandestinas da CIA (“Um Homem Muito Procurado”, 2008, que o “New York Times” considerou “a sua novela mais poderosa”) e, de novo, uma feroz denúncia do terror a pretexto da guerra ao terror (“Uma Verdade Incómoda”, 2013). Foi autobiográfico em “Um Espião Perfeito” (1986), polemizou acidamente com Salman Rushdie no confronto épico entre dois egos (1997) e, em outubro de 2019, com o “Agente em Campo”, deixou o seu testamento. Um livro melancólico, mais uma vez sobre um fracasso. Foi esse o recado de Le Carré: os seus velhos espiões cansados são, como nós, testemunhas do desencantamento do nosso tempo.

18.12.2020

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Clara Ferreira Alves- A FOTOGRAFIA DE JOHN LE CARRÉ

* Clara Ferreira Alves 
PLUMA CAPRICHOSA

ERA UM GENIAL CONTADOR DE HISTÓRIAS, UM MÍMICO RESPEITÁVEL, CÓMICO E SÉRIO AO MESMO TEMPO. IMITAVA AS VOZES, OS MANEIRISMOS, ERA A MELHOR COMPANHIA QUE SE PODIA DESEJAR

O homem era muito alto. Bati com suavidade à porta, ele entreabriu, e pela fenda consegui dizer “sou jornalista, Expresso, venho para a entrevista”. O homem respondeu, agora não vou dar entrevista. Neste momento não. Insisti. Estava a ler e não ia interromper a leitura para falar comigo. Tudo dito com polidez glacial, naquele tom das classes educadas da Inglaterra. A fenda da porta alargou, ligeiramente. Conseguia agora ver a cara, fechada e sem um sorriso, com um sobrolho levantado. Percebido, lá se ia a oportunidade de falar com John le Carré. Perdido por cem perdido por mil, perguntei com insolência o que ele estava a ler que não podia ser interrompido. A porta abriu um pouco mais, deixando ver uma figura alta, com uma madeixa de cabelo de cor indefinida, louro branco, sobre a testa. Respondeu que era Flaubert, “Madame Bovary”. Aí eu não resisti e disse, adoro esse romance, já o li tantas vezes. E ele, eu também, quantas? Nove vezes. E dissemos os dois ao mesmo tempo, nove vezes. Nine times. Com esta declaração que parecia cronometrada, a porta abriu-se completamente. O escritor, admirado com a coincidência, continuou a falar de Flaubert, a atenção ao pormenor, discutimos ainda uma comparação com Tchekov, o modo como ambos conseguiam caracterizar uma personagem através do que a rodeava ou do estado da luz, ou das observações sobre a paisagem. E assim consegui a entrevista de David John Moore Cornwell. Aliás, John le Carré.

Estava em Lisboa para fazer pesquisa sobre “A Casa da Rússia”, e Mário Soares convidou-o para almoçar em Belém. Deu uma entrevista, aquela, naquele tempo não dava entrevistas. Estava em exílio voluntário de quaisquer comunicações com a imprensa, detestava o meio literário londrino e considerava certa condescendência da crítica perante a obra um pecado original da mediocridade. As recensões aos livros e a frase repetida de que era um escritor de romances de espionagem que queria ser levado a sério deixavam-no mortificado. Tinha publicado “Um Espião Perfeito”, o livro que Philip Roth considerou o melhor romance inglês do pós-guerra. Tinha publicado “O Espião que Saiu do Frio” e “Tinker Tailor Soldier Spy”, o primeiro volume da trilogia “The Quest for Karla”, juntamente com “The Honourable Schoolboy” e “A Gente de Smiley”. A trilogia é um monumento literário. Antes das pressões de marketing dos grupos editoriais, os escritores davam raras entrevistas e Le Carré era uma estrela da literatura, com os livros adaptados ao cinema e televisão.

Abriu o minibar e perguntou se queria um whisky, uma garrafinha anã. Bebemos os dois, cada uma com a sua garrafinha, no quarto do Ritz, um quarto com duas camas. Nada de suítes presidenciais. O fotógrafo chegou, o António Pedro Ferreira, e fotografou no final da entrevista. Não foi o princípio de uma bela amizade, mas enquanto esteve em Lisboa voltámos a falar, queria saber coisas sobre o país, a capital pós-imperial que iria ser parte do livro que estava a escrever.

A entrevista saiu na Revista, com uma bela fotografia na capa, um primeiríssimo plano da cara. De Lisboa, o escritor seguiu para Moscovo. Quando regressou a Londres, viu a entrevista, traduzida, suponho que pela gente da agência dele. Gostou, e gostou da fotografia.

Tempos depois, recebi uma carta da agência, solicitando a fotografia para a contracapa da edição original de “A Casa da Rússia”, “The Russia House”. A agência pagaria o que pedíssemos, e a fotografia seria assinada. Uma oportunidade de ouro, visto que só os grandes fotógrafos tinham fotografado Le Carré, um escritor que sempre cuidou da pose e que respeitava a imagem e a estética da representação, e não resistia a aparecer em cameo nos filmes. Os fotógrafos idolatravam-no. Anton Corbijn, que melhor o capturou, acabaria a filmar “O Homem Mais Procurado”, uma fiel adaptação das luzes e sombras do universo Le Carré.

Provavelmente, a fotografia da edição inglesa seria a da edição americana. Num alvoroço, entreguei o pedido ao António Pedro Ferreira, para que respondesse logo, combinando o modo de fazer chegar o negativo ou o slide, não me lembro. Não voltei a receber correspondência da agência, o livro ia ser publicado. E foi. Sem a fotografia portuguesa. O fotógrafo era Terry O’Neill, um retrato estudado, como tantos que faria do escritor. Foi um dos seus retratistas favoritos. Um grande plano da cara, ocupando a contracapa. Terry O’Neill estava casado com Faye Dunaway nessa altura, e era um dos nomes grandes da fotografia. O que aconteceu?

O António Pedro Ferreira nunca respondeu à agência, porque a fotografia se tinha estragado na gráfica. Estava riscada. A única coisa que me disse, ao princípio, foi que oferecia a fotografia, antes de saber que estava danificada. As gráficas não tinham cuidado. Embaraçado, o meu amigo fotógrafo deixou o silêncio falar. Perguntei se não deveriam ter sobrado fotografias, tão boas como aquela. O A. P. F., que eu escolhera para o trabalho de fotografar Le Carré, manteve teimosamente que era aquela ou nenhuma. E aquela não podia ter sido.

E assim dei por mim a escrever uma longa carta a Le Carré pedindo desculpas, explicando o imbróglio, a gráfica, a teimosia do fotógrafo e sobretudo a ausência de uma resposta da nossa parte. Nem uma linha na volta do correio. Quando o livro já tinha sido publicado, com a assinatura de Terry O’Neill, tive uma sessão de descompostura com o A. P. F. Voltei a escrever, para dizer o que pensava sobre o livro, quando já se filmava a versão com Sean Connery e Michelle Pfeiffer. Recebo meia dúzia de linhas datilografadas, polidas, agradecendo o interesse e as palavras. Fim de comunicação. “David Cornwell, call me David”, dissera ele em Lisboa, ficara irritado? Nunca saberei.

Voltei a ver John le Carré muitos anos depois, na Cornualha, perto de Penzance, onde ele vivia à beira-mar, em Land’s End. No fim da terra. Passava em Londres apenas o tempo suficiente para tratar de assuntos, nunca mais de dez dias. Um amigo meu era amigo de um amigo dele. Fomos todos a um pub, num dia de chuva miudinha e rançosa, beber e conversar. O escritor estava mais velho. E, se possível, mais famoso. Falámos de Lisboa, da melancolia da cidade, da luz, dos pormenores gravados na imaginação. E falámos do Médio Oriente, onde passámos tempo suficiente. Era um genial contador de histórias, um mímico respeitável, cómico e sério ao mesmo tempo. Imitava as vozes, os maneirismos, era a melhor companhia que se podia desejar. O Alec Guinness (Smiley, na versão da BBC) era perfeito. Conhecia meio mundo, e era conhecido no mundo inteiro. Tinha uma vida internacional, viajada, e tinha uma vida monástica, disciplinada, para poder escrever. Todas as tardes, dava uma caminhada. O resto do tempo, escrevia. Continuava a gostar de whisky e a bebê-lo.

Terry O’Neill continuou a fotografá-lo, mas não é um dos cinco autores dos cinco retratos de John le Carré na National Portrait Gallery. Cinco. O homem tornou-se um tesouro nacional. Um dos retratos é de Lord Snowdon, que foi casado com a princesa Margaret. Numa das sessões de fotografia, a primeira, Lord Snowdon perguntou-lhe se podiam passar a nomes próprios, sem títulos. Claro, respondeu David Cornwell. Você tem mais a perder do que eu.

in  

A fotografia de John le Carré

18.12.2020

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Filipe Chinita - ainda de ave.asa.eva

* Filipe Chinita

0.
escreve  
tal como amas.vas!
só de dentro 
de 
ti
1.
eu amo a ave
e a.s sua.s
asa.s
2.
amo-a 
quando 
ela... eva (me) é
3.
amo 
a ave... 
que percorri 
de todas as asas
e de toda a (sua) quilha
porosa.de voo 
e vento
4.
amo-a
de a.braços.de braços
.
amo-a
de a.braços.de pernas
.
amo-a
de braços.de pernas
.
amo-a
de pé.s
de 
peitos.de pés.
em suas plantas 
e artelhos
amo-a
pernas acima.
nas pedras 
dos 
joelhos 
.
esculpindo 
e burilhando 
de boca... e escopro
uma bronzeada
estátua... de 
eva
5.
eva...
em (suas) água.s
de sal e sais.interior.es 
de 
sobre 
a toda a pele 
suando
(-nos) 
de 
amor
.
suando 
de 
odor.
es
.
em  
es.
correntes... 
virilhas
6.
amo
principalmente de a morder 
de (meus) dentes 
pelas cristas 
ilíacas
7.
sim
hoje... em dia
só mui dificilmente 
(ainda) gosto de mulher.es 
que (já) não tenha.m seios 
que se aguçem... 
de de... leite.
de boca.
saliva
e
língua
saliva
8.
que 
não tenha.m 
cristas ilíacas 
(ainda) 
salientes 
em 
(seus) 
picos.ósseos
em 
que te amo
me amo
(eu)
ficar
subindo 
e descendo-te
mordendo 
e remordendo-te
de todo.s o.s prazer.es
nos (seus) olhos
picassianos
plenos de 
brilho...
negro
e
jaspe
9.
sor
rindo
sorrindo-me
de puro deslumbramento
alegria de amar
prazer 
amor
10.
como 
se 
pura 'eva'.
humana.deusa 
nascida para 
o amor
e/ou 
o sexo... 
com amor 
11.
não digas... 
que não me amaste 
tantas vezes no (teu) olhar.
não (me) digas... 
que eras... só fingimento...
pois que não 
te creio
12.
pois que 
tu eras 
toda 
tu
toda 
'puta'
toda 
fêmea
toda 
d(o)ada
toda 
entregue
toda 
dádiva 
de 
ti
mulher
amante
para sempre
amada... em 
mim
.
fj
20.33
09.12.2020

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Filipe Chinita - 'urbano.augusto.os poemas do urbano.'

 


urbano.
no teu dia, Urbano, as palavras do amigo que até à morte te acompanhou.
.
urbano
para além desse teu estar sempre
do lado dos humilhados e ofendidos.explorados de todo o mundo
para além dessa tua enorme sensibilidade
para o belo e o feminino
para além dessa tua escrita como quem respira
para além dessa tua tão doce maneira de ser
que te faz o mais terno
e o mais humano
dos homens
o que haverá em ti urbano
que te distingue de todos os demais
humanos.e comunistas
.
humildemente
eu penso ser
essa tua quase total capacidade
para.de te saberes colocar
no lugar do
outro
.
respeitando sempre as diferenças que de ti o distinguem
.
respeitando-o enquanto indivíduo humano
.
e dando-lhe o seu justo valor
.
mesmo quando deles
frontalmente
discordas
.
uma pessoa em que a amizade
um dia solidamente estabelecida
sobreleva sempre uma
qualquer dissensão
política
.
essa tua capacidade.desejo de sempre o outro
com toda a frontalidade.paciência.e ternura
esperares um dia acolher
no nosso
seio
.
porque nós, urbano
o que no fundo, queremos
é tão só caminhar com todos
os demais humanos
irmanados de
livre vontade
a nosso
lado
.
fj
19 de Maio de 2013
.
[...]
urbano.
e foram rubras.quentes.em sangue
e muitas lágrimas
aquelas palmas.
tinham a cor da inteira bandeira
que sobre ti - como pedido -
levavas
.
"muitas lágrimas. eu chorei sim. muito.
eu quis muito estar lá.
num cantinho só
para mim.
ninguém me visse
mas a minha homenagem eu lhe queria ali fazer.
e recordava como, bem doente,
mais de 700 km fiz
para homenagear
pela vez última
o josé.
pela vez última
não.
está cá bem dentro, contigo que és meu amigo, com o urbano também,
com tantos outros, bem dentro de mim,
o leio, o recordo… quem está connosco,
dentro de nós, não morre nunca
– filipe
..."
09agosto2013
poemas - filipe chinita em 'urbano.augusto.os poemas do urbano.'

domingo, 6 de dezembro de 2020

Filipe Chinita - liberdade. abril.maio de 74

*  Filipe Chinita

liberdade.
abril.maio
de 74
.
enquanto
os que (depois...)
dela se reclamam (contra nós! imaginem só!)
submissos
de rabinho entre as pernas
não mexiam... nem
uma palha!
e
viviam
caladinhos...
embeiçados de fátimas...
fados... deus.es e pátrias...
medievas d' aqui
e d' além...
mar
.
fj
13.20
06.12.2020

Ferreira Fernandes - O caso vulgar na tenda à porta de São Bento

  Ferreira Fernandes
OPINIÃO

Já conhece o conceito do nosso restaurante?”, devia ter perguntado o empregado de mesa ao cliente Chicão, quando ele entrou na tenda.

6 de Dezembro de 2020, 7:20

No sopé da Assembleia da República montou-se uma tenda de aparentes pacatos insurretos. Nesta República que ainda não tem meio século, já ali houve pedreiros a sequestrar deputados, corporações insultando governos e até polícias ameaçaram galgar pela escadaria. Desta vez eram cozinheiros do movimento Sobreviver a Pão e Água, e com a barriga em greve de fome – bendito povo em que até os cozinheiros parecem ter dedo para as palavras. Parecem, mas será assim?

Já conhece o conceito do nosso restaurante?”, devia ter perguntado o empregado de mesa ao cliente Francisco Rodrigues dos Santos, o Chicão, quando ele entrou na tenda. Mas não havia empregado nem mesa, só a tenda. Sem a pergunta e sem reserva, o Chicão sentiu-se perdido. Para dizer a verdade, os cozinheiros também estavam perdidos, mas eles davam a impressão de não o sentir nem saber.

Para dizer outras verdades, os cozinheiros eram meia dúzia de famosos donos de restaurantes, com a presunção de serem os únicos a servir um drama nacional. De bom até então só tinham o título do tal menu sugestivo “A Pão e Água”, o que era mau. Chamava a atenção como uma boa tabuleta numa casa de maus repastos. A quantas falências já isso levou!

A tenda apresentava o cenário comum das insurreições. Havia a confusão igualitária das revoluções que ainda não foram avante. Os insurretos anónimos estavam por ali espalhados. Havia ainda o sublinhar do sacrifício, os cozinheiros derramavam-se pelas cadeiras, exaustos como o Remexido na serra algarvia, sem estratégia.

O cliente Chicão entrou e logo se revelou tenrinho. Pediu licença, sentou-se, juntou as palmas das mãos e meteu-as entre as pernas – não é alegoria, é a descrição factual (vejam o vídeo  https://www.youtube.com/watch?v=aNnylaqvCrA&feature=emb_title). Depois, lembrando-se que afinal de contas era líder de um partido antigo, ali ao lado representado na casa da democracia, disse: “O CDS…”

Logo da turba dos cozinheiros emergiu um mais igual que os outros, Ljubomir Stanisic, o cozinheiro a ferver: “Querido, posso pedir-te um favor? Se voltares a falar de partido, vou ter de pedir para saíres...” Disse-o em tom de banho-maria, é certo. Mas violento como um populista que foi acampar para a entrada da casa dos políticos, para falar com eles, e quis aboli-los, antes de falar com eles.


Ljubomir Stanisic, à esquerda, e Francisco Rodrigues dos Santos, à direita DR

Uma gentil chefe de sala levou Chicão para o empedrado da rua. Ser expulso de um dos restaurantes caros dos cozinheiros ali em luta já seria uma humilhação. De uma tendinha, então…

Talvez tudo pudesse explicar-se pela falta de pundonor de Chicão, um caso infeliz de tipo com alguma grimpa, mas sem mais. Ainda o outro dia, discursava ele no Funchal e foi filmado catatónico só por causa de ligeiro tremor de grau 5,3 da Escala de Richter. Calado e esbugalhado.

A história desta semana também podia contar-se como ironia com pitada cultural. O comunista alemão Bertolt Brecht, que passou a vida a dar ânimo aos proletários de todo o mundo, fez um poema em que convocou Alexandre da Macedónia, o Filipe da Armada Invencível, o Frederico II da Prússia e outros grandes vultos da História. E, a seguir a cada nome sonante, Brecht punha uma perguntinha que desenterrava os ausentes que há em cada arco de triunfo e na memória de cada feito. Por exemplo: “O jovem Alexandre conquistou as Índias./ Sozinho?”.

O poema chama-se Perguntas de um Operário Letrado e os dois versos que aqui me interessam são: “César venceu os gauleses./ Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?” Tungas! Os de baixo, sempre esquecidos…


Então, o incidente da tenda de São Bento, esta semana, quando um jovem líder político foi varrido da História e um cozinheiro elevado, não simplesmente a chef, mas a chefe, a porta-voz do drama de uma profissão inteira, podia ser invocado como suprema ironia. Podíamos imaginar o Brecht vingado, a levantar-se de punho erguido no pequeno cemitério de Berlim onde jaz… Mas essa versão é falsa e eu venho aqui apresentar melhor interpretação.

Em Saint-Denis, berço dos antigos reis franceses e arredores vermelhos de Paris, transformou-se um convento no museu de Paul Éluard, o maior poeta surrealista. Mais ou menos pela mesma altura (década de 1930, anos de todos os populismos) em que o alemão Brecht celebrou milhares de ajudantes de Júlio César na Gália, também o francês Éluard escreveu a frase: “É preciso retirar a César tudo o que não lhe pertence”.


Paul Éluard

Acontece, e isso não é incompatível (talvez só um pouco surreal), nesse museu, antigo convento, há uma reprodução do quadro de Rubens “O Imposto devido a César”, com Jesus ensinando o bíblico “dar a César o que é de César”. No que ficamos? No retirar (de Éluard), ou no pagar (de Jesus)?

Aproveitando o facto de o quadro estar por estes dias a ser restaurado em Saint-Denis, volto ao assunto desta crónica, a restauração que está nas ruas da amargura por cá (e também em Saint-Denis e Manhattan e Londres…, mas não nos dispersemos). E volto com a lição de Brecht e de Éluard, ambos certeiros sobre a necessidade de desnudar a injusta acumulação de fama e de proveito dos poderosos.

E junto essa lição à de Rubens e de Jesus que acautelam o que está estabelecido, porque os homens devem ser mudança mas também continuidade. Justiça e prudência, eis duas das ambições que mais nos fizeram avançar – e quanto mais fortes são quando se juntam!

Sobretudo volto a uma lição comum do quarteto que, receio, não foi tida em devida conta. Os quatro respeitaram as palavras, pintaram-nas bem. Sabemos o que qualquer deles – Brecht, Éluard, Rubens e Jesus – dizia ou pintava. E o que cada um queria dizer.


 O Imposto devido a César, de Rubens

O grave na história da tenda no sopé da Assembleia da República é o abandalhamento da palavra e a difusão desse nada. Porque não tendo a palavra clara, o populismo exprime-se na plenitude do seu nada ter para dizer. É Trump a tuítar com maiúsculas “GANHEI E À GRANDE” um totoloto que ele não jogou e a lista da Santa Casa desmente. É, à porta do Parlamento, mandar-se um político calar a sua condição de político.

Eu sei que apesar da manifesta fraqueza dos populistas com a palavra, há quem diga que eles ganham força com as palavras que os atacam. Pois eu digo: gentes de pouca fé na palavra. Ou têm é preguiça.

Jornalista

sábado, 5 de dezembro de 2020

Filipe Cinita - abril.maio / de 74

 * Filipe Chinita

abril.maio 
de 74
.
nós éramos 
o glorioso heróico e mítico partido comunista 
- o nunca! suficientemente cantado 
e re.conhecido -
nós éramos 
o 'partido' 
o único 
e o sem mais nome
vindo 
de antes do fascismo... 
e da negra noite do mesmo
vindo
da vitória 
sem adjectivos
sobre o nazifascismo
vindo
da resistência 
de 48 anos ao (nosso) fascismo
vindo 
da morte.da tortura.e das prisões 
e sempre ressurgi(n)do mais límpido de todas elas
o rosto 
- qual uma bandeira - 
sempre bem erguido... ao alto! 
como os corações... e as mãos sempre limpas
um 
partido... 
vindo do (ainda assim) 
ignorado e humilde orgulho 
de sempre resistir... na clandestinidade
um
partido... 
de homens e mulheres...
de antes quebrar que torcer
um 
partido
de sempre! calar 
e morrer... se necessário fosse
um
partido...
vindo do ilimitado poderio
do internacionalismo proletário
estrela de cinco continentes.num só planeta.terra
um 
partido
vindo do imenso 
e invencível campo do socialismo 
que varria o planeta todo da europa até à ásia 
às ásias... 
pois cumpre não esquecer 
o heróico e mítico vietnam de ho chi min 
e de todo um povo 
em armas
ainda 
os quantos 
chacinados foram na indonésia...
não esquecendo 
do outro lado do oceano 
uma outra cuba.um outro ovo de colombo... 
a também heróica.mítica.guerrilheira e concreta cuba
seta cravado no coração 
do imperialismo
americano
sim
sendo 
portadores de tudo isso...
e
dando sempre!
o tudo! e o melhor de nós! 
ao nosso.próprio 
povo
quem nos poderia 
(a nós...) deter
e vencer
?!
.
fj
02.55/03.19
05.12.2020/entre camas
escrito a este instante.de um.só mesmo fôlego e sem revisões
nós 
que vínhamos 
do tempo e da luta 
pela conquista das 8 horas.de trabalho 
nos campos do alentejo.e ribatejo 
.
nós 
que vínhamos 
do concreto e simbólico 
sangue jovem e prenhe de catarina
.
nada... 
me pod(er)ia orgulhar mais na vida 
do que ser parte (ainda que ínfima) 
dessa gente... 
única! 
desses 'analfabetos' 
proletários.além 
do tejo 
(os mais belos.cultos.e nobres humanos 
que me foram dados 
conhecer) 
cujos 
rostos re.conheci 
- central e alto alentejo - 
quasi rosto a 
rosto... 
.
como de outros... 
fazer e ser
parte
?!

Poemas de Álvaro Feijó

* Álvaro Feijó







In Blog Pao Integral http://paosointegral.blogspot.com/2014/10/iv_15.html

Álvaro Feijó - Fundiu-se o olhar do poeta em lágrimas salgadas

+Álvaro Feijó 

«Nasci numa manhã com neblina de bronze / sobre o rio. / O Sol era uma incógnita na bolsa esverdeada do horizonte / e, embora primavera, uma manhã de outono.» [Os Poemas de Álvaro Feijó*, 1961]

POEMA

Fundiu-se o olhar do poeta em lágrimas salgadas
e o poeta não quis cantar o que os seus olhos viram.
É que o poeta só cantava
para as meninas dos balcões floridos
de cactos e de cravos,
para aquelas
que sonham com estrelas
e príncipes de lenda.
- E preferiu cegar.
Fechar os olhos ao vaivém da rua
e continuar morando em sua Torre de Marfim.

Ah! Poeta inútil!
Enrouqueceu a cantar as líricas inúteis
aos cravos das janelas
das meninas fúteis
e ninguém mais se lembrará de ti.
Mas se cantares a rua, a fome, o sofrimento,
se abrires os olhos sobre o nosso mundo,
se conseguires que toda a gente o veja
e o sinta, e sofra, só de ver sofrer,
ninguém se lembrará de ti, poeta,
mas terás feito a tua luta,
e, nela,
justificado uma razão de ser.

Álvaro Feijó, in «Corsário (1940)