domingo, 26 de dezembro de 2021

Um texto natalício de Santos Maria de Fátima


* Santos Maria de Fátima 

Nem a rapariguita seria virgem ao parir a criança, nem se sabe se o rapaz, a traccionar o jumento em que ela se sentava, muito prenha, seria carpinteiro ou se seria outra a sua profissão.

De que, já adulto,  o menino tenha ficado o nazareno por ter nascido em Nazaré, não há certeza de que seja verdade; e nem sabemos, com o confirmar de documentos, escavações, pedacinhos arqueológicos, que fosse meia noite certa quando a criança mostrou ao mundo o cocurito da cabecita entre as pernas de sua mãe que o dava a este mundo. 

Sabemos tão pouco dessa realidade que nem temos certeza se foi há dois mil e vinte e dois anos, se antes ou depois, o que, a mexer-se, transtornaria, entre outras coisas, o nosso prório dia de aniversário.

Sabemos, isso sim, que andavam os romanos a dizimar os povos por  essa África e Ásia e Europa adiante. Dos romanos a gente sabe, comprovado nas muitas cabeças e vestimentas em pedra cheias de nervuras e em colunas quase sempre sem tectos e em pavimentos feitos de muitos quadradinhos que inundam os maiores museus; ou nos enormes aquedutos e estradas e pontes que ficaram a dizer-nos: eles andaram por aqui.

Mas, terão andado, lá pelo oriente, a matar recém nascidos numa caça a um presumível salvador daquelas gentes massacradas, já ao tempo, pelos poderosos?! 

Vamos supor que Herodes, sim senhora, usou esse modo de limpeza, assim o diria eu, para calar o povo; mas sabermos de pormenores de uma manjedoura e de um burro e de uma vaquinha, e saber que não tiveram lugar que os abrigasse, a mulher prenha e o seu esposo; e saber onde acabou por ser o local de nascimento duma dessas crianças salva das mãos dos soldados; e saber, ainda mais, as horas certas do primeiro berro desse que contam pelos catecismos, disso não temos prova concludente; isso, a gente conta de modo não comprovado. 

Ora eu que me pelo por uma boa ficção, eu que dou dinheiro por um mentiredo bem esgalhado, fico, a cada ano, embevecida do facto insofismável de milhares e mais milhares de gentes fazerem a festa em torno do que nada mais é que uma histórinha deliciosa e linda num enlear de mentirinhas. 

É que nem a estrela de Belém, assim chamada, aquela que montamos no topo desse outro enigma que é a árvore, terá sido um fenómeno dos céus científicamente comprovado. 

É assim que eu, a cada ano, numa devoção silenciosa que nem explico, medito no quanto somos, homens e mulheres desde século XXI, necessitados de rituais mágicos, de uma história de fadas que nos acalente o sono.

(MF)

 https://www.facebook.com/fatima.santos.378/posts/10224108928043866

sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Carlos Coutinho - Libações

* Carlos Coutinho  

   AFINAL, não vai haver cabrito assado logo à noite na consoada, como chegou a estar planeado. Mas, uma vez mais, dentro de algumas horas, ninguém sabe quantas, uma judia universalmente consagrada como a Virgem vai dar à luz, nas palhas ásperas de uma manjedoura de último recurso, um bebé que há-de abrir uma nova era na história do mundo. 

   Por acaso, a Igreja Católica, através do Papa Júlio I, só no século IV acabou por descobrir que foi a 25 de Dezembro que o Messias nasceu, facto que os ortodoxos situavam e ainda situam entre 6 e 7 de Janeiro. O que é certo é que o futuro rabino, ou “meu mestre” na semântica bíblica, teve a aquecê-lo o bafo de um burro e de uma vaca, ambos muito religiosos, e uma semana depois, conduzidos por uma estrela móvel, três monarcas absolutos, como todos eram então, foram a Belém oferecer aos pais do menino potes de ouro, de incenso e de mirra. 

   Aconteceu tudo isto há 2 021 anos e, por razões insondáveis, não vai haver cabrito assado nesta consoada, mas as rabanadas não vão faltar, apesar de estarmos na Margem Sul, com as luzes de Lisboa a insinuarem-se na escuridão aquosa da longínqua Lisboa inverniça.

   Que eu saiba, não desceu ainda pela chaminé o Pai Natal com as suas prendas de sapatinho, todas, aliás, já compradas e embaladas, mas a mãe Natália vai participar no multifamiliar repasto, o que acontece pela primeira vez na minha longa e atribulada vida. 

   Devo frisar que esta senhora é mãe do anfitrião, possuindo ele o nome de Ramiro, um rei visigodo que deixou muitos Ramires ilustres na descendência. Um deles chegou mesmo a acolher em sua casa à beira-Douro o poveiro e melífluo Eça de Queirós. 

   Esse remoto rei ibérico teria agora a idade do Menino que está para de novo nascer em Belém, calcule-se.

   Estou mais que preparado para a comezaina e não me esqueço de que foi igualmente num dia 24 de Dezembro, como o de hoje, mas há 287 anos, que o grande iluminista Voltaire, pai das melhores dúvidas e metáforas panglossianas, publicou as suas “Cartas Filosóficas”, escancarando a porta à conquista de quase todas as certezas que valem a pena. 

   Também Alves Barbosa, o lendário ciclista do Sangalhos que marcou pontos na Volta à França de 1956, nasceu hoje em Vila Verde, perto da Figueira da Foz, só que em 1931. 

   Além do bacalhau e da troncha cozidos com batatas, não são escassos, como se vê, os pretextos que tenho para uma boa libação, esta noite, com a persistente chuva, lá fora, a dar de beber à agricultura sedenta de 2021.

https://www.facebook.com/carlos.coutinho.71868964/posts/455101629463184

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

António Galopim de Carvalho - AÇORDA DE MÃO NO BOLSO

* António Galopim de Carvalho 

Nesses anos da minha infância, a fome nos campos do Alentejo era muita. Sem um quinhão de terra para cultivarem, as famílias viviam das magras e esporádicas jornas, ao sabor dos caprichos do Sol, das chuvas e das geadas. Sem trabalho, os cifrões cresciam no livro dos fiados, na venda da aldeia, sem esperança de os ver reduzir ou apagar. Os homens, nunca as mulheres, acabavam por vir para a cidade, pedir esmola. Vinham aos grupos de três ou quatro, não para se imporem pelo número, mas porque se envergonhavam e intimidavam se viessem sozinhos.
.
Batiam-nos à porta, e tendo vindo abrir-lha, cumprimentavam de chapéu na mão e o que falava apenas dizia que não tinham trabalho e que precisavam de levar de comer para os filhos. Voltando à cozinha, a chamar a mãe, dizia:
.
- Estão ali os trabalhadores do campo a pedir!
.
Não lhes chamávamos pobrezinhos nem, muito menos, mendigos porque, de facto, não o pareciam nem eram. Tinham dignidade e majestade estes homens e, na resignação que mostravam, adivinhava-se a revolta dentro do peito. Pediam pão ou algum dinheiro para comprarem avio que levassem de volta para casa. 

A minha mãe respeitava-os profundamente e dava-lhes o que podia, como se fossem irmãos. Sem que o dissesse abertamente, ensinou-me a amá-los. E, embora a vida fizesse mais de mim um menino, um rapaz e um homem da cidade, sempre me senti filho do campo e irmão dos camponeses

Com eles aprendi o que é “comer pão com navalha”, uma forma muito expressiva de dizer pão sem conduto, e que “açorda de mão no bolso”, no seu sentido crítico pleno de humor, muito comum neste povo, significa que, não havendo mais do que o caldo e o pão migado, só se usava a mão que pegava na colher.

https://www.facebook.com/Prof.Galopim/posts/2755750954731409

sábado, 18 de dezembro de 2021

José Gameiro - Natal sem pandemia

DIÁRIO DE
UM PSIQUIATRA

 José Gameiro 


Apesar de há um ano a maior parte das famílias se ter reunido, decidimos ficar sozinhos

“Se calhar o que eu lhe vou dizer vai chocá-lo. Não me leve a mal, isto é apenas um desabafo e um pedido de absolvição.” Pensei, será que ao fim de tantos anos desta profissão já me olham como se fosse um padre? Reconheço que alguns que são bem mais eficazes do que nós. Compreendem, fazem pensar, discutem alternativas e absolvem, ou pelo menos as pessoas sentem-se menos culpadas depois de conversarem. Não precisei de a esclarecer, era obviamente uma metáfora.

— Confesso, desculpe retiro o confesso, mas não consigo encontrar outra palavra. Os Natais para mim nunca foram grande coisa. Na infância eram bons, a excitação dos presentes, a família toda reunida, a noite em quase não se dormia. Depois vieram as confusões. Mãe para um lado, pai para outro. Lembro-me perfeitamente de pensar que não queria crescer, depois claro que compreendi, mas dizia aos meus pais que mais valia terem estado quietos, porque é que casaram? Mas pela boca morre o peixe e casei-me. Não me venho queixar do meu marido, mas quando o conheci vinha com brindes. Sabe o que é?

Acenei com a cabeça e um sorriso, mas não lhe disse que atualmente uma parte significativa do trabalho com famílias e casais tem a ver com “os meus, os teus e os nossos” e as confusões inerentes a estas dinâmicas.

— Nem sempre foi fácil a relação com as minhas enteadas, ainda por cima sempre viveram mais connosco do que a mãe e o padrasto. Mas quando começou a pandemia a situação inverteu-se. A mãe vive fora da cidade, numa casa grande, cheia de espaço, foi mais fácil estarem lá e terem aulas virtuais. Ficámos os dois sozinhos, nunca tivemos filhos e não estou arrependida, pelo que vejo à minha volta, só dão chatices. Essa coisa do instinto maternal é uma grande treta.

Penso que a senhora não se apercebeu, mas qualquer coisa me incomodou na frase dela, apesar de nunca se falar do instinto paternal. Já é tempo de os homens terem algum instinto, além do sexual...

— Mas onde é quero chegar é ao Natal. Nunca consegui convencer o meu marido a irmos embora, só os dois para qualquer lado quentinho. Já não tenho pais, ele também não, mas sempre me disse que não conseguia estar sem as filhas. Eu até posso perceber, mas sempre foi uma grande seca. Ir levar as meninas, ir buscar as meninas, fazer centenas de quilómetros em dois dias, só para comemorar um dia do ano... Não lhe sei explicar, mas nunca consegui ter uma ligação forte com as minhas enteadas. Deve ser a falta de laços biológicos, vocês é que sabem explicar.

Não respondi a esta afirmação/pergunta, mas sei que nem sempre é assim, algumas destas famílias até criam laços fortes, mas não podem ter o progenitor que está do outro lado a dificultar-lhes a vida.

— Com a pandemia, e apesar de no último Natal a maior parte das famílias se ter reunido, decidimos que era mais prudente ficarmos sozinhos. Ajudou muito o ter feito uma surpresa. Um dos poucos países que continuava aberto era o México. Uns dias de sonho, uma verdadeira lua de mel, só os dois. O meu maior desejo era que voltasse a haver confinamento. Não desejo mal a ninguém, mas foi tão bom.

Estava na altura de voltar a falar na absolvição.

— O meu papel não é culpar as pessoas, bem basta a culpa que carregam, tantas vezes injusta. Penso que é mais tentar compatibilizar os seus desejos com a realidade, com o menor sofrimento possível.

Enganei-me na “deixa” que lhe dei.

— Bem me parecia que me iria ajudar. Qual é a sugestão que me faz para ter uma boa desculpa para convencer o meu marido a ir para o calor?

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2564/html/revista-e/vicios/diario-de-um-psiquiatra/natal-sem-pandemia

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Mário de Carvalho - «Interessa-me prosseguir este caminho de uma literatura que já tem oito séculos»

CULTURA|LITERATURA

AbrilAbril

21 DE NOVEMBRO DE 2021

  •  

Os primeiros contos ficaram na gaveta, porque os amigos o desencorajaram, mas, ao fim de 40 anos de carreira literária, Mário de Carvalho tornou-se uma voz maior da literatura portuguesa.

 

São assinalados 40 anos de carreira literária de Mário de Carvalho na próxima segunda-feira. Créditos/ Lusa

Desde que publicou os primeiros textos, Contos da sétima esfera (1981), nunca mais precisou de tomar a iniciativa de levar os textos a qualquer lado, porque passou a ser sempre solicitado, até hoje, 40 anos depois de iniciada uma carreira literária em que experimentou todos os géneros, menos a poesia, que considera «demasiado nobre para [o seu] alcance».

Para assinalar este percurso literário, Mário de Carvalho vai ser homenageado na segunda-feira, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Recuando quatro décadas nas suas memórias, o escritor recorda, em entrevista à agência Lusa, o início desta caminhada, fortemente alimentada pela banda desenhada, pela biblioteca do pai e pelos amigos, mas também por estes desencorajada.

«Fui escrevendo uns contos, já desde há algum tempo que escrevia, desde os anos [19]60/70. Escrevi algumas coisas que mostrei a amigos meus que me desencorajaram: ‘Os surrealistas já fizeram isto há muitos anos, deixa-te disto’. E eu deixei».

Mas a necessidade de escrever foi-se impondo, como um «impulso difícil de contrariar», o de lançar no papel as ideias, as situações, as personagens que lhe ocorriam.

Mário de Carvalho, hoje com 77 anos, acredita que isso teve que ver com o seu «mundo de leituras«, porque em jovem foi «um voraz leitor de toda a espécie de livros».

Assim, foram-se somando os contos até que os levou à editora Vega, na altura dirigida pelo escritor João de Melo, que gostou dos textos.

«A partir daí, foram editados e passei a ser solicitado, ou seja, tenho ideia de que nunca tomei a iniciativa de levar os meus textos a qualquer lado, porque houve sempre alguém que mos pediu até hoje, livro após livro, editora após editora», contou.

Na altura já exercia advocacia, a área em que se licenciou e para a qual tinha a vida orientada.

«Os contos foram surgindo a pouco e pouco e, na altura, de um advogado que escrevia livros, passei a ser um escritor que também era advogado», até que finalmente deixou a advocacia.

A escrita ficcional impôs-se-lhe por gosto e sente que a certa altura adquiriu facilidade em criar situações e personagens, confrontando-as sempre com o que já conhecia, quer da literatura, quer da Banda Desenhada.

«Fui um leitor fiel e constante de uma revista que se chamava Cavaleiro Andante e de outra que circulava muito entre miúdos que era o Mundo de Aventuras. Isto fornecia-me um manancial de personagens, de situações complicadas, de avanços e recuos», recorda.

Para o então jovem Mário de Carvalho, era «muito interessante essa consulta semanal do Cavaleiro Andante, a troca de impressões com os colegas que liam a mesma revista», e isso deu-lhe «alguma agilidade na conceção de personagens e de situações dramáticas».

Mas também havia as «leituras sérias», e cedo começou a ler Eça de Queiroz e Aquilino Ribeiro.

«O meu pai tinha uma biblioteca grande, boa, e deixava-me mexer nos livros à vontade, a não ser em alguns livros que depois percebi que tinham um caráter erótico, que estavam numa estante lá em cima, num ponto onde não conseguia chegar. De resto facultava-me os livros e eu andava com eles, levava-os para o liceu e para onde quisesse, e ia lendo sempre».

Mais tarde foi apresentado a Jorge Luis Borges, que o deixou «absolutamente fascinado», e a outros autores latino-americanos, mas sempre foi um leitor muito variado.

«Era capaz de ler Sob a bandeira da coragem, de Stephen Crane, ao mesmo tempo tentar ler O Malhadinhas, do Aquilino – e digo tentar porque não era nada fácil -, mas também ia avançando para o Eça e algum Camilo Castelo Branco».

Mário de Carvalho reconhece que havia um contexto que facilitava tudo, o facto de os seus amigos também serem bons leitores, o que proporcionava que trocassem e comentassem livros.

«Encontrávamo-nos todos os dias e, entre as muitas coisas sobre que se conversava, nomeadamente política, também se conversava sobre livros, e os livros circulavam».

Ao longo da sua vida literária, o escritor já passou por vários géneros, diz que tem «o gosto de borboletear», varia muito e muda de registo, o que, confessa, lhe dá algum prazer.

Tem andado pelo conto, pelo romance e por várias épocas, conforme o que se lhe apresenta, mas nunca escreveu poesia, nunca teve «esse atrevimento».

«Não sei quem foi que disse, que isto da poesia é mais da arte da magia do que outra coisa. Não é propriamente literatura, é magia e eu de mago não tenho nada, por isso não, nunca, a não ser, talvez, na adolescência tenha feito um poema ou outro, como os outros faziam, mas nunca me atrevi a ir para esse terreno, que me parece demasiado nobre para o meu alcance».

A escrita de Mário de Carvalho também é feita de obsessões, de certos temas que se impõem e que não o deixam descansar enquanto não estão prontos.

Foi o caso de um livro que o «obcecou durante anos» e que seria publicado mais tarde com o título O livro grande de Tebas, Navio e Mariana, e que teve que ver com uma reminiscência que tinha desde miúdo: estava a ver uma revista policial e havia uma referência à cidade de Tebas, e esse nome ficou-lhe «a ressoar durante anos».

A mudança de registo literário em Mário de Carvalho relaciona-se sempre com o tema que escolhe tratar, e o autor afirma ter muito cuidado em manter uma linguagem adequada ao assunto e à época, estudando previamente para isso, se for o caso: «Tenho cuidado na seleção de vocábulos, mas também o próprio ritmo das frases é diferente».

«Temos que ter cuidado com isso e procurar encontrar um tom, o ritmo, ler coisas de época e procurar cumprir o pacto com o leitor, o célebre pacto com o leitor, ou seja, se eu estou a escrever sobre o século XVIII, estamos no século XVIII e não há frases, nem realidades posteriores. Se estou a escrever sobre os anos 20, estamos no mundo dos anos 20 e penso que o leitor espera isso, que o autor se informe e não entre pela inverosimilhança».

Sobre uma apreciação que por vezes é feita às palavras que utiliza, como sendo difíceis, Mário de Carvalho considera não ser muito correta, pois limita-se a utilizar as palavras que lhe parecem adequadas à situação que está a ser tratada, para «acentuar mais matizes e procurar certos efeitos».

«Não tenho nenhuma pretensão de deslumbrar com palavras difíceis, de forma nenhuma. As palavras que utilizo não são difíceis para mim nem para outras pessoas da minha geração e, portanto, se alguém não as conhece, o problema não é meu, o problema é que as pessoas estão muito ligadas ao vocabulário básico elementar das televisões e das rádios, quando o nosso vocabulário atual é muitíssimo mais versátil e muitíssimo mais rico e está lá para ser empregado, não está para ser omitido».

Se isso significa vender menos livros, é algo que não o aflige, porque não é essa a razão por que escreve: «Interessa-me prosseguir este caminho de uma literatura que já tem oito séculos, que não é de agora, e de vez em quando não é mau darmos uma espreitadela para aquilo que está lá para trás e que nos formou».

Os trovadores, os homens do renascimento, escritores «perfeitamente fascinantes, como Gil Vicente», ou o «espantoso mestre da língua e da clareza» Padre António Vieira são alguns dos autores que de vez em quando revisita.

Olhando para trás, não tem razões de queixa: «Nunca fui um chamado best seller, mas os meus livros têm-me corrido razoavelmente e tanto que, ao fim de 40 anos, eu ainda estou para aqui», já com «uma certa tranquilidade», sem essa «efervescência e emoção de outros tempos».

«As coisas seguem o seu ritmo e penso que, sem falsas modéstias, há um lugar marcado na nossa literatura que não é minha, não fui eu que inventei, são oito séculos, e eu sinto-me a trabalhar nessa base, sou uma voz que se soma a oito séculos de experiência literária e de avanços e recuos neste campo da literatura».

Nascido em Lisboa, em 1944, combatente da ditadura, que o levou à prisão, Mário de Carvalho estreou-se na literatura aos 37 anos, com Contos da sétima esfera, publicados em 1981.

Desde então, entre romance, novela, conto, ensaio, crónica, teatro e literatura para a infância, soma mais de 30 títulos, entre os quais se encontram Um deus passeando pela brisa da tardeA inaudita guerra da avenida Gago CoutinhoOs alferesEra bom que trocássemos umas ideias sobre o assuntoApuros de um pessimista em fugaFantasia para dois coronéis e uma piscina e Se perguntarem por mim, não estou seguido de Haja harmonia.

Os prémios chegaram desde logo com as primeiras obras, como o Prémio Cidade de Lisboa e o Prémio D. Dinis, atribuídos ainda durante a década de 1980.

Entre outros, recebeu os Grandes Prémios de Romance e Novela, Conto e Teatro da Associação Portuguesa de Escritores (APE), o prémio do PEN Clube Português, de narrativa e de ensaio, o prémio internacional Pégaso de Literatura, o Prémio Fernando Namora, por duas vezes, o Grande Prémio de Literatura dst e o Prémio Vergílio Ferreira, de carreira, da Universidade de Évora.

Em 2020, recebeu, pela quarta vez, um grande prémio da APE, este de Crónica e Dispersos Literários, pelo livro O que eu ouvi na barrica das maçãs.

No ano passado publicou igualmente Epítome de pecados e tentações, uma nova coletânea de contos e novelas.

Lusa

https://www.abrilabril.pt/cultura/interessa-me-prosseguir-este-caminho-de-uma-literatura-que-ja-tem-oito-seculos

 


segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Poemas de Filipe Chinita

 * Filipe Chinita

madrugada 
de solitário
(prazer)
amando-
me
.
nada 
como 
à 01.50 da madrugada
me apetecer... 
esquartejar 
metade 
de 
um 
dos (meus) duros queijos 
de ovelha alentejanos 
mergulhados... 
durante 
meses
em frascos 
de azeite 
e louro
colocando-o 
aprisionado na mão esquerda 
e a navalha de a minha direita
cortando-o... nas mais finas 
em que me possa
eu exprimir
deixando
-lhe 
brilhar... 
os interiores olhinhos 
repassados de prazer
que lhe dão 
um sabor 
único...
tão 
único... 
que me deu
agora mesmo 
mesmo! a estas horas 
uma desalmada fome
de me deixar inundar 
da sua intensidade 
na
minha boca...
tomando-a toda.
de sabor...
tomando-me todo.
de prazer... 
até 
ao cérebro
.
fj
02.02
21.11.2021
13:19



amar... é perdermo-nos de nós.no outro
fundindo-nos... num outra identidade.
mútua. e não mais individual.
nem que por momentos
.
fj
12.59
22.11.2021


diria mais...
amar... é sermos o outro 
e não mais (só) nós.próprios

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Ricardo Reis - Deixemos, Lídia, a ciência que não põe

* Ricardo Reis 

Deixemos, Lídia, a ciência que não põe

Mais flores do que Flora pelos campos,

        Nem dá de Apolo ao carro

        Outro curso que Apolo.

Contemplação estéril e longínqua

Das coisas próximas, deixemos que ela

        Olhe até não ver nada

        Com seus cansados olhos.

Vê como Ceres e a mesma sempre

E como os louros campos entumece

        E os cala pràs avenas

        Dos agrados de Pã.

Vê como com seu jeito sempre antigo

Aprendido no orige azul dos deuses,

        As ninfas não sossegam

        Na sua  dança eterna.

E como as hemadríades constantes

Murmuram pelos rumos das florestas

        E atrasam o deus Pã

        Na atenção à sua flauta.

Não de outro modo mais divino ou menos

Deve aprazer-nos conduzir a vida,

        Quer sob o ouro de Apolo

        Ou a prata de Diana.

Quer troe Júpiter nos céus toldados,

Quer apedreje com as suas ondas

        Neptuno as planas praias

        E os erguidos rochedos.

Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.

Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.

        Por isso as esqueçamos

        Como se não houvessem.

Colhendo flores ou ouvindo as fontes

A vida passa como se temêssemos.

        Não nos vale pensarmos

        No futuro sabido

Que aos nossos olhos tirará Apolo

E nos porá longe de Ceres e onde

        Nenhum Pã cace à flauta

        Nenhuma branca ninfa.

Só as horas serenas reservando

Por nossas, companheiros na malícia

        De ir imitando os deuses

        Até sentir-lhe a calma.

Venha depois com as suas cãs caídas

A velhice, que os deuses concederam

Que esta hora por ser sua

Não sofra de Saturno

Mas seja o templo onde sejamos deuses

Inda que apenas, Lídia, pra nós próprios

Nem precisam de crentes

Os que de si o foram.

s.d.

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 

 - 162.

 

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Daniel Faria - Homens que são como lugares mal situados

* Daniel Faria

Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens sem fuso horário
Homens agitados sem bússola onde repousem
Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas
Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

António Gedeão - Dez reis de esperança

 * António Gedeão

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Teresa Beleza. «Há decisões judiciais indignas de um país democrático»

NACIONAL|LUTA DAS MULHERES

Entrevista -, AbrilAbril POR NUNO RAMOS DE ALMEIDA

17 DE OUTUBRO DE 2021

 

Feminista e jurista de renome, conversou com o AbrilAbril sobre violência contra as mulheres e aquilo que é necessário fazer para haver uma sociedade em que a opressão das mulheres fique na pré-história do nosso tempo.

 

Teresa Pizarro Beleza foi a primeira mulher a dirigir a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Criou a disciplina de Direito das Mulheres e da Igualdade Social, introduzida no elenco das cadeiras de opção da licenciatura em Direito. Foi vogal do Conselho Superior do Ministério Público, por designação do Ministro da Justiça. Eleita, por referência de Portugal, para o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura (CPT do Conselho da Europa) por um mandato de quatro anos, entre 1999 e 2003, levou a cabo missões de fiscalização das condições de detenção sob autoridade pública em vários países, nos termos da Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes. 

Há mais assédio sexual hoje do que havia nos seus tempos de faculdade?

Se «…os meus tempos de faculdade…» significa quando eu era estudante universitária, a resposta é: não sei. Não tenho dados objectivos fiáveis, estatisticamente significativos, para dar uma resposta séria. Mas, em termos de intuição e experiência, diria que é provável que a variação quantitativa não seja muita. A percepção e sobretudo a publicitação de um fenómeno que todas ou quase todas as mulheres conhecem é que certamente terão mudado. E muito.

Por que razão é que só agora as questões do assédio sexual parecem ter-se tornado visíveis?

Não se tornaram visíveis só agora. Mas na verdade o grau de visibilidade acentuou-se muito com um certo renascer recente do feminismo. Simplificando, porque «feminismo» é tudo menos coisa simples ou unitária. Há múltiplas e muito diversas correntes que cabem nesta designação genérica. Sendo na verdade coisa antiga, o feminismo (ou os feminismos, talvez melhor dizendo) nem sempre se centrou na atenção à violência e ainda menos ao assédio sexual, que por vezes se fala, e bem, em outro(s), incluindo na legislação do trabalho, por exemplo. Quando John Stuart Mill denunciava no parlamento britânico a violência conjugal mortífera que se abatia sobre as mulheres, ou declarava solenemente que não exerceria sobre a sua mulher os poderes que a lei lhe concedia, caso Harriet Taylor aceitasse casar com ele, era uma voz solitária e rara. Não por acaso autor do magnífico ensaio «The Subjection of Women» (1869), Stuart Mill ainda é hoje – em meu entender – muito pouco conhecido nesta sua faceta, mesmo por parte dos teóricos da Ciência Política, quantas vezes distraídos, ou simplesmente ignorantes, em matéria de relações de género. A União Europeia começou a tentar publicitar e combater o problema do assédio nos locais de trabalho há muitos anos e encarregou um investigador, cujo nome não recordo com exactidão, Michael Rubinstein, creio, de andar pelos vários países da União Europeia antes de esta o ser, incluindo Portugal – passa-se no final dos anos 80, se não erro –, a explicar que o assédio existia (coisa que muitas mulheres, como as operárias, que ouvi pessoalmente depor nessas sessões, estavam fartas de saber). A afirmar sobretudo que era coisa ruim, não aceitável. Nós também sabíamos, mas por timidez, vergonha ou experiência de indiferença ou desconsideração de quem  pudesse ouvir, não tínhamos o hábito de nos queixar, muitas vezes nem de simplesmente contar.

Eu fui vítima, em jovem, quando andava muito pelas ruas, ou nos transportes públicos (metro, autocarros), de vários actos de atentado ao pudor (seria a designação oficial segundo a Lei Penal então vigente) e nunca apresentei queixa, nem sequer me ocorreu. Acontece que, com todas as variações no espaço e no tempo, as mulheres sempre foram educadas para a submissão e simultaneamente para a sedução ma non troppo, e os homens para o domínio e para verem as mulheres como propriedade sua, em casa, na cama ou na rua. E por isso, as agressões verbais ou físicas que quase todas as raparigas sofreram na rua ou no trabalho foram suportadas ou ignoradas, tantas vezes com vergonha das próprias, porque tudo apontava para a sua culpa, provocação. Até o Código Penal, em 1982, nas disposições sobre crime de violação, insinuava que a probabilidade era de provocação por parte da vítima, constituindo uma circunstância atenuante específica desse crime, um dos mais graves e humilhantes para qualquer mulher (ou homem, aliás), alterado em 1995. Aliás, a violação era, na versão originária do Código Penal da democracia, o tal que que toda a Assembleia da República considerou maravilhoso e excelente – excepto quanto ao aborto e não pagamento de salários, cuja regulação ou falta dela foram contestadas pelo Partido Comunista –, o furto qualificado (sem violência) era mais grave que a violação, ou seja, que ofensas corporais graves. Isto é, o furto de um relógio valioso era legalmente mais grave do que cortar o braço de quem o ostentava. Cortar, mesmo, arrancar, a vítima ficar sem o dito…

Fartei-me de refilar, por escrito e oralmente, mas só em 1995 o legislador percebeu, como quem faz uma grande descoberta, o rematado disparate, obviamente inconstitucional, que tinham feito uns bons anos antes… E os juízes, presumo, muito entretidos na sua elaborada dogmática tese (?), aprendida nas faculdades de direito, aparentemente não deram por nada anos a fio. Do assédio, o legislador nunca ouvira falar, não sabia o que era, nem fazia ideia, presumo. Acharia talvez que se tratava de amáveis galanteios que os homens faziam às mulheres e elas até gostavam. As raras e improváveis queixas ou os eventuais protestos viriam certamente de feministas assanhadas, por definição«“feias» (Mário Soares, in illo tempore) e invejosas da atenção de que as suas rivais eram objecto.

Quais são as condições sociais, políticas, educativas e jurídicas que podem erradicar práticas e comportamentos que considerem as mulheres uma espécie de propriedade do homem?

Uma revolução civilizacional, que faça reverter hábitos, convicções, teorias, tradições, costumes e leis de séculos, ou melhor, de milénios. Coisa simples, como se vê. Michelle Rosaldo, uma brilhante antropóloga, infelizmente morta num acidente de trabalho de campo, verificou que em todo o mundo havia uma enorme variação do que era considerado atributo masculino e feminino, mas que uma coisa era constante: a suposta superioridade de tudo o que estava associado ao masculino, isto é, ao homem.

Há uma série de sentenças em tribunais portugueses, umas mais antigas (a célebre coutada do macho latino) e umas mais recentes, que mostram um posicionamento bastante machista da justiça (por exemplo no livro Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação Sexual, de Isabel Ventura.) Isso é verdade? Há algo que se deva mudar na lei, ou apenas na formação dos magistrados?

Não era a «coutada do macho latino», mas a «coutada do macho ibérico», se quer citar a expressão usada num Acórdão do Supremo Tribunal de JustiçaSTJ sobre um caso de violação de duas turistas jugoslavas que pediam boleia numa estrada do Algarve e foram vítimas de energúmenos locais. Tive então a paciência de discutir esse caso, e semelhantes, num programa de televisão que me granjeou o epíteto, de que muito me orgulho, de «Jurista Ás» por parte do saudoso Mário Castrim, no seu papel de observador e crítico televisivo. As raparigas seriam, naturalmente, culpadas da agressão brutal dos moços, coitadinhos, que não resistiram aos seus naturais e desculpáveis impulsos de machos de sangue quente, donos e senhores de qualquer fêmea que se aventurasse na sua… coutada.

Sempre me interroguei sobre o que pensariam suas excelências reverendíssimas, digo, meritíssimas, que assinaram tal dislate sob a forma de acórdão do nosso mais alto tribunal, dos seus próprios filhos e filhas, se acaso os tivessem. As leis portuguesas não estão mal de todo, mas podem e devem ser melhoradas em muitos aspectos, designadamente no cumprimento das obrigações assumidas quando da ratificação da Convenção de Istambul, de 2011. Em primeiro lugar, uma muito diferente da actual compreensão da dignidade e liberdade de todas as pessoas, seja qual for a cor, o sexo, o género, e por aí fora. Ainda estamos bem longe disso, que parece tão evidente como no belo e tão esquecido texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Jean-Michel Folon, o genial artista belga que ilustrou uma das mais belas edições da DUDH, que conheço (1988, ed. Fondation Folon, Bruxelas), com apoio da Amnistia Internacional, escrevia: «Tout le monde en parle, personne ne la lit».

É altura de, a pretexto de aniversários redondos ou de qualquer outra coisa, relê-la e celebrá-la. E, sobretudo, de a levar a sério, e pô-la finalmente em prática.

Mas a formação dos magistrados é absolutamente essencial, porque já se tornou por demais evidente que ainda hoje há decisões judiciais absolutamente indignas de um país que se diz ser um Estado de direito democrático e tem uma Constituição da República correspondente, que aliás recebe expressamente no seu texto a Declaração Universal como ponto de referência interpretativo privilegiado em matéria de direitos liberdades e garantias.

Nos anos 60, as mulheres reivindicavam o seu direito a ter a sexualidade que entendiam. Actualmente, há uma luta contra o abuso sexual, sendo que uma reivindicação não é contraditória com a outra. Não se verifica, no entanto, em algumas franjas do movimento feminista, uma certa infantilização da mulher e de fazer dela sempre uma vítima? Não existe uma séria deriva em considerar que toda a relação heterossexual se faz num quadro de abuso estrutural?

Depende. Se com essa afirmação se quer dizer que as relações heterossexuais existem num contexto geral de um sistema que ainda hoje se pode descrever e caracterizar como patriarcado, então a afirmação é, obviamente, verdadeira. Tal como se afirmar que uma relação entre um branco e um negro nos EUA existe num contexto estrutural racista. Ou entre um capitalista e um operário num contexto geral de classismo, isto é, de diferenciação entre classes sociais (isto dito de forma simplista, claro, é necessário fazer análises muito mais finas, mas não é este o lugar). Como não reconhecer coisa tão óbvia!? Assunto diferente é o reconhecimento de que as relações individuais – no plano micro, se quiser – podem sempre escapar ao modelo hegemónico, em qualquer destes casos. Há quem o negue, pois claro. Também há quem recuse as vacinas e jure que a Terra é plana, ou que Darwin era doido, que Deus nos criou assim tal e qual, etc. Nem todos os relacionamentos amorosos (ou outros) entre um homem e uma mulher são necessariamente violentos e desiguais como, aliás, nem todos os casais do mesmo sexo são harmoniosos e livres de domínio ou violência. Só quem for muito distraído, ou pouco esclarecido sobre estas coisas, pensará que assim é. Digo eu, é claro, que não me imagino particularmente iluminada, mas ando a estudar e a pensar nisto tudo há muitos anos e tenho a veleidade de ter percebido algumas coisas.

Como conseguiremos criar condições para dar a palavra às mulheres que são vítimas de assédio sexual e ao mesmo tempo garantir a presunção de inocência dos acusados? Como é possível distinguir o quadro da denúncia de uma «cultura de violação» com o quadro individual das acusações concretas?

A palavra não se «dá» às mulheres. Nunca se deu, são as mulheres que a tomam para si, como sempre fizeram, em geral, com os direitos que lhes foram negados. Mesmo se em certos casos se pode falar numa espécie de feminismo de Estado num país, como Portugal, em que a relativa fraqueza dos movimentos feministas – dos movimentos sociais, em geral – se aliou ao centramento da Revolução de 1974 na questão política, no sentido mais estreito desta expressão, levando a que alguns avanços, na senda da igualdade de género (como hoje tendemos a dizer), se tenham dado de cima para baixo. O exemplo mais óbvio será certamente a Revisão do Código Civil, em 1977, aliás em obediência a um comando constitucional de igualdade e não discriminação, sobretudo nas áreas das leis da família e sucessões.

As questões do abuso sexual e do assédio são resolvidas por uma igualdade de poder entre homens e mulheres ou estão presas a comportamentos biológicos e sociais que exigem mais do que uma, ainda assim revolucionária, democratização do poder?

A «democratização do poder» é, como bem sabe, coisa complexa. Desde logo a expressão pode soar oximorónica, porque na democracia total não haveria poder de umas pessoas sobre as outras. Deixando de lado a discussão de possíveis utopias ou distopias, a verdadeira «igualdade de poder entre homens e mulheres» pressupõe que essa distinção deixe de fazer sentido, isto é, que as pessoas deixem de ser identificadas pelo seu sexo - ou mesmo género – como obviamente, para mim, é o caso da desacreditada raça. Não é pelo facto de o conceito científico de raça ter sido posto em causa pela ciência, e como tal abandonado com toda a sua lógica de superioridade e inferioridade, que floresceu com o colonialismo e o imperialismo e perdura em tantas sociedades e de tantas formas tão variadas e complexas que é impossível analisar aqui, que deixou de existir racismo, com a intrínseca racialização de grupos populacionais, como a ECRI (European Commission against Racism and Intolerance, do Conselho da Europa) passa a vida a lembrar nos seus Relatórios e Recomendações.

O problema é transversal a toda a sociedade ou tem pesos diferentes nos mais cultos e menos cultos, nos mais ricos e menos ricos, nos de esquerda ou de direita?

É certamente transversal, o que não significa que se manifeste sempre da mesma forma ou que não haja modos e maneiras mais típicos de meios sociais mais ou menos diferenciados, exactamente como muitos outros, senão todos, os fenómenos sociais.

Existem progressos nesta matéria e há razões para optimismo?

Progressos? Sim. O reconhecimento público e a sua regulação legal, retirando pelo menos alguma boa parte da legitimidade às indiscutidas ou quase práticas tradicionais. Se há razões para optimismo? Depende dos dias… Será melhor dizer: pensa como inteligente, céptico e realista, age e prega como cheio de esperança e optimismo. É que, como num plano mais geral de direitos e de democracia já se vem infelizmente tornando óbvio, nada é adquirido, nunca. Até os famosos «acquis», com que a União Europeia gosta de encher a boca e os discursos, se podem esfumar de um dia para o outro. Basta olhar para Leste e mesmo para outras bandas. Mas, como escrevia Manuel Laranjeira (por acaso um rapaz pessimista que se matou, como se sabe) em «Comigo»:

«Mas ouve, alma; p'ra viver
e ser feliz é preciso
fitar a menina e crer
como alguém que sem Juízo
olha p'rá terra e a vê
convertida em paraíso»

São estes os versos com que fechei a minha dissertação de Mestrado em Criminologia, na Universidade de Cambridge, há muitos anos. Era sobre outro assunto, A Lei Penal na Reforma Agrária em Portugal, mas as dúvidas sobre optimismo tinham alguma semelhança.

Alternativa? Ir com outro Manuel, o Bandeira, para Pasárgada. «Lá moro na casa do Rei…».

https://www.abrilabril.pt/nacional/teresa-beleza-ha-decisoes-judiciais-indignas-de-um-pais-democratico

terça-feira, 5 de outubro de 2021

Manuel Alegre - Portugal resiste

 * Manuel Alegre

Tiraste-me o direito à vida , mas eu vivo
   Mandaste-me prender, mas eu sou livre
   Que não pode morrer, não pode ser cativo
   Quem pela Pátria morre, e só por ela vive.

   Vi os campos florir mas não ouvi
   Raparigas cantando em nossas eiras
   Nossos frutos eu vi levar e vi
   Na minha Pátria as garras estrangeiras

   Vi os velhos e os meninos assentados
   nos degraus da tristeza vi meu povo cismando
   vi os campos desertos, vi partir soldados
   sobre o meu povo negros corvos vi pairando

   E tu que do pais fizeste a triste cela
   Tu que te fechas em teu próprio cativeiro
   Tu saberás que a Pátria não se vende
   E em cada peito em cada olhar se acende
   Este fogo este vento de lutar por Ela.

   Tu saberás que o vento não se prende.

   E não terás nas tuas mãos de carcereiro
   O sol que mora nas canções que nós cantamos
   Nem estas uvas penduradas nas palavras
   Tu que servis as pretendeste ou escravas

   Em silêncios de morte e de convento
   Tu ouvirás na língua que traíste
   Palavras como o fogo como o vento
   Estas palavras com que Portugal resiste

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Sérgio Godinho - Cantiga para pedir dois tostões

* Sérgio Godinho

Nos carris
Vão dois comboios parados
Foste longe e regressaste
Trazes fatos bem cuidados
E já pensas
Em dourar o teu portão
Se és senhor de dez ou vinte
És criado de um milhão
Regressaste
Com um dedo em cada anel
E projectos num papel
E amigos esquecidos
Tempos idos
São tempos que voltarão
Em que pedirás ao chão
Os banquetes prometidos
Milionário que voltaste
Dois tostões p'rós que atraiçoaste
Fazes pontes
Sobre rios e valados
Mas quando o cimento seca
Já morremos afogados
Fazes fontes
No silêncio das aldeias
E a sede é tal que bebemos
Até ter água nas veias
Instituíste
Guarda-sóis e manda-chuvas
Lambe-botas, beija-luvas
Pedras-moles e águas-duras
Inauguras
Monumentos ao passado
Que está morto e enterrado
Entre naus e armaduras
Milionário que voltaste
Dois tostões p'rós que atraiçoaste
Quanto a nós
Nós cantores da palidez
Nosso canto nunca fez
Filhos sãos a uma mulher
Nem sequer
Passa mel nos nossos ramos
Pois a abelha que cantamos
Será mosca até morrer
Milionário que voltaste
Dois tostões p'rós que atraiçoaste

 
Compositores: Sergio De Barros Godinho / Jose Mario Monteiro Branco

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

José Mário Branco- Ronda do Soldadinho

* José Mário Branco
 
1.
Um e dois e três
Era uma vez
Um soldadinho
De chumbo não era
Como era
O soldadinho
 
Um menino lindo
Que nasceu
Num roseiral
O menino lindo
Não nasceu
P'ra fazer mal
 
Menino cresceu
Já foi à escola
De sacola
Um e dois e três
Já sabe ler
Sabe contar
 
Menino cresceu
Já aprendeu
A trabalhar
Vai gado guardar
Já vai lavrar
E semear
 
2.
Um e dois e três
Era uma vez
Um soldadinho
De chumbo não era
Como era
O soldadinho
 
Menino cresceu
Mas não colheu
De semear
Os senhores da terra
O mandam p'rà guerra
Morrer ou matar
 
Os senhores da guerra
Não matam
Mandam matar
Os senhores da guerra
Não morrem
Mandam morrer
 
A guerra é p'ra quem
Nunca aprendeu
A semear
É p'ra quem só quer
Mandar matar
Para roubar
 
3.
Um e dois e três
Era uma vez
Um soldadinho
De chumbo não era
Como era
O soldadinho
 
Dancemos meninos
A roda
No roseiral
Que os meninos lindos
Não nascem
P'ra fazer mal
 
Soldadinho lindo
Era o rei
Da nossa terra
Fugiu para França
P'ra não ir
Morrer na guerra
 
Soldadinho lindo
Era o rei
Da nossa terra
Fugiu para França
P'ra não ir
Matar na guerra
 
In: José Mário Branco (1969),  A Ronda do Soldadinho 

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Ana Paula Dourado - A ausência das cidades, da paisagem e do território nos debates autárquicos

 

OPINIÃO

A ausência das cidades, da paisagem e do território nos debates autárquicos

Ana Paula Dourado 

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


Não é claro a quem os debates se dirigem. Aos eleitores em eleições autárquicas não será. Não é aceitável que os debates instrumentalizem as eleições autárquicas. Eles estão nos antípodas das discussões contemporâneas sobre as cidades inteligentes ou as cidades dos quinze minutos


13 SETEMBRO 2021 13:13


A ideia de cidade e de território adjacente, seja campo, paisagem ou natureza, transmitida nos debates televisivos sobre as autárquicas é muito pobre, insuficiente, fica muito aquém dos desejos e necessidades contemporâneos. As cidades que nos oferecem são tudo o que uma cidade não deve ser.


Nos debates, as grandes cidades em que vivemos ou trabalhamos são prisões ou postais turísticos onde só importa ter acesso a uma qualquer habitação, subsidiada de preferência, e transporte para o emprego. As cidades nas perguntas dos jornalistas e nas respostas dos candidatos são locais para dormir ou chegar e partir, ao serviço do trabalho e do consumo. Cidades fonte de escravatura, isentas de estímulos sensoriais, criativos e de socialização para a maior parte dos que aí trabalham. Cidades desligadas do restante território, umas vezes com espaço e tempo definidos, dotadas de início e fim, outras vezes, cidades contínuas, mas sempre amorfas.


Os debates fazem também lembrar algumas das Cidades Invisíveis mas não vivas, de Italo Calvino: Trude, Maurília, Zora(1972). Lisboa e Porto, apesar de tão diferentes entre si, correspondem, no discurso dos candidatos, à Trude de Calvino. Quem os ouve e não os conheça, não sabe se os candidatos estão a falar de Lisboa ou do Porto, nas suas bocas tornam-se cidades uniformes, não-lugares, com iguais letreiros, setas, alamedas, montras, sem tempo ou história para viver e criar, iguais a todas as outras, como Trude. Já as Praças do Município de Lisboa e do Porto, filmadas para os debates, são Maurílias, embelezadas para os turistas as visitarem aqui e agora, desfrutarem do presente, mas gabando a memória dos velhos edifícios. E estas Lisboa e Porto para turistas são também asZoras, artificiais, partituras musicais que estagnam até desaparecerem um dia.


A especulação imobiliária é sem dúvida o problema mais relevante nas grandes cidades europeias, de entre as quais, Lisboa e Porto. A habitação é a primeira condição para manter vivas as cidades portuguesa. E não há dúvida que o transporte está relacionado com as metas climáticas, de mobilidade e de conforto. Mas habitação e transporte, assim apresentados, sem debate sobre a vida e a qualidade de vida, são insuficientes para um conceito de cidade do século XXI. Não são essas as cidades que desejamos e merecemos, independentemente da nossa profissão.


Se os participantes no debate lessem Calvino, saberiam que o assalariado Marcovaldo, há sessenta anos (As Estações na Cidade, 1963), procurava incessantemente a liberdade na cidade, a presença da natureza na cidade, a complementaridade entre ambas através de sinais ou do ecrã gigante do cinema, idealizava e incutia essa idealização aos filhos.


Estamos em 2021, mais ou menos afetados pelos confinamentos sucessivos e cercas sanitárias. E todavia, para efeitos dos debates televisivos e dos programas autárquicos, esta pandemia foi a última e os constrangimentos vividos não se repetirão. O risco de escassez de bens que vivemos, como evitá-la no futuro, o papel da paisagem rural, não são mencionados; não se discute a produção local ou o compre local; ou a cidade dos 15 minutos. Não fazem parte do debate as cidades sem acesso ao campo e à paisagem limítrofe, por terem sido destruídos e excluídos, como se a cidade não os contemplasse e muito menos dependesse deles. E como se as eleições autárquicas não os abrangessem.


Tudo se passa como se o despovoamento ou as aglomerações urbanas, os incêndios, as inundações e a falta de água, a betonização das margens dos rios, o tratamento e tipo de ocupação dos leitos de água, as construções, o tipo de agricultura e a desertificação não fossem um problema de organização das autarquias.


Não é claro a quem os debates se dirigem. Aos eleitores em eleições autárquicas não será. Não é aceitável que os debates instrumentalizem as eleições autárquicas. Eles estão nos antípodas das discussões contemporâneas sobre as cidades inteligentes ou as cidades dos quinze minutos. Songdo, cidade inteligente construída de raiz em Singapura, onde tudo foi pensado: a eliminação do desperdício, a reciclagem automatizada sem sair de casa, máximo conforto aos seus habitantes, hortas incluídas na paisagem. E todavia, cidade invisível, sem gente, cidade morta. Paris, megacidade a ser transformada em múltiplos bairros, tudo ao alcance de quinze minutos, cidade visível.


Numa antologia sobre a Filosofia da Paisagem (2013), Adriana Veríssimo Serrão explica que as paisagens não são quadros de uma exposição, não são cortinas, não devem ser iguais a todas, são fatores de identidade para as suas populações: a ética da paisagem exige o respeito pelos seus aspetos físicos, morfológicos, culturais, históricos.


O mesmo é verdade para as cidades. Cidades estimulando os nossos sentidos e a imaginação, conservadas e pensadas para quem nelas trabalha e habita, inseridas na paisagem e relacionadas com ela e com a natureza, num contínuo. Paisagem e cidade. Gonçalo Ribeiro Telles explicou-nos isto tudo há muitas décadas, a ideia de paisagem global, ainda não tinham começado as catástrofes naturais aqui e lá fora. As suas ideias devem ser estudadas, explicadas, debatidas, contraditadas. Seriamente.


https://expresso.pt/opiniao/2021-09-13-A-ausencia-das-cidades-da-paisagem-e-do-territorio-nos-debates-autarquicos-44984c6b

domingo, 5 de setembro de 2021

António Gedeão - Poema para Galileu


Galileu - retrato na Galeria dos Ofícios de Florença

 * António Gedeão

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano,

aquele teu retrato que toda a gente conhece,

em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce

sobre um modesto cabeção de pano.


Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença.

(Não, não, Galileu! Eu não disse Santo Ofício.

Disse Galeria dos Ofícios).


Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença.

Lembras-te?

A ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria…

Eu sei… Eu sei…

As margens doces do Arno

às horas pardas da melancolia.

Ai que saudade, Galileu Galilei!


Olha. Sabes? Lá em Florença

está guardado um dedo da tua mão direita

num relicário.

Palavra de honra que está!

As voltas que o mundo dá!

Se calhar até há gente que pensa

que entraste no calendário.


Eu queria agradecer-te, Galileu,

a inteligência das coisas que me deste.

Eu,

e quantos milhões de homens como eu

a quem tu esclareceste,

ia jurar

(que disparate, Galileu!)

- e jurava a pés juntos e apostava a cabeça

sem a menor hesitação -

que os corpos caem tanto mais depressa

quanto mais pesados são.

 

Pois não é evidente, Galileu?

Quem acredita que um penedo caia

com a mesma rapidez que um botão de camisa

ou que um seixo da praia?

Esta era a inteligência que Deus nos deu.


Estava agora a lembrar-me, Galileu,

daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo

e tinhas à tua frente

um friso de homens doutos,

hirtos,

de toga e de capelo

a olharem-te severamente.


Estavam todos a ralhar contigo,

que parecia impossível

que um homem da tua idade

e da tua condição,

se estivesse tornando num perigo

para a Humanidade

e para a civilização.


Tu, embaraçado e comprometido,

em silêncio mordiscavas os lábios,

e percorrias, cheio de piedade,

os rostos impenetráveis daquela fila de sábios.

Teus olhos habituados à observação dos satélites

e das estrelas,

desceram lá das suas alturas

e poisaram, como aves aturdidas

(parece-me que estou a vê-las),

nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas.

 

E tu foste dizendo a tudo que sim,

que sim senhor,

que era tudo tal qual

conforme suas eminências desejavam,

e dirias que o Sol era quadrado

e a Lua pentagonal

e que os astros bailavam e entoavam

à meia-noite

louvores à harmonia universal.


E juraste que nunca mais repetirias

nem a ti mesmo,

na própria intimidade do teu pensamento,

(livre e calma),

aquelas abomináveis heresias

que ensinavas e escrevias

para eterna perdição da tua alma.


Ai, Galileu!

Mal sabiam os teus doutos juízes,

grandes senhores deste pequeno mundo,

que assim mesmo,

empertigados nos seus cadeirões de braços,

andavam a correr e a rolar pelos espaços

à razão de trinta quilómetros por segundo.


Tu é que sabias, Galileu Galilei.

Por isso eram teus olhos misericordiosos,

por isso era teu coração cheio de piedade,

piedade pelos homens que não precisam de sofrer,

homens ditosos

a quem Deus dispensou de buscar a verdade.


Por isso, estoicamente,

mansamente,

resististe a todas as torturas,

a todas as angústias,

a todos os contratempos,

enquanto eles,

do alto inacessível das suas alturas,

foram caindo,

caindo,

caindo,

caindo

caindo sempre,

e sempre,

ininterruptamente,

na razão directa dos quadrados dos tempos.