quinta-feira, 25 de abril de 2019

3 poemas - 2 autores

* Daniel Filipe

III
este é o local, o dia, o mês e a hora
o jornal ilustrado aberto em vão.
No flanco esquerdo, o medo é uma espora,
fincada, firme, imperiosa não
espero mais. Porquê esta demora?
Porquê temores, suores? Que vultos são
aqueles além? Quem vive ali? Quem mora
nesta casa sombria? Onde estão
os olhos que espiavam ainda agora?
O medo, a espora, o ansiado coração,
a noite, a longa noite sedutora,
o conchego do amor, a tua mão ...
Era o local, o dia, o mês, a hora .
Cerraram sobre ti os muros da prisão

O Viajante Clandestino

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* Egito Gonçalves 

A mentira que fingem
é verdade.
A submissão
corrompe
Não nasceram
ainda
Poderão nascer
mais tarde
tão adultos de aspecto?

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* Egito Gonçalves

Como se mantém
este deserto?

Praças sem vida,
sombras nos passeios,
estores corridos
nas janelas…

Poderiam só palavras
convencer,
abrir varandas,
pálpebras,
descerrar os dentes?

Existe algum segredo
neste magma
capaz de o erguer à dor
de um coração?


egito gonçalves
o fósforo na palha
1970

José Afonso - Arcebispíada


* José Afonso

Pregais o Cristo de Braga
Fazeis a guerra na rua
Sempre virados prò céu
Sempre virados prà Virgem
A Santa Cruzada manda
Matar o chivo vermelho
Contra a foice e o martelo
Contra a alfabetização
Curai de ganhar agora
Os vossos novos clientes
Além do pide e do bufo
Amigos do usurário
Além do latifundiário
Amigo do Capelão
"Abre Nuncio Vade Retro
Querem vender a nação"
"A medicina é ateia
Não cuida da salvação"
Que o diga o facultativo
Que o diga o cirurgião
Que o digam as criancinhas
"Rezas sim, parteiras não"
Se o Pinochet concordasse
Já em Fátima haveria
Mais de trinta mil vermelhos
A arder de noite e de dia
Caridade, a quanto obrigas
Só trinta mil voluntários
"Cristo reina Cristo vinga"
Nos vossos santos ovários
E também nos lampadários
E também nos trintanários
Abre Nuncio Vade Retro
Querem vender a nação
Ó Carnaval da capela
Ó liturgia do altar
Já lá vem Camilo Torres
Com o seu fusil a sangrar
Igreja dos privilégios
Mataste o Cristo a galope
Também Franco, o assassino
Mandou benzer o garrote

José Afonso - "Arcebispíada" do álbum "Enquanto Há Força" (LP 1978)

Nuno Pacheco - No Dia da Liberdade ainda há uma ditadura que mexe: a dos idiotas


* Nuno Pacheco
O acordo ortográfico é bastante estúpido, mas quem decide aplicá-lo às cegas ainda é pior. Exemplo: um Baptista registado há décadas, agora passa compulsivamente a “Batista”.

25 de Abril de 2019, 7:30

O 25 de Abril, que hoje faz precisamente 45 anos, tem andado a subir e descer “escadas” contra vontade. Ora surge com minúscula, ora com maiúscula. Há gente muito abrilesca a rebaixar-lhe o A e gente menos dada a cravos a deixá-lo com a dimensão original. Não se entende nem se entendem. Porquê? Porque, sendo o acordo ortográfico (que está na origem da tais hesitações e trapalhadas) bastante estúpido, quem decide aplicá-lo às cegas ainda é pior.

Expliquemo-nos. Na Base XIX do dito, intitulada “Das Minúsculas e Maiúsculas”, diz-se textualmente que: “1º) A letra minúscula inicial é usada (…) b) Nos nomes dos dias, meses, estações do ano: segunda-feira; outubro; primavera.” Logo, abril. Porém, mais adiante, também se diz isto: “2º) A letra maiúscula inicial é usada: (…) e) Nos nomes de festas e festividades: Natal, Páscoa, Ramadão, Todos os Santos.” Ora considerando o dia de hoje como uma festa ou festividade, que o é, tal como o 1.º de Maio, grafemo-lo Abril. O que dá esta bela coisa: hoje, dia 25 de abril, festeja-se o 25 de Abril. Daqui a uma semana, no dia 1 de maio, festeja-se o 1.º de Maio. Por mais disparatado que isto pareça, e é, trata-se do que dispõe o malfadado acordo. Portanto, senhores: é 25 de Abril e 1.º de Maio, combinado?

Despachado o primeiro tema, vamos ao segundo, bem mais grave. Segundo uma notícia recentíssima do jornal digital ECO – Economia Online, parece que andam por aí a mexer nos nomes das pessoas a pretexto do acordo ortográfico. Imagine-se que alguém tem agora um filho e lhe quer dar o nome de Victor. Não pode, tem de ser Vítor, mesmo que bata o pé. Porquê? Por causa de uns idiotas. Mas o caso nem sequer é esse, é bem pior. Leia-se a notícia do ECO, assinada por Filipe Paiva Cardoso e datada de 21 de Abril: “Aquando da renovação do cartão cidadão (CC), ‘um número apreciável’ de cidadãos viram-se obrigados a trocar a grafia do seu nome para ficar em conformidade com o acordo ortográfico de 1990 pelo Instituto dos Registos e do Notariado (IRN). Se era Victor, passou Vítor. E se tinha Baptista no nome, passou a Batista. Num ápice, um Victor Baptista ficou Vítor Batista.” Claro que houve queixas. Cidadãos indignados recorreram à Assembleia da República, porque houve Baptistas, Victores e Lourdes que passaram, num ápice, a Batistas, Vítores e Lurdes. Que sucederia a Alçada Baptista se fosse vivo? Ou a Baptista-Bastos, que além do P ainda lhe levavam o hífen? Ou a Maria de Lourdes Pintasilgo, que perderia um U e ganharia um S?

Perante tamanha parvoíce, o grupo parlamentar do PSD quis indagar o que se passava; e recorreu ao Ministério da Justiça (que ainda tem cedilha, valha-nos isso). Que resposta teve? Ainda segundo o ECO, esta: “O IRN está vinculado a inscrever no Cartão do Cidadão o nome do interessado de acordo com a grafia que se encontra registada no Assento de Nascimento.” Então porque sucede o contrário? Aí, a tutela explica que na lei anterior a 2007 (ou seja, anterior ao malfadado acordo) “a atualização da grafia era obrigatória.” Era? Não se deu por isso. Nunca soube de nenhum caso. E nem os Baptista que conheço passaram a Batistas por via burocrática nem Sophia de Mello Breyner passou a Sofia de Melo Breiner. Que se saiba. Em “compensação”, a pobre Capela de São João Baptista, ao Chiado, foi pressurosamente “atualizada” para “São João Batista”. E muitos Baptistas ou Víctores, até em legendas de museu, perderam consoantes. Isto apesar de um dos papas do acordo, o brasileiro Evanildo Bechara, ter escrito no jornal O Dia (em 13/11/2011) que “essas exceções [referia-se a Assumpção ou Drummond] constituem nomes próprios, cuja fidelidade ao registro oficial sempre foi garantida pelos projetos ortográficos. Supõe-se que continuaria a ser garantida neste, não?

E continua mesmo. Porque na Base XXI do “acordo ortográfico” de 1990 (“Das assinaturas e firmas”) diz-se claramente: “Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume ou registo legal, adote [sic] na assinatura do seu nome.” O que dizem a isto os serviços? Nada, continuam a chacina. As consoantes são para abater, até ordem em contrário. Como as ordens são inexistentes ou flácidas, e clareza é coisa que nesta área não há nem se pretende que exista, vence a lei dos idiotas. Imagina-se o diálogo: “O senhor era Victor? Era, já não é, não pode ser, a lei não permite, agora passa a Vítor.” E se o infeliz tem o azar de ter apelidos de aparência antiga como D’Orey, Mont’Alverne, Torquato, Uchoa, Felgueiras ou até Queiroz (que o diga Eça, que já foi “traduzido” para Queirós), há-de ser bem pior.

Porque mesmo 45 anos passados sobre o 25 de Abril (com maiúscula, como já se provou) no Dia da Liberdade ainda há uma ditadura que mexe: a dos idiotas. Vai ser o cabo dos trabalhos livrarmo-nos dela. Coisa que será bem difícil enquanto não nos livrarmos do “acordo ortográfico”, esse incentivo ao disparate que alguns (por erro?) “batizaram” de lei.



quinta-feira, 18 de abril de 2019

Pedro Tadeu - Ai "Notre Dame"!... o trabalho está a matar-nos?



17.4.19

«Ao longo de mais de um século um grande estaleiro juntou, seis vezes por semana, uma média diária de 300 homens. Alguns começaram, ainda crianças, a trabalhar ali. Muitos deles também morreram naquele local, sem conhecerem mais nada deste mundo.

Eles eram artífices especializados num ofício, ensinado em segredo por um mestre. Eles foram exclusivos toda a vida, dedicada, apenas, a um monumento ao segredo da conceção divina do filho de Deus.

Lentamente, penosamente, ergueram pedra a pedra, fundiram ferro a ferro, juntaram tábua a tábua, chumbaram vidro a vidro, "toc toc!", "tac tac!", "tic tic!" e construíram, penosamente, sabiamente, à mão, com ferramentas de artesão, os gigantescos corpos principais da Catedral de
Notre Dame de Paris.

Há 850 anos trabalhava-se enquanto houvesse luz, do nascer ao pôr-do-sol. Tal como a catequese cristã afirma ter sido um direito do Criador do mundo, os criadores da Catedral de Notre Dame descansaram aos domingos. E, ao longo de cada ano, aproveitaram uma quarentena de feriados para honrar santos, reverenciar Jesus ou Maria e armazenar no coração algum descanso retemperador.

Durante um dia de trabalho cada homem tinha direito a parar uma hora para almoçar e, a meio da tarde, a outros 15 minutos para beber... de preferência vinho, a bebida da falsa força.

O pagamento do salário, para quem tinha direito a ele, era diário e ninguém concebia remunerações por feriados, folgas ou férias.

A vida de um construtor de Notre Dame, no século XII ou no século XIII, era, para qualquer um de nós, cidadãos ocidentais deste mundo do século XXI, insuportável.

Mas ser trabalhador na construção de Notre Dame nos séculos XII ou XIII era, simultaneamente, uma das melhores vidas possíveis dos homens que Deus teve a graça de não fazer nascer como filhos das classes superiores da sociedade feudal e cristã.

Foram milhares os trabalhadores que ergueram a Catedral de Notre Dame de Paris. Um incêndio, talvez atiçado por um fósforo, um cigarro, uma faísca, algo milésimo, mínimo, minúsculo, arriscou esta segunda-feira destruir uma enorme obra da Humanidade.

A vitória dos bombeiros que salvaram a estrutura principal de Notre Dame salvou a memória de um enorme sacrifício de vidas, que a ignorância sobre o real número de mortos sucumbidos às falhas da construção ou a ausência de contagem de almas condenadas a uma existência confinada à pequena Île de la Cité, nos anos de 1163 a 1267, escamoteia da maior parte dos livros de História.

Todos os grandes edifícios construídos pela Humanidade, das pirâmides do Antigo Egipto aos arranha-céus de Nova Iorque, do Mosteiro dos Jerónimos ao Convento de Mafra, resultaram da imposição do sacrifício, da dedicação da vida, da inaceitável morte, do glorioso compromisso de milhões e milhões de trabalhadores.

Sempre que uma grande obra da humanidade desaparece, não morre apenas a memória da arte ou da engenharia que a germinaram. Sempre que uma grande obra da humanidade desaparece, falece também a memória do trabalho e desvanece um registo das etapas de progresso social que nos trouxeram até aqui.

E o que é o trabalho, hoje, aqui? É o trabalho com direitos, com horários, com pausas, com folgas, com salários, com férias pagas? Ou é um tempo em que as coisas parecem andar séculos para trás, até à época do trabalho quase escravo que ergueu Notre Dame?

Que tempo é este, que leva os jornais do século XXI a alertar: "O trabalho está a matar pessoas e ninguém se importa"?»

Gravura - Uma ilustração da Catedral de Notre Dame, no século XIX - litogravura de Nicolas Chapuy
Cartoon -  "Sadness", por Antonio Rodriguez 

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Mário de Sá Carneiro - Nossa Senhora de Paris

* Mário de Sá Carneiro

Todo a vibrar, quero fugir.. Onde acoitar-me?
Os braços duma cruz.
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar…

Um cheiro a maresia
Vem-me refrescar,
Longínqua melodia
Toda saudosa a Mar…
Mirtos e tamarindos
Odoram a lonjura;
Resvalam sonhos lindos…
Mas o Oiro não perdura
E a noite cresce agora a desabar catedrais…
Fico sepulto sob círios —
Escureço-me em delírios,
Mas ressurjo de Ideais…

– Os meus sentidos a escoarem-se…
Altares e velas…
Orgulho… Estrelas…
Vitrais! Vitrais!

Flores de liz…

Manchas de côr a ogivarem-se…
As grandes naves a sangrarem-se…
– Nossa Senhora de Paris!…

sábado, 13 de abril de 2019

Ruy Belo: - As grandes insubmissões

* Ruy Belo:

As grandes insubmissões sempre foram para mim as pequenas. Na minha vida, lembro duas.

Começava um ano lectivo. Andaria no segundo ano do liceu. Era a época da feira da piedade. Cheguei de férias na minha terra e vi o vítor a andar de carrocel. Esperava que a volta acabasse para o abraçar. Fui esperando, ele nunca mais descia. Uma volta, mais outra, outra ainda. Fui contando: vinte. O vítor tinha vinte escudos. Eu já o respeitava, porque era muito alto. Passei a respeitá-lo mais. O Vítor era capaz de gastar vinte escudos no carrocel.

Outra grande insubmissão foi a do maurício, também nos primeiros anos do liceu.
Um dia o maurício faltou à aula das nove. Até aí, nada de particular. Saímos para o pátio e o maurício estava no campo de basket, perfeitamente equipado, sozinho, a lançar a bola ao cesto.

– Ó maurício, faltaste à aula das nove.

E o maurício, sem responder, imperturbável, continuava a lançar a bola ao cesto.
Tocou para a aula das dez.

-Ó maurício, não vens à aula?

O maurício não respondia. Continuava, imperturbável, a lançar a bola ao cesto.

Faltou à aula das dez, faltou toda a manhã. Nos intervalos saíamos e logo ouvíamos a bola contra a tabela. O maurício, sozinho, continuava a lançar a bola ao cesto.

Só se foi vestir quando tocou para a saída da última aula dessa manhã. Esperámos todos por ele. Não lhe perguntámos nada. E seguimo-lo cheios de admiração. O maurício, apesar dos professores, apesar dos contínuos, apesar da campainha, faltara a todas as aulas.

Toda a manhã jogara basket. Sozinho. Contra professores, contra contínuos, contra a campainha.

Ruy Belo
in Todos os Poemas, Círculo de Leitores

quarta-feira, 10 de abril de 2019

João Ramos de Almeida - O carácter de Cavaco



QUARTA-FEIRA, 10 DE ABRIL DE 2019

Estive vai-não vai para escrever um post parecido com aquele que o Diogo Martins escreveu sobre o eleitoralismo de Cavaco. Mas depois achei que me bastava ver a pasta de dentes na boca do Ricardo Araújo Pereira (7'30'').

Acrescento só três coisas. Duas curtas e uma longa.

1. Nas suas memórias, Cavaco Silva omite a sua própria participação, como ministro das Finanças de Sá Carneiro, na adopção das medidas eleitoralistas previstas para as eleições de 5 de Outubro de 1980 e descritas no post do Diogo Martins. Pior: dá a entender que a responsabilidade foi, sim, do finado - e portanto incomunicável - primeiro-ministro e do igualmente morto João Morais Leitão (ministro dos Assuntos Sociais), que o tentaram convencer.

"Recordo-me de ele ter organizado  um almoço no Restaurante Tavares, comigo e com o ministro dos Assuntos Sociais, João Morais Leitão, para me convencer a aceitar um aumento extraordinário das pensões de reforma"

E - malvados! - conseguiram. Conseguiram desviar um pobre técnico ingénuo. E isso diz alguma coisa do carácter de Cavaco Silva. Estranhamente, Cavaco Silva esquece-se do rol de medidas que foram aprovadas então, nomeadamente a revalorização do escudo, num contexto de arrefecimento da procura externa, o que iria agravar o défice externo, numa conjuntura já negativa.

2. A prazo, os efeitos desastrosos das medidas eficazes do ponto de vista eleitoral contribuíram para justificar a intervenção externa do FMI. Mas quando o Banco de Portugal se apresentou para negociar a carta de intenções com os técnicos do FMI, Cavaco Silva - já à frente do Departamento de Estudos e Estatísticas - esquivou-se e mandou seguir a directora Teodora Cardoso, evitando assim  ser confrontado com os disparates que fizera enquanto ministro. Outra boa prova do seu elevado carácter.

3. E finalmente a mais longa. Mas é apenas para os mais resistentes.

Ler citações, artigos e memórias do então primeiro-ministro sobre o seu passado na década de 80, quando Cavaco Silva decidiu ser um político, é assistir a uma remontarem de um filme. Faltam imagens, foram apagadas. Há silêncios e omissões.

Em Setembro de 1978, com 39 anos, Cavaco afirma que assistiu ao 34º Congresso do Instituto de Finanças Públicas  e que o debate o entusiasmou. A tal ponto, que tentou sistematizar "as razões do falhanço da escolha pública que se podem considerar associadas à actuação dos políticos".
"A ideia do político como criatura dedicada à prossecução dos interesses da sociedade como um todo é hoje considerada um mito pela generalidade dos economistas", escreveu ele citando uma intervenção de James Buchanan em Lisboa, nesse mesmo ano (Políticos, burocratas e economistas, Revista Economia).   

Toda a sua vida, ele seria isso: a execução prática de uma linha de pensamento contra a ideia política dos políticos se assumirem como políticos, em defesa de um interesse colectivo. Um manipulador que finge não o ser, afirmando-se apenas como um espírito puro, ingénuo. Cavaco seria apenas mais um a executar a linha política de um combate fortemente marcado pelo anticomunismo da  Guerra Fria, baseado na ideia estúpida de que, egoistamente, se cada um pensar apenas em si, conseguirá defender melhor a sua comunidade...

Veja-se o documentário The Trap

O estranho é que, na altura em que escreveu este paper, Cavaco Silva está já embrenhado na vida política aos mais alto nível. Conhecia os políticos, ouvia-os, falava com eles, discutia com eles pontos de vista, encontrava-se mesmo à beira de ser nomeado ministro das Finanças do Governo de Sá Carneiro. Estava, ele próprio, à beira de se tornar um político profissional.

Cavaco conta na sua autobiografia (1) que, em Maio de 1974, pouco depois do 25 de Abril foi convidado por Alfredo de Sousa "para participar numa reunião de economistas e outros profissionais ligados ao PPD que acabara use de ser fundado por Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão e Joaquim Magalhães Mota". O objectivo era "discutir a situação económica portuguesa e as políticas que deviam ser adoptadas". Cavaco Silva foi. "Aceitei o convite pela vontade de dizer o que pensava sobre o tema, mas também por uma certa curiosidade em relação ao novo partido". Claro que sim.

Mas a sua curiosidade e entusiasmo tornam-se em militância política. "Fui ao Pavilhão dos Desportos, em Outubro de 1974, assistir ao primeiro comício do PPD em Lisboa e deixei-me contagiar pelo entusiasmo que envolveu os oradores. Participei em várias reuniões do gabinete de estudos do partido dirigido por Alfredo de Sousa e António Pinto Barbosa, ajudando a preparar os documentos sobre política económica, inclusivé textos para o programa do partido, que foi aprovado em Novembro de 1974 que teve lugar em, Lisboa. Fui designado para participar no congresso, em representação do gabinete de estudos, mas acabei por não estar presente devido à morte do pai da minha mulher, cujo funeral foi no Algarve". E foi se entrosando ainda mais. "Assisti a várias reuniões em que os ministros do PPD ou dirigentes do partido faziam a análise da situação política".

E tanto participa em reuniões, mesmo de militantes, que é - pasme-se! - convidado para ser deputado nas eleições para a Assembleia Constituinte em Abril de 1975. Mas recusa - "nem pensar nisso" - porque queria continuar a sua carreira académica.

Em Setembro de 1976, Cavaco Silva filia-se no PPD "com alguns colegas da Universidade". Porquê? "A motivação fundamental era ajudar a construir uma força partidária que pudesse travar a onda de loucura em que o país parecia mergulhado e defender ideias políticas do tipo das que dominavam nos países da Europa democrática, adaptadas à realidade portuguesa".

Recorde-se que nessa altura, já pós- 25 de Novembro, era Mário Soares primeiro-ministro, embora Carlos Mota Pinto participasse no governo.

Cavaco Silva estava, pois, muito activo. Cruza-se várias vezes  "nas escadas e salas da sede do PSD, primeiro no Largo do Rato e depois da Duque de Loulé", com Sá Carneiro e outros dirigentes. Cruza-se nas escadas, mas não passa despercebido. "Eles foram tomando conhecimento da minha existência pelas qualidades de economista e, também, pelas minhas análises que fazia em sessões de esclarecimento partidário". Tanto assim que Sá Carneiro, depois do seu regresso à presidência do PSD, no congresso de Julho de 1978, passou a chamá-lo "de vez em quando". "Penso que, por sugestão, do Dr. Loureiro Borges, administrador do Banco de Portugal, para me ouvir sobre as questões económicas nacionais".

No verão de 1979, o PSD começou a tornar-se um partido com possibilidade de chegar ao poder. Cria-se a Aliança Democrática com o CDS e o PPM. Em Outubro desse ano, Sá Carneiro chama-o ao seu gabinete e, depois de uma prelecção sobre a situação política, convidou-o para ministro das Finanças, caso a AD ganhasse as eleições. Cavaco diz que foi "apanhado de surpresa" e recusa. Mas não o deve ter feito de forma muito peremptória porque Sá Carneiro "não ficou muito convencido" e disse-lhe que depois se falaria nisso. E assim foi. A AD ganha e uma semana depois já estava Sá Carneiro a ligar-lhe, sabendo Cavaco ao que ele vinha. "Convidou-me para ministro das Finanças e, brilhante como era na argumentação, foi contrariando as minhas objecções". Que objecções eram essas? Nada se diz. "Embora com algumas hesitações, a minha inclinação era para não aceitar o convite". Apesar disso, pediu mais tempo para pensar. Não lhe apetecia mesma nada... E "foi com este estado de espírito que cheguei a casa de Sá Carneiro às 18h do dia 11 de Dezembro de 1979 para uma segunda conversa". Cavaco nada conta sobre o que se passou naquele final de tarde, mas sabe-se o que aconteceu depois.

A sua experiência como ministro dá a entender que ele era muito rígido para os seus colegas e que os restantes políticos apenas queriam ganhar as eleições, inclusivamente o primeiro-ministro.

"Beneficiei sempre de um apoio inequívoco da parte do primeiro-ministro, mas algumas vezes ele deve ter pensado que eu era demasiado exigente e pouco flexível e que não tinha em devida conta a importância das eleições de Outubro de 1980 para a concretização do projecto da AD e até para as orientações que eu defendia pudessem ser levadas à prática
".

Mas claro a culpa foi de Sá Carneiro com aquela ideia de aplicar medidas eleitoralistas. "Recordo-me de ele ter organizado  um almoço no Restaurante Tavares, comigo e com o ministro dos Assuntos Sociaia, João Morais Leitão, para me convencer a aceitar um aumento extraordinário das pensões de reforma". Ora aí está!

Mas qual foi a conclusão do almoço? Cavaco omite esse pormenor nas suas memórias. Numa entrevista que deu ao seminário Tempo, a 31/12/1980, Cavaco afirmou: "Eu tenho um estilo próprio de exercer o cargo de ministro, estilo esse que se caracteriza mais ou menos pelo seguinte: uma grande preocupação com o rigor e de fundamentação nas decisões; uma exigência para comigo próprio e com os outros; e renitência em deixar-me influenciar por pressões, quando penso que essas pressões não se situam na linha mais adequada para o país".

Cavaco deve, pois, ter sido obrigado, porque a medida foi aprovada, como todas as outras: aumento de salários da Função Pública, melhoria das prestações sociais, estímulos à procura interna, também através do alargamento do crédito, revalorização do escudo facilitando a importação e dificultando as exportações (numa altura de contracção da procura externa). Teria ele pensado que poderia manipular a economia e depois compensar as medidas de forma inversa? E que teria tempo para isso?  Se foi isso, a ideia correu mal.

A AD ganha as eleições e cinco dias depois Cavaco Silva, segundo ele, impôs fortes condições para aceitar ser ministro. A política económica não podia ser aprovada contra o seu parecer. "Passarão a ser assinados pelo ministro das Finanças (para além do primeiro-ministro) nos termos da letra e do espírito do artigo 11º do DL 49-B/76 todos os diplomas que envolvam aumento de despesas. Como corolário, tais diplomas não deverão ser agendados para Conselho de Ministros antes de obtida a concordância do ministro das Finanças (...) Independentemente dessas condições, quero ainda deixar claro que não permanecerei no governo se se vier a desenvolver uma atitude de hostilidade para comigo da parte da maioria dos membros do Conselho de Ministros".

A negociação é interrompida com a morte de Sá Carneiro em Dezembro de 1980. "Fiquei surpreendido, mas também lisonjeado quando verifiquei que o meu nome também era mencionado, embora com pouca consistência" para a sucessão de Sá Carneiro.

E deve ter ficado de alguma forma desiludido quando o governo seguinte passa a ser coordenado por Pinto Balsemão, que prefere para ministro das Finanças, primeiro João Morais Leitão e, desde Setembro de 1981, João Salgueiro. E todos viram-se a braços com as consequências das medidas adoptadas. Sobre si próprio, Cavaco afirmou - sem explicar - que, no princípio de 1981, tinha uma boa imagem política porque "os resultados conseguidos tinham contribuído muito para a vitória da AD" (2).

O próprio Cavaco sai, desejoso de voltar: "Ao sair da pasta das Finanças, trouxe comigo um interesse pela política maior do que aquele que tinha quando entrei para o Governo de Sá Carneiro, nos primeiros dias de Janeiro de 1980", ou seja, um ano antes.

E não se ficou pelo desejo. Quis à viva força recuperar o palco perdido. Balsemão não deve ter enobrecido as posições de Cavaco Silva e Cavaco Silva fez-lhe a vida negra.

"No período de 1981/82, deixei-me envolver na vida partidária, mundo que eu conhecia mal e acumulei erros e desilusões". Ah o político mal amado. Detesta esse mundo, mas sente por ele uma rara atracção. Em 1990, pintou esse período de outra forma. Diz que fez uma "travessia do deserto político de 1981 a 1985" e que "remete-se por iniciativa própria a uma acção política o mais discreta possível" (3). As suas memórias pormenorizam essa discreta travessia.

"Aceitei ser delegado ao primeiro congresso nacional do PSD depois da morte de Sá Carneiro" que se desenrolou em Lisboa, no Pavilhão dos Desportos, em Fevereiro de 1981. Entra na lista de Eurico de Melo contra o governo Balsemão. "Foi aí que fiz o meu primeiro discurso em congresso do partido""O meu envolvimento partidário foi ainda reforçado pela eleição em Abril de 1981 para presidente da Assembleia Distrital da Área metropolitana de Lisboa""O facto de ter apresentado ao congresso do PSD uma lista para o conselho nacional fez com que, no ano de 1981, me envolvesse bastante na vida partidária, não que tivesse descoberto uma vocação nesse sentido, mas porque, face à degradação da situação política, sentia uma certa responsabilidade perante os muitos militantes que expressavam, confiança em mim e Son haviam com uma alternativa à liderança do partido". Claro que sim!

Cavaco nega que tenha conspirado contra Balsemão ou feito jogos bizantinos de corredor. O que havia era "militantes que comigo trocavam impressões". Era o caso de Eurico de Melo, Montalvão Machado, Amândio de Azevedo, Rui Amaral, Rui Almeida Mendes, António Maria Pereira, Fernando Correia Afonso, Apolinário Vaz Portugal, Helena Roseta, Manuela Aguiar, Pedro Santana Lopes, Dinah Alhandra e outros. "Eram os chamados críticos que foram objecto de ataques violentos dos apoiantes de Pinto Balsemão". Mas não havia facção, nem acção organizada, assegura Cavaco.

Só que no conselho nacional de 8 e 9 de Agosto de 1981, Pinto Balsemão apresentou demissão de primeiro-ministro e a comissão distrital de Lisboa propôs o nome de Cavaco Silva. Cavaco diz ter recusado, "apesar das pressões a que fui sujeito". E Pinto Balsemão é de novo reconduzido a 16/8/1981. Aproximava-se uma bernarda económica e aquele não era ainda o momento. Cavaco volta a assegurar que não conspirou. Só que nas suas memórias lá está a sua ida ao Congresso de Dezembro de 1981: "Antes tive duas conversas com Pinto Balsemão, a seu pedido. Falou-me da composição dos órgãos a serem eleitos, procurando evitar que eu apresentasse uma lista própria para o conselho nacional, o que ele considerava uma atitude de confronto". Estavam bem um para o outro: um a querer derrubar o adversário, e este a não querer concorrentes...

Cavaco não apresenta listas, o que - apesar de não estar a conspirar - "frustrou muitos militantes que viam em mim uma alternativa". Mas por que não queria intervir se a correlação de forças até lhe era favorável? "Não queria servir de alibi para as dificuldades que o Governo e o partido enfrentavam e" - atenção a um argumento recorrente em muitos baixos do ciclo económico - "desejava afastar-mãe da vida partidária activa. Estava cada vez mais absorvido na minha actividade profissional no Banco de Portugal, na Universidade e também no conselho nacional do plano".

Apesar disso, não parou. "Discretamente, eu trocava impressões com algumas pessoas, em particular com Eurico de Melo e fazia algumas intervenções, umas mais tºecnicas e outras mais políticas, em reuniões e jantares de militantes, procurando ser cuidadoso nas críticas em relação ao Governo"."Dois dos meus colaboradores - o chefe de gabinete, José Veiga de Macedo, e lo adjunto, Rui Carp - eram entusiastas da política e sonhavam com uma intervenção mais activa da minha parte". Ele tudo geria. Em 1982, segundo a comunicação social, Cavaco estava a liderar a oposição interna ao Governo. Num jantar em Vila Nova de Gaia, Cavaco fez um discurso, uma conferência política, em que defendeu que as eleições autárquicas eram um sinal claro para a gestão governamental e serviu para mais umas alfinetadas a Balsemão.

Face à figura fraca do PM e a sua tibieza, com a sua dificuldade em respirar, Cavaco fez um retrato oposto, parecido consigo mesmo: "Para que um governo tenha êxito (são coisas amplamente conhecidas) é preciso preencher várias condições e uma delas é conseguir uma imagem de força, de coerência e de capacidade para resolver os problemas do país, É preciso coordenação entre os vários departamentos ministeriais para fazer emergir o governo como um todo e não como uma federação de ministros e secretários de Estado""Eu, como ministro, nunca iria à televisão falar de aumentos de preços. Eu, como ministro e como economista, só posso ir à televisão dizer que os preços vão subir menos. É óbvio que um ministro não pode dizer que os preços vão subir. Tem de dizer que vão baixar (...) Um ministro não pode dar uma conferência de imprensa dizendo hoje que os preços dos transportes aumentam e que se preparem porque em Setembro vão aumentar outros preços (...) Isso é a mesma coisa que dar duas bofetadas a um miúdo e dizer-lhe 'Não te esqueças que daqui a uma semana levas mais duas'"Ou ainda, revelando ser a pessoa que conhece a altura certa: "É preciso imprimir um ritmo e uma dinâmica apropriada à governação. É preciso saber qual é o tempo adequado para cada coisa no Governo. É o chamado timing. Uma das coisas mais importantes em governação é o tempo" (4).    

Nada destes momentos surgem na autobiografia. O seu texto perde o colorido cru do momento. Apenas revelam uma calma que não existia na altura. "Em Julho de 1982, convicto de que a vida político-partidária e a situação económica continuavam a degradar-se perigosamente" - ou seja, ano e meio de ter deixado o governo -"publiquei uma carta aberta com Eurico de Melo". E assim continuará até Maio de 1985, quando já se pressentem as melhorias económicas, pós intervenção do FMI. E o timing chegara.

"Aceitei no entanto o convite de alguns militantes da minha secção para integrar uma lista de delegados ai congresso nacional que fora convocado para meados de Maio de 1985, no Casino da Figueira da Foz (...). Fui eleito como número dois de uma lista encabeçada pelo presidente da secção D da área de Lisboa, mas mantive-me afastado das discussões". Quem acredita nisso? Faz contactos com Freitas do Amaral para preparar a sua proposta de candidatura à Presidência da República, a apresentar no congresso. "Muitos foram militantes que tentaram falar comigo para ouvir a minha opinião ou convencer-me a candidatar-me a presidente do partido". E para "surpresa geral, incluindo a minha acabei por ser eu a ganhar o congresso".

É esta sonsice política, esta constante preocupação de reconstrução da sua personagem e da História, que o caracteriza. Hoje, Cavaco é apenas uma sombra do que foi. Sem o viço da juventude, ficou apenas a procura crónica por uma lenda coxa.

Notas:  
(1) Autobiografia Política, Temas e Debates
(2) As revelações de Cavaco Silva, entrevista a Cavaco Silva, Público, 28/3/1995
(3) Família Cavaco Silva condena prendas materiais, Gente, 5/12/1990
(4) Aníbal contra Cavaco, Carlos Magno, Expresso, 18/10/1993

terça-feira, 9 de abril de 2019

Sebastião da Gama - Meu País Desgraçado

* Sebastião da Gama


Meu país desgraçado!…

E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas…

Meu país desgraçado!…
Porque fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?

Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
— busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.

E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.

Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!

Povo anémico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
— olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar
as que só por Amor te não desprezam!

Um poema de Cabo da Boa Esperança. 

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Nós aqui (também) não temos paisagem




ENSAIO
Por sobre este cenário quase arqueológico, paira o imenso dossel de betão por onde deslizam milhares de veículos, milhões de cavalos embutidos em motores.
7 de Abril de 2019, 7:01
Foto

ÁLVARO DOMINGUES
“Dizia eu que a paisagem é uma forma de evidência do lugar que está longe de se confinar a uma visão idílica dos seus componentes. (…) as paisagens literais ou metafóricas representadas dão conta de diversíssimas formas de o humano se auto-perceber. É na literatura que tal também acontece” (1)

Procurando outros assuntos, encontrei este texto de Helena Buesco sobre a paisagem na literatura. Buscando por uma coisa, encontrei outra, como os Três Príncipes de Serendip — de tanto sucesso que Horace Walpole teve com esta história, se cunhou a palavra inglesa serendipity: descobertas afortunadas que aparecem quando se procuram outras. Como Serendip é a denominação dos árabes antigos para o Sri Lanka e o Sri Lanka é Ceilão e Ceilão é a Taprobana, fica esclarecido o maravilhoso que tal lugar encerra, o que aí se pode encontrar e o que está ainda além.


Dizia então a Helena que a paisagem é uma forma de evidência do lugar e dos humanos se autoperceberem pela forma como experienciam, narram, vivem ou representam esses lugares. Certeiro, a literatura é uma forma de pensar que nos faz muita falta.

Neste lugar parece que tudo se derreteu pela sobreposição dos tempos e pela multiplicação dos espaços. No início era um velho caminho, torto e mal calcetado como foram os caminhos ao longo de milhares de órbitas que o planeta conta. Veio depois o caminho da água, pedra sobre pedra para apoiar caleiras (de pedra) por onde corria uma levada. Desta água das pedras se tirou um fio para uma bica. No descanso da jornada, animais e bestas bebiam e descansavam antes de retomar o caminho e a caminhada. Podiam ser os Príncipes de Serendip, fixados no destino da viagem e retidos ali no momento em que uma princesa passou e lhes trocou os planos e as voltas. Vede nobres senhores, disse ela, que bela paisagem que daqui se avista, subi ao aqueduto, subi e esguardai que frondoso vale, o rio ao fundo, os campos de meu pai. E eles subiram. Quando desceram, nem princesa, nem as moedas nos alforges. Em vão procuraram por ela. Tudo o que tinham planeado ficava por ali, por aquela bica dos maus encontros.

Passaram muitos anos, muita enxurrada pelo caminho, mulas, dias de sol escaldante, poeira, viajantes, mulheres que vinham lavar roupa no tanque que havia atrás, gado e procissões.

Certo dia foi uma nervoseira de máquinas que não tinha termo. Escavadoras, camiões, gruas, guindastes. Uma longuíssima e larga estrada começava a sobrevoar o caminho das pedras. Era o gigantesco viaduto. Por força da obra, o aqueduto ia-se desfazendo e as pedras amontoavam-se no estaleiro (os ductos nem sempre se dão uns com os outros quando se misturam com prefixos e perdem o c antes do t).


Concluída e descofrada a obra de arte auto-estradal, o caminho foi reposto, empedrado novo e passeio generoso como mandam as regras do conforto e da segurança de circulação de peões; o aqueduto foi reconstruído numa versão ruiniforme tosca que lhe aumenta a sensação de intemporalidade. Ficaram alguns panos de um muro que havia e a bica, qual pequeno templo desidratado. Atrás do muro existem tanques novos e cordas para estender roupa a secar. Os tanques estão secos e as cordas, vazias, apesar de a corrente de ar e a protecção da chuva favorecerem tais funções. Não há nada que não se acabe.

Por sobre este cenário quase arqueológico, paira o imenso dossel de betão por onde deslizam milhares de veículos, milhões de cavalos embutidos em motores. O caminho está um sossego, nem um cavalo; passa-lhe quase tudo por cima. Entre a caleira de pedra e a cobertura que vai ganhando uma patine cor de ferrugem, fica um desligamento que aumenta a força cenográfica do acontecimento havido neste lugar. O ruído contínuo do tráfego e a reverberação acústica completam os efeitos especiais desta ambiência, da sua luz.

Paisagem não há. Se alguém subir ao aqueduto, não verá o frondoso vale, o rio ao fundo, os campos do pai da tal princesa. Se se esticar muito, é capaz de dar com a cabeça no betão. Das diversíssimas formas de o humano se auto-aperceber, como escrevia H. Buesco, vive aqui uma paisagem ausente sem sinal de visões idílicas. A autora cita Almeida Garrett, para exemplificar algumas tonalidades românticas sobre desencantamentos:

(…) em verdade não sei explicar a impressão que me faz uma ruína neste estado. Desafinam-me os nervos, vibram-me numa discordância e dissonância insuportável. Queria ver estes altares expostos às chuvas e aos ventos do céu — que o sol os queimasse de dia, — que à noite, à luz branca da lua, ou ao tíbio reflexo das estrelas, piasse o mocho e sussurrasse a coruja sobre seus arcos meio caídos. (…) Quero-me ir embora daqui!

Contudo, o que existe é suficientemente potente para convocar imaginários sobre este olhar oblíquo para a intersecção desnivelada, a ruína velha e a nova estrada. Pobre Garrett, escapou-se-lhe o genius loci, desmaravilhou-se o olhar romântico para o lugar. O passado fixou-se, o grande lençol do tempo deixou aqui uma prega esquecida, um poema de pedras velhas que inquieta os humanos e o modo como percebem os mochos, as corujas e muita ratazana que aqui anda.

1. Helena Carvalhão Buescu (2012), Paisagem Literária: Imanência e Transcendência, in C. reis; J.A.C. Bernardes; M.H. Santana (coord), Uma Coisa na Ordem das Coisas — Estudos para Ofélia Paiva Monteiro, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 193-202, p.202


sexta-feira, 5 de abril de 2019

Jorge de Sena - No país dos sacanas

* Jorge de Sena


Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos os são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.

Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram disso?

Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.

No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.

Jorge de Sena (Outubro de 1973)
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