terça-feira, 28 de abril de 2020

Filipe Chinita - os 'velhos'

* Filipe Chinita


os 'velhos'
são gente! de toda uma vida!

os 'velhos'
são quem nos deu (a) vida!
.
os 'velhos'
devem estar é em casa!
com a família... que
criaram! e fizeram
crescer
.
os 'velhos'
de preferência...
em vez de
cães!
e
gatos...
.
os 'velhos'
também foram!
os jovens
que sois
hoje
e
vós
também sereis!
os 'velhos' que
hoje eles
são
.
os 'velhos'
eram
e são ainda... os sábios...
de outras civilizações e culturas
que dizemos... nós!
atrasadas...
___________________________________
lares
só!
para os que
precisam de cuidados
médicos continuados... que
a família não pode
ou não sabe
assegurar
.
e
ainda!
mui menos!
enquanto negócio.s privado.s
_________________________
o
resto
é só conversa...

mal cheirosa! de lucro.s...
_________________________
sim!
infelizmente há!
quem cuide de seu cão

mas não! de seus pai.s
.
e ainda assim
nunca eu deixei de 'amar'

quem assim procede

mesmo delas/es
discordando

e dizendo-
lho
sempre!

de
frontal
e fraterna.mente
__________________________
os 'velhos'
são apenas... aqueles
que deveríamos
saber levar
até
à sua morte

em sua casa

rodeados
do
amor

de todos!
os que amaram

e/ou os amaram
.
e
se

fossemos
uma 'civilização'
verdadeiramente
humana!
sempre
assim
deveria
ser


não!

se
o estado
de/a doença...

o
não permitisse
.
fj

Manuel António Pina - O medo

* Manuel António Pina

Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca de elas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.

É a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
As minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.

Serei capaz
de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas?

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Fernando Pessoa - Nevoeiro

* Fernando Pessoa

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro…

É a hora
in "Mensagem"

domingo, 26 de abril de 2020

Martin Niemoller - Quando os nazistas levaram os comunistas

* Martin Niemoller 

Quando os nazistas levaram os comunistas,
eu calei-me, porque, afinal, eu não era comunista.

Quando eles prenderam os sociais-democratas,
eu calei-me, porque, afinal, eu não era social-democrata.

Quando eles levaram os sindicalistas,
eu não protestei, porque, afinal, eu não era sindicalista.

Quando levaram os judeus,
eu não protestei, porque, afinal, eu não era judeu.

Quando eles me levaram,
não havia mais quem protestasse.

Berhold Brecht - primeiro levaram os negros

 *  Berhold Brecht

Eduardo Alves da Costa - No caminho com Maiakósvki

* Eduardo Alves Da Costa

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho e nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz:
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!

Filipe Chinita - Poderei eu

* Filipe Chinita


sábado, 25 de abril de 2020

Nuno Ramos de Almeida - Memórias de outro planeta

` Nuno Ramos de Almeida

Aproximava-se o Natal. Em casa cheirava a frio e a madeira nova. O móvel parecia-me estranho. Era encerado. Uma espécie de cómoda oca. Seria um bar daqueles kitsch? Já não me recordo. Tinha umas chaves. Lá dentro estavam prendas. Apenas uma era minha. Na nossa casa estavam brinquedos dados por camaradas na legalidade para as casas clandestinas em que viviam crianças. Era membro de um comunidade embora não nos conhecêssemos: as crianças das casas clandestinas. Hoje parece-me uma quebra das regras de segurança, a distribuição de prendas. E não percebo como chegaram os brinquedos a cada um de nós. Mas na altura isso fazia-me sentir que não estávamos sozinhos.

Tinha a nítida sensação de pertencer a um grupo unido por regras de fraternidade. Aqui estavam pessoas de muitas raças e países. Na Argélia andava na escola francesa. Estudávamos lá argelinos e filhos dos refugiados políticos. A guerra da independência tinha sido há poucos anos. O sangue tinha corrido pelas ruas. Milhões tinham morrido nos bombardeamentos dos franceses. A tortura durante a guerra tinha atingido níveis nunca vistos. A FLN (Frente de Libertação Nacional Argelina) tinha pedido aos militantes que tentassem aguentar sem falar três dias – apenas três dias, para permitir mudar os contactos e resistir à repressão. Depois da independência a cidade viveu um sonho estranho. Lembro-me dos aromas das especiarias e do ruído das manifestações. Também me ficou a recordação do fedor a excrementos nos elevadores dos prédios abandonados pelos franceses e ocupados por argelinos que nunca tinham vividos em prédios europeus. Mais tarde o meu pai e a minha mãe contaram-me que uma noite tinham conhecido aquele que mais tarde seria lembrando com o nome de Che. Já adolescente, interroguei o meu pai para saber como ele era. Será que se vê o heroísmo nos heróis? O meu pai insistiu que ele era sobretudo calado e tímido.

Eu frequentava uma escola de que só me lembro pelo cheiro a medo. Nos intervalos brincávamos às guerras. Os professores franceses que ainda restavam, quando nos apanhavam batiam–nos e ameaçavam-nos com cães. Os meus pais descobriram que éramos espancados e confrontaram os professores, que negaram terminantemente as agressões. Um dia, alguns de nós montámos uma emboscada para apedrejar um dos agressores no meio da confusão do pátio. Lembro-me que a minha pedra e de um amigo argelino lhe acertou em cheio. Quando nos bateram a seguir quase não doeu. Anos mais tarde, em França, numa casa de apoios do PCF (Partido Comunista Francês) em Paris, o meu pai comunicou-me que íamos entrar em Portugal. Por causa dos “maus”, a PIDE, tinha de escolher um nome. Um nome diferente do meu? Sim. Escolhi Sérgio. Passámos a fronteira por um sítio que os meus pais me explicaram ser um grande jardim. Era de facto grande. Caminhei até cair. O meu pai levou-me o resto do caminho às costas. Acordei no dia seguinte a vomitar, numa pensão em Chaves, com um daqueles lavatórios de ferro. Chegamos a Lisboa e arranjamos uma casa clandestina. A minha mãe mobilou-a com todos os cuidados conspiratórios: a maior parte da mobília na área social, para passarmos por uma família normal. Gastou menos que o previsto, estava feliz. Mas mais tarde o camarada responsável pelas casas criticou-a por ter gasto dinheiro num esquentador. A minha mãe nunca conseguiu esquecer o facto, quando, anos depois, voltámos para a legalidade e apoiávamos o aparelho clandestino. Pediram uma lista de coisas à minha mãe. Leu-a e respondeu, dura: “Diz ao fulano (o camarada com quem ela tinha discutido) que compro tudo menos o esquentador.”

Tive a sorte de nascer num tempo em que pude ver o escuro e a madrugada. Mesmo quando anoitece, sei que é possível ver o Sol nascer com uma claridade que varre tudo ao seu redor, nem que se tenha de fixar a cara de alguns e escolher uma pedra.


FOTO - Carga policial no Barreiro


https://www.wort.lu/pt/sociedade/editorial-mem-rias-de-outro-planeta-5e9feba4da2cc1784e35c25c?fbclid=IwAR3Xo330FwqNzOzhYxxNeL9U8GUp6Md0kVvZZ-a1yMi-YCaauuXXAvOnCYA

José Pacheco Pereira Um assassinato político ao modo da máfia


OPINIÃO
* José Pacheco Pereira

Resolvi agora visitar os magníficos textos de Oliveira Martins e da sua fonte Fernão Lopes, nenhum dos quais apanhou com a covid-19 e continuam, intactos, a ser do melhor da língua portuguesa e da história de Portugal. É pena que hoje se leiam pouco, mas isso é outra pandemia.
25 de Abril de 2020, 1:10

O segundo volume da biografia de Álvaro Cunhal termina com a sua prisão no Luso. Descrevendo o evento, disse que os pides que tinham participado na operação estavam “felizes”. O Manuel Villaverde Cabral disse-me, meio a brincar e meio a sério: “Como é que tu sabes que eles estavam felizes?” Não sabia, claro, mas sabia. Só que não havia fontes para a afirmação. Respondi ao Manuel: “Olha, fiz como o Oliveira Martins quando relata a morte do Andeiro e as reacções da rainha.”

Resolvi agora visitar os magníficos textos de Oliveira Martins e da sua fonte Fernão Lopes, nenhum dos quais apanhou com a covid-19 e continuam, intactos, a ser do melhor da língua portuguesa e da história de Portugal. É pena que hoje se leiam pouco, mas isso é outra pandemia.

A melhor propaganda para a leitura são mesmos os textos. Veja-se este excerto de Fernão Lopes:

“O Mestre, que mais vontade tinha de o matar que de estar com ele em razões, tirou logo um cutelo comprido e enviou-lhe um golpe à cabeça, porém não foi a ferida tamanha que dela morresse, se mais não houvera. Os outros que estavam derredor, quando viram isto, lançaram logo as espadas de fora para lhe dar, e movendo-se ele com aquela ferida para se acolher à câmara da Rainha, Rui Pereira, que era mais cerca, meteu por ele um estoque de armas de que logo caiu em terra morto.

Os outros quiseram-lhe dar mais feridas, mas o Mestre disse que estivessem quedos e nenhum foi ousado de lhe mais dar. (…) E era o Mestre, quando matou o Conde, em idade de vinte e cinco anos e andava nos vinte e seis. E foi morto aos seis dias de Dezembro, na era já escrita de quatrocentos e vinte e um.”


"Leonor Telles deante do cadaver do conde de Andeiro”, Roque Gameiro (1864–1935)

O que aqui se relata é um assassinato político. É precedido por uma discussão sobre comida. O Andeiro convidara o Mestre a comer com ele, e insistiu várias vezes. A resposta foi que já tinha “feito de comer”:

Ficando assim o Conde João Fernandes, gastava-se-lhe o coração, e tornou a dizer ao Mestre, Senhor, vós todavia comereis comigo.

Não comerei, disse o Mestre, que tenho feito de comer.

Sim, comereis, disse ele, e enquanto vós falais, irei eu mandar fazê-lo prestes.

Não vades, disse o Mestre, que vos hei de falar uma coisa antes que me vá, e logo me quero ir, que já é horas de comer.

A “coisa” era matá-lo, o que ele fez logo em seguida. Mas é a comida que marca o tempo dos acontecimentos, e a uma dada altura o Mestre quer apressar a “coisa” para poder ir almoçar.

O que estes textos permitem é “ver” o que se passou, como se fosse um filme, e quando os lemos é como se estivéssemos lá dentro, no Paço

Mas o texto tem muitos detalhes interessantes, a começar pelas idades. O Mestre tinha 25 anos, e a maioria dos que o acompanhavam rondavam por idades semelhantes. Eram homens habituados à guerra e à violência, não se comportavam de forma diferente de um grupo de mafiosos dos filmes, ou de um gang como os Peaky Blinders. Andavam todos armados. Numa resposta à rainha, que lhes disse que os ingleses não andavam armados a não ser em tempo de guerra – Os ingleses hão mui bom costume, que quando são no tempo da paz não trazem armas nem curam de andar armados, mas boas roupas e luvas nas mãos como donzelas –, o Mestre respondeu-lhe que não eram “donzelas”. E: “Se no tempo da paz não usarmos as armas, quando viesse a guerra não as poderíamos suportar.” E a guerra vinha mesmo a caminho.

Havia motivos que hoje consideramos nobres, mas havia também animosidades pessoais e conflitos de território, propriedade, poder e “respeito”. A máfia também se apresentava como protegendo a comunidade italiana dos abusos das autoridades. E havia também a punição ao Andeiro, porque dormia com a rainha, “com a mulher do seu Senhor”. O pormenor que conta Fernão Lopes dos que queriam continuar a espadeirar o morto também é dos filmes, quando a uma bala que mata se seguem várias de pura raiva. E, continuando na máfia, um dos companheiros preparava-se para roubar as pratas, a pretexto de cobrir as despesas – “Já vós aqui tendes para a despesa de hoje” –,​ mas o Mestre recusou. Havia também a comunicação social da época, o pajem “que fosse depressa pela vila, bradando que matavam o Mestre”, para mobilizar o povo ao lado dos conspiradores.

Depois, há o português antigo “gastava-se-lhe o coração”, os condes amigos do Andeiro quando souberam do sucedido, “cada um trabalhou de se pôr a salvo”, etc., etc. Ou seja, tudo bom. O que estes textos permitem é “ver” o que se passou, como se fosse um filme, e, quando os lemos, é como se estivéssemos lá dentro, no paço, presumo que do lado do Mestre com um espadalhão à cintura, mais nobre do que um insidioso punhal. E sangue, muito sangue, tão habitual que Fernão Lopes não fala nele.

Historiador


quinta-feira, 23 de abril de 2020

Anabela Fino - Aos que deram tudo


  • Anabela Fino


Aos que deram tudo
«Foi a descoberta mais importante de toda a sua vida. Sabia ler. Possuía o antídoto contra a venenosa peçonha da velhice». As palavras de Luis Sepúlveda, o escritor, jornalista e activista político chileno que há dias nos deixou, vítima de Covid-19, dão-nos um vislumbre do que significava escrever – a sua forma de contar o mundo – para quem cedo descobriu que a América Latina limita ao Norte com o ódio e não tem mais pontos cardeais.Membro activo da Unidade Popular chilena nos anos 70, Sepúlveda estava no Palácio de La Moneda a fazer guarda ao Presidente Allende aquando do golpe militar fascista liderado por Pinochet, com o apoio dos EUA, a 11 de Setembro de 1973. Como escreveria 30 anos depois, no seu Memorial dos anos felizes, «Cada uma e cada um tem na sua memória um álbum particular de recordações felizes daqueles dias em que demos tudo, e parecia-nos que dávamos muito pouco, porque tínhamos gravado na pele os versos do poeta cubano Fayad Jamis: “por esta revolução haverá que dar tudo, haverá que dar tudo, e nunca será o suficiente”».

Um entre tantos que lutaram para fazer do Chile um país justo, feliz e digno, o escritor para quem seria insuportável ser imortal orgulhava-se de fazer parte dos que «não renunciaram à sua dignidade, dos que resistiram nos interrogatórios, dos que morreram no exílio, dos que regressaram para lutar contra a ditadura, dos que ainda assim sonham e se organizam, dos que não participam na farsa pseudodemocrática dos administradores do legado da ditadura».

São homens como estes que guardamos na memória, gratos por nos lembrarem que só voa quem se atreve a fazê-lo. Com eles, na despedida, «bebamos com orgulho o vinho digno das mulheres e dos homens que deram tudo, que deram tudo pensando que não era o suficiente».

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Bertolt Brecht - COMO OS TECELÕES DE TAPETES DE KUJAN-BULAK HONRARAM A MEMÓRIA DE LÉNINE

Bertolt Brecht

1

Muitas vezes e à farta foi honrado
o Camarada Lénine. Há bustos dele e estátuas.
Puseram o nome dele a cidades e crianças.
Fazem-se discursos em muitas línguas
há assembleias e demonstrações
desde Xangai a Chicago em honra de Lénine.
Mas foi assim que o honraram os tecelões de tapetes
de Kujan-Bulak, pequena povoação no Sul do Turquestão:
Vinte tecelões de tapetes levantam-se ali ao anoitecer
do miserável tear, sacudidos pela febre.
Anda febre por lá: a estação de caminho-de-ferro
está cheia do zumbir dos mosquitos, nuvem espessa
que se ergue do pântano por detrás do velho cemitério dos camelos.
Mas o comboio
que de quinze em quinze dias traz água e fumo, traz
também um belo dia a notícia
que vem aí o dia da homenagem ao Camarada Lénine.
E as gentes de Kujan-Bulak, gente
pobre, tecelões de tapetes, decidem
que também na sua povoação
se erga o busto de gesso ao Camarada Lénine.
Mas quando se vai juntar o dinheiro para o busto
ei-los todos sacudidos de febre a pagar
os copeques penosamente ganhos com mãos a adejar.
E Stepa Gamalev, do Exército Vermelho, que vai contando
e vendo com cuidado e precisão.
vê a prontidão deles em honrar Lénine, e fica contente,
mas vê também as mãos vacilantes,
e faz de repente a proposta
de comprar, com o dinheiro para o busto, petróleo
para derramar no pântano atrás do cemitério dos camelos
donde vêm os mosquitos
que causam febres.
Para assim combater as febres em Kujan-Bulak, e em verdade
em honra do falecido, mas
não esquecido
Camarada Lénine.
Assim o resolveram. No dia da homenagem levaram
os seus baldes amolgados cheios de petróleo negro
um após outro, para lá,
e regaram o pântano com ele.
Assim tiraram proveito para si mesmos ao honrarem Lénine e
honraram-no, com proveito para si mesmos, e assim
o tinham entendido.

2

Ouvimos pois como as gentes de Kujan-Bulak
honraram Lénine. Mas à noitinha,
comprado e espalhado o petróleo sobre o pântano,
eis se levantou um homem na assembleia e exigiu
que se colocasse uma placa na estação do comboio
com o relato do acontecido, contendo
também exatamente a alteração do plano e a troca
do busto de Lénine pela tonelada de petróleo que acabou com as febres.
E tudo isto em honra de Lénine.
E assim fizeram também isto
e puseram a placa.


terça-feira, 21 de abril de 2020

Ana Pais - Milagres da Carochinha

* Ana Pais

Há uma semana, o Presidente Marcelo anunciou um novo prolongamento do estado de emergência até 2 de Maio, apesar das pressões para se reabrir a economia. Assim, apresentou razões relativas à prevenção e estabilização da ameaça à saúde pública, elogiou e acalentou três grupos da população (“pessoas da minha idade”, jovens e autarcas) e destacou a confiança como “palavra-chave” no controlo da crise na saúde, mas já lembrando a sua relevância para a retoma económica. Terminou com uma referência à imprensa internacional que designou por “milagre português” a eficácia do país no controlo de mortalidade devido à COVID 19: a deixa perfeita para fazer reverberar no coração colectivo os ecos – longínquos, mas bem conservados – da excepcionalidade heróica de Portugal. 

Durante aquela semana, vários artigos na imprensa internacional elogiaram a acção portuguesa no combate ao vírus. Um artigo em particular, no jornal alemão Der Spiegel, descreve a situação portuguesa como um milagre, comparativamente a outros países europeus, nomeadamente a vizinha Espanha. Claro que o termo é usado com alguma ironia (talvez até maior do que possamos imaginar, uma espécie de elogio disfarçado de sobranceria pragmática perante um país do sul que nem só no sol tem sorte), evidenciada quando o jornalista pergunta se uma das razões que explicam o milagre não será por nós termos Fátima e Espanha não. A não ser que este fosse um texto escrito por um crente assumido, obedecendo a um programa evangelizador, não é difícil reconhecer o tom irónico. No discurso de Marcelo, porém, a ironia é minimizada porque a oportunidade de beneficiar das ressonâncias que o mito do milagre poderia ter num contexto de pandemia é demasiado perfeita, à luz de uma retórica conservadora. Senão vejamos. Após aludir a estas vozes internacionais, Marcelo estabelece uma ponte entre as seguintes ideias: “eles dizem que fizemos um milagre” + “estamos a fazer o milagre”. E avança a explicação oportuna: estamos a fazer o milagre porque Portugal é um milagre há 900 anos! Com o cansaço derivado de quatro semanas de isolamento, quem então ouviu os telejornais deve-se ter rido dessa ideia um pouco disparatada, ou pode ter pensado que se tratava de um excesso de entusiasmo do Presidente. Mas, conscientes ou não do que estava a acontecer neste discurso, os portugueses foram atingidos por um torpedo silencioso, em directo do Palácio de Belém para suas casas. O milagre explodiu no DNA cultural dos portugueses. 

Afonso Henriques aludindo ao 'Milagre de Ourique' mitificando-se a ideia de que derrotou os mouros na Batalha de 1139 com ajuda divina.

O milagre é um tema enraizado na cultura portuguesa desde que se começam a construir as narrativas simbólicas sobre a fundação de Portugal, primeiro difundidas pelas crónicas históricas. A partir do século XV até ao século XVII (da Crónica de 1419, às Profecias de Bandarra que desde logo projecta um V Império, da épica de Luís de Camões aos Sermões do Padre António Vieira), as narrativas culturais sobre a nação desenham o carácter heroico de um povo e a predestinação divina de um país que tem tudo para dar errado, mas Deus quer que dê certo. É justamente com o início da expansão portuguesa pelo mundo (começando pela tomada de Ceuta em 1415) que se torna imprescindível enaltecer a coragem de um povo e a origem providencial de uma nação, cujas fronteiras são, segundo a narrativa mítica da história, as mais antigas da Europa. Por um lado, se o país se abalançava num investimento de dimensão incomparável para o seu tempo, convinha cultivar os sentimentos de bravura, determinação e heroicidade e, por outro lado, ao mitificar a origem e o providencialismo de Portugal, legitimava-se esse investimento com um propósito mais elevado e, consequentemente, justificava-se a violência do império colonial. 

Mas de que milagre estamos a falar? Do mesmo a que o Presidente da República fez referência no seu discurso da tomada de posse quando elencou os sentimentos que caracterizam os portugueses: “a crença em milagres de Ourique”. A fundação de Portugal em 1143 decorre de várias batalhas, mas aquela que simboliza a sua fundação mítica é a Batalha de Ourique. Conta a lenda que D. Afonso Henriques terá recebido, na véspera da batalha, o sinal divino da vitória dos portugueses. Nada mais nada menos do que o próprio Cristo terá aparecido ao soberano do Condado Portucalense garantindo-lhe a vitória nesta e nas próximas batalhas, vaticinando assim a independência de Portugal e a sua mítica e mística protecção. Esta é a grandiosidade do milagre que estamos a falar e que foi invocado neste terceiro discurso de Marcelo em tempos virulentos para nos afagar a auto-estima. Mais uma vez, invoca-se uma lógica simbólica de guerra e de inimigo que é preciso combater – e mais: de um inimigo que estamos predestinados a eliminar! – ao associar o milagre de uma batalha decisiva para a fundação de Portugal ao “milagre” actual da contenção da epidemia no país. 

Por que importa falar disto, esmiuçar as sub-reptícias minudências de sentido na comunicação do Presidente da República ao país? Por que estamos em pleno século XXI e continuamos a invocar ficções de há cinco séculos para criar laços sociais e estimular um espírito colectivo? Posso compreender que as palavras foram bem-intencionadas, que Marcelo já percebeu a necessidade da performance dos afectos à distância e, claramente, já se sente mais confortável com o novo papel. Mas é ofensivo para um país que se diz moderno, modernizado, europeizado. É ofensivo para os cidadãos. Por que não procura o Presidente novas palavras, outras formulações para dizer o que realmente importa? 

O que verdadeiramente importa? Que não há milagres, mas forças colectivas, circunstâncias e pessoas extraordinárias; que não há inimigos invisíveis, mas outras vidas, outros mundos biológicos que, também eles para sobreviverem e prosperarem fazem o seu caminho, como os humanos fazem à custa de vidas de outras espécies; que a solidariedade fundada na sobrevivência individual não é solidariedade; que precisamos uns dos outros para fundar um mundo melhor, mais justo e paritário; que repetir discursos estiolados e bafientos não nos levará a parte nenhuma. É essencial estar consciente das implicações simbólicas das palavras porque elas também produzem atmosferas afectivas que têm uma acção viral: infiltram-se nas nossas mentes e infectam o coração das gentes.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

William Shakespeare - Sempre que, debatendo no mais doce silêncio,

* William Shakespeare


Sempre que, debatendo no mais doce silêncio,
Convoco na memória tudo o que foi passado,
Suspiro pela ausência do que foi desejado
E assim gasto o meu tempo valioso em velhos prantos.

E os meus olhos se afogam, eu, que mal sei chorar,
Por amigos perdidos na morte sem idade,
E torno a lamentar amores antes sarados
E pranteio por tudo o que gastei do olhar.

Posso sofrer então por sofrimentos idos,
Contar de mágoa em mágoa, da forma mais dorida,
A minha triste história de queixas mais antigas

Cobrando, nova, a história, como nunca cobrada.
Mas quando, amigo meu, me vens ao pensamento
Recuperam-se as perdas e finda o sofrimento.

Soneto 30, tradução de Ana Luísa Amaral, inserido na colectânea “31 Sonetos” de William Shakespeare, publicado pela Relógio D’Água

domingo, 19 de abril de 2020

António Santos - A Idade do Confinamento

*  

SUNDAY, APRIL 19, 2020



Nessa noite sonhou com o mar. Quando acordou não se lembrava de como ali tinha chegado nem de por que razão estava sozinho, a nadar na imensidão nocturna de um oceano tranquilo, a milhas de qualquer rochedo ou batel. Só se lembrava de que nadou durante muito tempo, até perder as forças — e acordar.
Tacteou a mesinha de cabeceira sobrelotada: os medicamentos para a ciática, o copo de água que os acompanham, um livro — a foleiríssima edição Europa-América do Rei Édipo — e, finalmente, o fio do carregador cujo rasto o conduziu ao telemóvel. Ainda eram seis, não que isso importasse e, como o pequeno-almoço só chegava às sete, assim no silêncio se deixou ficar. As cumeeiras das rugas projectando sombras fundas na cara envelhecida, iluminada pelo clarão do ecrã sem mensagens, nem notificações, nem internet, nem rede, nem nada a não ser a data: 24/7. Fazia nesse dia três anos.
Como o borralho que ainda esconde a brasa rubra sob a cinza fria de manhã, invadiu-o a recordação de um ódio antigo. O Carlos, o da comunicação, só com 55 anos e aquele sorriso de atrasado mental, a distribuir abraços cínicos e filosofia dos pacotinhos de açúcar, «Aproveita a vida, Carla! Olha que há mais vida sem ser a vender pneus», como se não quisesse saber da penalização de 60%, 0,5 por cada mês antes da hora, «nem sei por onde começar, há tanta coisa que ainda quero fazer» e ele, a responder-lhe arqueando as sobrancelhas e contraindo os lábios mudos, numa reprovação que o Carlos não era assim tão estúpido que não pudesse entender mas a que retorquiu apenas com uma petulante gargalhada, como se se estivesse a rir dele, como se soubesse que aquela merda ia acontecer.
Sentia-se enganado. Qualquer penalização teria sido melhor do que aquela reforma completa «Aproveita a vida, Carla!». Na verdade, tudo teria sido melhor do que a terrível ironia de passar duas décadas a suspirar pela reforma redentora, a sonhar com a tal casinha na Beira onde ninguém lhe maçasse a aposentação dourada nos píncaros dos escalões «nem sei por onde começar, há tanta coisa que ainda quero fazer» para, na data na santa liberdade, ficar preso num quarto «Olha que há mais vida sem ser a vender pneus» de 12 por 10 metros quadrados.
Foi apagar o brasido do ódio no chuveiro. Durante esses três anos tinha aprendido muito. Foi na paixão pelos gregos antigos que descobriu o antídoto para o ódio e a vacina para a loucura. Os helenos pensavam no tempo de uma forma diferente: imaginavam-se a recuar para o futuro de costas em vez de avançar na sua direcção. A palavra opiso, por exemplo, que significa «atrás», era usada pelos gregos para designar não o passado, mas o futuro. Quando o rei Édipo arranca os cabelos por «não poder ver o que está aqui nem o que está para trás» lamenta-se de não conseguir ver nem o presente nem o futuro porque, convenhamos, o que está à nossa frente é visível. O problema é que nós vamos para o futuro a andar para trás. O truque, ensinavam os gregos, não consistia, portanto, em planear o Cronos, o tempo sequencial, mas em identificar o Kairós, a oportunidade irrepetível de cada momento presente.
Cronos devia encolher os ombros: já não era capaz de dizer de trás para a frente, ou da frente para trás, que medidas de isolamento social se sucederam a que renovações do Estados de Emergência e que novas ordens das autoridades de Saúde se traduziram em que remodelações do quarto de confinamento. Algures no primeiro ano, o filho disse-lhe pelo telecomunicador que o decreto da 15.º renovação do Estado de Emergência proibia permanentemente os idosos com mais de 65 anos de sair do quarto de confinamento e ele, que já não vivia à espera de Cronos mas de Kairós, não fez demasiadas perguntas. Até esse ponto, os quartos de confinamento de idosos haviam sido apenas uma recomendação, mas as famílias aparentemente não respeitavam as instruções das autoridades sanitárias e o número de mortos não parava de aumentar. Para travar a formidável mortandade que grassava na terceira idade, o novo decreto impunha penas de prisão para os familiares dos idosos infectados. Não se importou demasiado: dentro da nova normalidade até era um privilegiado: a requisição generalizada impedia incontáveis famílias de cuidar dos seus idosos confinados e o seu filho, ao menos, nunca falhara uma refeição. Quando, passado uns meses, colapsaram todas as telecomunicações à excepção da rádio, isso também não o perturbou, afinal, num mundo devastado pela pandemia, ele mantinha uma vida segura e confortável, preso num quartinho, é certo, mas nos 20% de idosos sobreviventes que, perdendo o libelo grisalho de peso para a segurança social e grande estorvo em geral, passaram a ser vistos como uma relíquia tão frágil e tão rara que se tornava necessário prendê-los a todos. Só se afligiu quando o filho testou positivo, embora assintomático. O coitado não tinha sintomas nem da vida: aos cinquenta anos nem mulher nem filhos nem carreira nem casa própria nem perspectivas de um dia se reformar, como ele. Já no segundo ano, o filho informou-o de que estavam infectados todos os adultos do país em idade activa. De resto, não guardava rancor à sua prisão, um sacrifício necessário para preservar a vida, e muito menos ao seu pobre carcereiro que, obrigado por requisição civil, continuaria a trabalhar infectado, das 8 às 20 horas de segunda a sexta e enquanto o Estado de Emergência durasse. A culpa de tudo aquilo era do vírus. E o vírus não sabia sequer o que era o rancor.
Saído do duche, prosseguiu a leitura. O rei de Tebas, Laio, e a sua mulher, Jocasta, ouvem do oráculo de Delfos a terrível profecia de que o seu bebé recém-nascido, a que dão o nome de Édipo, um dia matará o pai e casará com a própria mãe. Para evitar a desgraça, Laio e Jocasta abandonam o infante à morte na natureza. A criança, contudo, escapa nos braços de um Pastor ao destino que lhe fora traçado e cresce sem saber quem é. Já um jovem, Édipo cruzar-se-á por coincidência com o séquito de Laio, que viaja em anonimato. Por motivo fútil, literalmente uma cedência de passagem num cruzamento, dá-se um confronto em que Édipo rebenta toda comitiva real à porrada e mata Laio, executando parte da profecia vaticinada à sua nascença. Embora Édipo o ignorasse, o seu futuro recuava.
Fechou o livro e vestiu-se. Sentia-se incomodado com alguma coisa que não podia identificar.
— Estás aí? — gritou ao telecomunicador.
— Sim… — afirmou, soporosa, a voz do filho passados alguns segundos.
— Estás bem?
— Estou, estou — abreviou o filho.
— Acordei-te?
— Não, não… O que se passa? — insistiu o mais novo.
— Não sei, não é nada. Acordei estranho, hoje ­— começou o progenitor.
— Mas sentes-te bem?
— Sim, sim… Não é isso — continuou contra uma timidez espessa e opaca — Hoje é o aniversário da minha reforma. Três anos, porra. Se calhar foi isso, não sei. Está tudo bem.

O silêncio sepulcral que crescia no altifalante incomodou-o.
— E como estão as coisas lá fora? — perguntou só para que o filho tivesse de falar.
— Iguais. O governo ontem disse na rádio que estão à espera de pelo menos mais cinco vagas até haver imunização — retorquiu o filho.
— E a vacina?

Novamente, o silêncio preencheu-se de estática a ziziar no telecomunicador como as cigarras no Estio. Ainda não havia vacina. O confinamento era potencialmente perpétuo.
E foi então, nesse preciso momento, que aconteceu. O filho continuava a falar sobre uma manifestação ilegal contra a requisição civil para todos os trabalhadores em idade activa, mas ele tinha deixado de o ouvir: olhava fixamente para o ecrã do telemóvel que mostrava as horas como uma sentença: eram oito horas e dez minutos.
— …e eu até concordei com a requisição ao início: se ninguém fosse trabalhar, em vez de morrerem muitos com o vírus morríamos todos de fome, mas não acho bem que…
— Sabes que horas são? — perguntou subitamente. A sua voz soou clara e calma, cortava como um machado. O filho tardou a responder. As cigarras eléctricas reocuparam o imenso espaço entre os dois — Porque não estás a trabalhar?
— Houve um problema de abastecimento — titubeou o filho — Mandaram-nos ficar só hoje em lay-off. Amanhã já…
— Não. Tu disseste-me que já não havia lay-off. Não me disseste que quando uma empresa pára os trabalhadores são automaticamente requisitados para ocupar o lugar dos mortos?
— Eu sei… — a respiração do filho suava — Nós achamos que é por isso que isto vai dar barraca… O patrão não informou o governo que ia parar e agora…
— Ok.

Conhecia o filho há mais de cinquenta anos. Ao poisar o telecomunicador, sentiu uma espuma ácida a formar-se-lhe no estômago, o coração ardia-lhe e o cérebro latejava. Não sabia porquê, mas tinha a certeza de que o filho estava a mentir.
Cirandava pelo quarto como uma fera enjaulada. Se o filho ficava em casa, a requisição civil não existia e se a requisição civil não era real, que mais não conseguia ele ver nas suas costas? Para serenar a aflição, regressou ao livro: após matar todo um cortejo de desconhecidos na sequência de uma discussão no trânsito, Édipo ouve dizer que, infeliz coincidência, o rei de Tebas havia falecido, pelo que a coroa do reino, bem como a mão da viúva Jocasta, pertenceria a quem conseguisse derrotar a esfinge. A esfinge era um terrível monstro que impunha um embargo ao comércio tebano, impedindo de entrar ou sair da cidade-estado quem não soubesse responder a uma adivinha, provação que reiteradamente terminava no estômago da esfinge. Édipo, claro está, decidiu que seria de bom alvitre tentar também a sua sorte na estrada para Tebas. «Qual é coisa, qual é ela, que de manhã caminha em quatro patas, à tarde em duas e à noite em três?», perguntou o medonho monstro com cabeça de mulher, corpo de leão e asas de águia. Édipo, que, ainda não o dissemos, era tão danado para a porrada como para as adivinhas, sem delongas respondeu: «é o homem! Na infância gatinha, quando é adulto caminha e na velhice apoia-se numa bengalinha». Derrotada por fim, a esfinge precipita-se no abismo, desimpedindo o caminho para Tebas, onde o infeliz leigarraz se casará com Jocasta e se sentará no maldito trono. Estava cumprida a profecia.
Não se conseguia concentrar. Do turbilhão de hipóteses que o zurziam como vespas uma picou-o em cheio no meio da testa: se o filho lhe mentira sobre ir trabalhar, talvez também lhe tivesse mentido sobre a pandemia. Uma e outra vez quis tergiversar o pensamento para diferentes azimutes, mas o veneno da vespa suspicácia já lhe espalhava o seu barrunto pela corrente sanguínea. Deu por si, preso naquele quarto minúsculo, a perguntar-se quanto ao certo seria verdade. Teriam as telecomunicações colapsado mesmo? Diriam os decretos do Estado de Emergência tudo o que o filho lhe relatava? O que sabia ele sobre vírus e pandemias? Quem era ele para disputar o que lhe dizia o filho, a quem dissera a rádio, a quem dissera o Presidente, a quem disseram os cientistas que era preciso fechar os velhos e trabalhar até exaustão? Poderia a pandemia durar para sempre? Ao fim de tanto tempo fechado, sem ouvir nem ver ninguém, a emergência torna-se em normalidade, a excepção converte-se em regra e o confinamento numa verdade tão desnecessária de provar ou discutir como o ar invisível que se respira.
Tinha de ouvi-lo pelos próprios ouvidos.
— Estás aí? — perguntou.— Sim — a voz seca do filho emergiu da estática.
— Quero ouvir a rádio.

A resposta do filho tardou, deixou o titanesco pedido de chumbo caído no chão, e subitamente caiu sobre ele, rápida, assertiva e com força de lei natural.
— Não pode ser, pai. Só temos uma e está comigo. Se ta desse, infectava-te.
— Não quero saber, desinfecta-a — recorreu desapegadadamente.
— O desinfectante está esgotado há dois anos, pai. Porque é que queres a rádio? Eu não te digo as notícias quando as há?
— Não interessa. Limpa-a como puderes. Usa sabonete, usa lixívia, mas traz-ma. Não oiço mais nenhuma voz há três anos. Quero ouvir a rádio. Até pode ficar desse lado da porta com o volume no máximo.
— Isto é por causa daquilo hoje de manhã? — Insurgiu-se o filho.
— Não. Só quero que me tragas a rádio durante uma hora. Estou a pedir-te.
— Não.

Um silêncio de fel borbulhava do telecomunicador, queimava-lhe os ouvidos e secava-lhe a boca.
— Se não me trouxeres imediatamente o rádio, eu vou-me embora.
De pouco serviram a súplicas enraivecidas do filho. Quando se tornou claro que o seu pedido seria indeferido, respirou fundo, colocou a máscara e agarrou na maçaneta da porta corta-fogo que, em três anos, nunca tentara rodar. A mão estremeceu-lhe quando rodou o puxador e um fio de gelo desceu-lhe pela espinha. Estava trancada. Estivera sempre trancada. E pela primeira vez, percebeu que era um prisioneiro. Por isso gritou, até a voz enrouquecer, esmurrou a porta até as mãos lhe sangrarem. Depois chamou pelo filho caído em lágrimas contra a porta como um trapo humano. Assim chorou baixinho durante muitas horas.
Costuma-se dizer que não é por falta de força que os elefantes não arrancam da terra as palancas a que os acorrentam, mas simplesmente porque assumem desde pequeninos que as estacas são impossíveis de arrancar e, quando crescem, nunca mais experimentam. Com ele fora ao contrário. Nunca tentara abrir a porta porque sempre assumira que estava aberta. Caindo por terra essa suposição, desmanchavam-se todas as outras certezas: haveria ainda confinamento obrigatório? Duraria ainda o Estado de Emergência? A requisição civil generalizada seria verdadeira? Existiria mesmo alguma pandemia?
Nessa noite, a primeira em que o filho não lhe trouxe o jantar, deitou-se na cama e retomou a leitura: volvidos muitos anos sobre a coroação de Édipo, uma misteriosa maldição abate-se sobre Tebas: toda a vida se torna estéril. A infecundidade afecta não somente os seres humanos como também as plantas e os animais por igual, matando lentamente a cidade à fome. O oráculo revela aos tebanos que a maldição só poderá ser quebrada descobrindo o assassino do rei Laio. Em busca de respostas, Édipo consulta Tirésias, o famoso profeta cego, que lhe revela ser ele o assassino de seu pai. Quando o anátema de Tirérias se confirma, o mundo de Édipo desmorona-se sob o peso da realidade. Jocasta, sua mãe e mulher, suicida-se e Édipo, incapaz de enfrentar a verdade, arranca os próprios olhos com um alfinete da mulher.
Não faria sentido esperar por Cronos, que devora tudo o que cria, era preciso agir. Édipo segredara-lhe uma ideia ao ouvido.
Na manhã seguinte, aliás como todos os dias, às 7 da manhã, o filho desceu as escadas com o pequeno almoço num tabuleiro: um copo de leite e um pão de leite com queijo e manteiga. Abriu o microondas que, através de duas portas, comunicava com o interior do quarto, permitindo desinfectar os alimentos através de uma fervura rápida, e poisou o pequeno-almoço no prato giratório. A outra porta também estava aberta, violação clara das regras de saúde, e, no chão do quarto, viu o pai, jacente de bruços numa enorme poça daquilo que tanto podia ser sangue como negra pez, não fosse só o sangue cheirar a sangue.
Destrancou a porta desesperado e ajoelhando-se junto ao pai entre soluços embargados e pedidos indecifráveis, agarrou-lhe entre as palmas a cara inerte. Procurava a ferida que tão copiosamente jorrava mas em nenhum lugar se via. Nem nos pulsos, nem no pescoço, nem nos lugares costumeiros dos suicidas convictos, nem sequer no coração, pelo menos a olho nu se visse, que ele há feridas no coração que profusamente sangram e nunca se vêem. Até que numa fracção de segundo, o pai levanta-se de um salto com um vigor juvenil guardado sabe-se lá onde, derruba no charco de sangue o filho meio atónito de cócoras e cruza como um felino o umbral. Antes que o filho pensasse sequer em se levantar, deu duas voltas à chave.
Enquanto estancava a hemorragia que provocara enterrando profundissimamente na coxa uma lâmina de barbear, ouvia os ecos abafados do filho a berrar impropérios e a projectar-se em peso contra a porta. Depois foi à janela. Forçou os olhos a habituarem-se à claridade do céu que não via há 3 anos. A rua imóvel e deserta de gente permanecia sob o mesmo feitiço soporífero. Só os gatos vadios e os estendais adejar os perfumes do detergentes da roupa na tarde de Primavera é que quebravam a ilusão de ter alguém carregado no botão da pausa. A casa também parecia congelada no tempo: o filho não mudara a posição de nada, nem sequer da televisão, que afinal continuava a funcionar normalmente. A pandemia afinal continuava, confirmou o noticiário, e a requisição civil era real, mas nem uma palavra sobre quaisquer medidas de confinamento forçado para os velhos. Algo não batia certo, como uma profecia que parece incompleta sem uma grande razão de existir.
Desceu as escadas, enfiou a cara no microondas e disse ao filho:
— Acho que me deves uma explicação.
— Vais prender-me aqui para sempre? — respondeu o filho sem o encarar. Estava sentado na cama, dobrado sobre si mesmo, com os cotovelos nos joelhos e a cabeça amparada entre as duas mãos. Dali, parecia estar a ver-se a si próprio na televisão: a barba menos branca, a cabeça menos calva, mas de resto tal pai, tal filho.
— Só se não me explicares porque é que me ias fazer isso a mim.
— Para não te infectar! Para te proteger!
— Não mintas, já estive a ver televisão.

Calmamente, o filho ergueu a cabeça e observou o quarto à sua volta como quem procura imaginar-se a viver numa casa nova. Naquele instante foi como se estivesse a olhar pela fechadura do tempo para o filho pequenino, assim sentadinho na cama do seu quarto, abstraído das profecias que lhe reservava o mundo. O que estava para fazer doeu-lhe tanto que sentiu as glândulas lacrimais em brasa e os ossos gelados e até Cronos, um tipo que devora os próprios filhos, se comoveu perante semelhante visão.
— A requisição geral — começou por fim — depois de meses em casa, fomos obrigados a ir trabalhar. Essa parte é verdade. Na fábrica todos os dias adoeciam trabalhadores. Eram substituídos automaticamente pelos funcionários das empresas que já não conseguiam laborar por problemas de logística, abastecimento ou falta de mão-de-obra. Os números de mortos também eram verdadeiros. Diziam que morrer a economia era pior do que morrermos alguns de nós. Só eles é que não morriam.
— Eles quem?
— O governo, o meu patrão… os ricos deste país. Esses aprenderam a proteger-se rapidamente. Sabes o que é que faziam? Nunca saíam de sítios como este. Maiores, é certo, mas não entendes que te estava a proteger? — perguntou o filho.
— E porque é que eu não podia saber? Porque tiveste de mentir este tempo todo? — devolveu o pai.
— A única escapatória à compulsão ao trabalho da requisição era a reforma antecipada, com um corte de 70 por cento… Só com isso eu não me safava, pai.
— Então prendeste o teu próprio pai para lhe roubares a reforma?!

O filho, como que sentindo os olhares reprovadores dos leitores, desviou os olhos envergonhados e levantou-se perturbado e sem saber que o maior opróbrio não é o seu mas o de um tempo em que os filhos dependem das reformas dos pais para se manterem vivos.
— Prendi-te aqui dentro para não morrer. Se fosse trabalhar ia trabalhar 11 horas por dia até morrer infectado.
— Porque não me pediste?
— Pedir-te uma mesada? Como um adolescente? Pedir-te que pusesses pão no prato de um velho de 58 anos? E tu, vais dizer que me dirias que sim?

Nessa noite sonhou com o mar. Quando acordou, preparou um pão com queijo e um copo de leite, tocou três vezes à porta, colocou o pequeno-almoço no prato giratório do microondas e foi ver televisão. O presidente anunciava a 50.ª renovação do Estado de Emergência, que expandia a iniciativa privada dentro das prisões e autorizava a polícia a fazer buscas sem mandato nas casas suspeitas de ocultaram trabalhadores em idade activa fugidos ao trabalho. Já não se lembrava de quase nada do sonho dessa noite, nem como ali tinha chegado nem por que razão estava sozinho, a nadar na imensidão nocturna de um oceano tranquilo, mas, de alguma forma, o sonho parecia-lhe fazer sentido.
17.4.20  

Ilustração de Renata Candeias

sábado, 18 de abril de 2020

José Pacheco Pereira - A música venceu Salvatore Quasimodo


OPINIÃO
A música venceu Salvatore Quasimodo
Nestes tempos de peste, leiam o Eugénio de Andrade e, melhor ainda, ouçam as suas músicas.
18 de Abril de 2020, 6:15

Penso que já contei esta história, mas em tempos de peste ouve-se às vezes melhor lá fora do que cá dentro. Algum pássaro a transportará passando por cima do cavaleiro do apocalipse que nos assalta hoje.

Entre o Ostinato Rigore publicado em 1964 e o Obscuro Domínio de 1971, Eugénio de Andrade escreveu muito pouca poesia. Traduziu e editou poetas e preparou várias antologias de prosa para a Inova, a sua editora nos últimos anos de ditadura. Foram também os anos em que o nosso convívio foi mais intenso, partilhado pela Rosa, o José Rodrigues, o Ângelo de Sousa, o Manuel Dias da Fonseca, o Jorge Peixinho e, numa visita memorável e esporádica, pelo Jorge de Sena. Essa visita merece ser contada, mas fica para depois.

O Eugénio estava com aquilo que hoje se chama writer’s block, uma sinistra expressão para um poeta, ou seja, estava com uma crise de escrita. Recordo-me de uma longa conversa com o Eugénio sobre isso que começou na Rua de Palmela, 111, em que no andar de baixo vivia a Rosa e no de cima o Eugénio. Era uma casa bastante modesta e muito pequena, cozinha, sala partilhada entre uma mesa em que escrevia junto à janela e também comia, e uma pequena sala de estar, uma dispensa cheia de livros, e um longo corredor para o quarto de banho e o quarto do lado oposto da casa, virado para as árvores da rua. Os passeios nocturnos começavam muitas vezes aí e tinham uma paragem obrigatória no Café S. Lázaro, junto da Biblioteca Municipal e de um dos mais belos jardins românticos do Porto.

Nesse dia, saímos do Café bastante cedo e seguimos em direcção à Ribeira pela Rua de S. António (que a ditadura impediu que se chamasse 31 de Janeiro), depois pela Rua Mouzinho da Silveira, até ao rio e depois ao longo do rio. Era uma daquelas conversas que incluem muitos silêncios que não incomodavam ninguém, pela sua naturalidade. (Outro poeta que tinha também essa capacidade de silêncio como parte da conversa era o Vasco Graça Moura.) Eugénio dizia que já não conseguia escrever poesia, as suas palavras nos poemas tinham atingido um estado de depuração e contenção, que não conseguia ultrapassar essa forma exígua e contida. Dava o exemplo de Salvatore Quasimodo e dos seus poemas como também tendo chegado a uma forma tão condensada de escrita, “como uma pedra”. Não se podia passar dali. A conversa e o passeio terminou num pequeno estaleiro que havia à beira-rio. Era uma noite escura e os barcos tinham uma sombra sinistra, embora a noite fosse amena. Saídos da Ribeira havia muito pouca gente na rua, a não ser alguns pescadores. Para quem conhece o Porto, sabe que o passeio foi muito longo, e o regresso duplicou-o.


 
Ofereci então ao Eugénio um dos poucos discos que tinha, com quartetos de Haydn e ele comprou um pick up caro, e depois não largava a música. Contava com dois grandes melómanos para o aconselhar, Manuel Dias da Fonseca e Óscar Lopes, antes de ficar quase surdo

Lembrei-me então da música e sabia que o Eugénio ouvia muito pouca música em casa. Não era por falta de referências musicais nos seus poemas, nem pelo convívio semanal com a tertúlia do Manuel Dias da Fonseca em Matosinhos, nem sequer quando Jorge Peixinho e Clotilde Rosa irromperam neste círculo de amizades. Mas o Eugénio era em grande parte um autodidacta, “feito” não só pelo seu génio poético, mas também pelo convívio que desde Coimbra, e ainda mais no Porto, tinha com muita gente da arte, da música, do teatro, da cultura em sentido lato. Era também um grande e selectivo leitor, cujos livros estavam cheios de sublinhados e pontuações, traduzindo o impacto que alguns textos tinham nele. E “feito” também pelas suas paixões, num tempo em que eram proibidas e perseguidas.

Eu tinha muito poucos discos, que eram caros, e ia muitas vezes ouvir música a pretexto de comprar discos numa loja na Rua de S. António. Tinha feito, no Liceu Alexandre Herculano e depois no Rainha S. Isabel, umas sessões de comentário a músicas e estudara piano e composição, embora mais tarde tivesse interrompido as aulas. Ofereci então ao Eugénio um dos poucos discos que tinha, com quartetos de Haydn, e ele comprou um pick up caro, e depois não largava a música. Contava com dois grandes melómanos para o aconselhar, Manuel Dias da Fonseca e Óscar Lopes, antes de ficar quase surdo. Comprava e ouvia essencialmente música de câmara, Haydn, Beethoven, Mozart, e os ciclos de canções de Schubert, Wagner, Strauss. Gostava de Mahler, mas passava pouco daí. Tinha um disco de música electrónica com um poema de Henri Michaux, que o Jorge Peixinho lhe tinha dado, e que ele me fez ouvir, mas era o poema que lhe interessava e não a música.

Mais tarde reconheceu que fora pela música que começara de novo a escrever, e é possível encontrar nalguns poemas posteriores referência muito mais precisas a peças musicais. A música vencera Salvatore Quasimodo. Nestes tempos de peste, leiam o Eugénio de Andrade e, melhor ainda, ouçam as suas músicas.

Como nesta página não entra a covid-19, para a semana há mais.