quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

poesia de manuel antónio pina



* Manuel António Pina

TRANSFORMA-SE A COISA ESCRITA NO ESCRITOR


Isto está cheio de gente
falando ao mesmo tempo
e alguma coisa está fora de isto falando de isto
e tudo é sabido em qualquer lugar.


(Chamo-lhe Literatura porque não sei o nome de isto;)
o escritor é uma sombra de uma sombra
o que fala põe-o fora de si
e de tudo o que não existe.


Aquele que quer saber
tem o coração pronto para o
roubo e para a violência
e a alma pronta para o esquecimento.


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Tenho a sensação de não estar onde não estou,
de já ter passado qualquer coisa que já se passou,
e de ter a sensação passada de sentir-me a não estar lá,
suspenso sobre a Literatura.


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Kindergarten


As filhas brincam fora de o quê, 
que infinitamente se interroga?
O fora de elas é dentro
de que exterior centro?

Quem está lá aqui
assistindo a isto e a mim,
e às filhas brincando e ao jardim?
Que coisa essencial em qualquer sítio perdi?

Também eu ou alguém brincou há muito tempo
em outro jardim, brincando.
Sem que palavras lá estando?
Fora de que memória não me lembrando?


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Teoria das cordas

Não era isso que eu queria dizer, 
queria dizer que na alma 
(tu é que falaste da alma),
no fundo da alma e no fundo
da ideia de alma, há talvez
alguma vibrante música física
que só a Matemática ouve, 
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio,
a memória, a minha voz acordada, 
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente, 
um vazio no vazio, vagamente ciente 
de si, não haver resposta
nem segredo.


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O nome do cão

O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,

mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.

Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava


ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.

Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.

Então sonhava
o sonho sólido que existia.
E não compreendia.

Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.

Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.

E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.

E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: " É a vida..."


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O segundo gato 

Em cada gato há outro gato 
um pouco menos exacto 
e um pouco menos opaco. 

Um gato incoincidente 
com o gato, iridescente, 
caminhando à sua frente 

ou a seu lado, 
espírito alado 
do que é terrestre no gato. 

É o segundo gato 
que permanece acordado 
com o gato afundado 

em sono abstracto, 
aos seus pés enrolado, 
espécie de gato do gato. 

Ou que, mais tardo, 
deambula pela sala 
enquanto o gato se lava, 

às vezes assomando 
nos olhos do gato 
como um passado imóvel e 

enclausurado. 
O próprio gato 
não sabe 

que anda por ali 
algo que não cabe 
dentro nem fora de si. 


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Cálculo e elegia

Quantos dos que conheci
(se é que sempre os conheci)
homens, mulheres
(se é que ainda vigora esta diferença)
passaram este limiar
(se é isto limiar)
atravessaram esta ponte
(se ponte se lhe pode chamar) – 

Quantos após uma existência mais curta ou mais comprida
(se é que para eles persiste a diferença),
boa porque começou,
má porque teve um fim
(se é que não queriam tê-lo dito inversamente), 
se encontraram na outra margem
(se é que se encontraram
e a outra margem existe ) –

Certeza alguma me é dada
da sorte que os espera
(se comum destino há
ou mesmo até um destino) -

Tudo
(se com esta palavra não crio limites) 
deixaram para trás / (se é que não à frente) –

Quantos não saltaram do tempo vertiginoso 
para cada vez mais ternamente ao longe se sumirem
(se é que adianta crer na perspectiva) – 

Quantos
(se é que a pergunta tem sentido, 
se é que é possível alcançar a soma derradeira
antes que o que conta a si também se conte ) 
caíram nesse sonho mais fundo
(se é que não há outro mais fundo ainda) –

Adeus.
Até amanhã. 
Até à próxima. 
Já não o querem
(se é que não) repetir. 
Adstritos a um interminável
(se é que não outro) silêncio. 
Ocupados só com aquilo
(se é que só) 
a que os obriga a ausência.


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Schweizer Hof Hotel

Já aqui estive, já fiz esta viagem, 
e estive neste bar neste momento
e escrevi isto diante deste espelho
e da minha imagem diante da minha imagem.

Não mudou nada, nem eu próprio; a mão
escreve os mesmos versos no papel obscuro.
Que aconteceu então fora de tudo?
De que esquecimento se lembra o coração? 

Algum passado, alguma ausência, 
se passam talvez a meu lado, 
talvez tudo exista exilado
de alguma verdadeira existência. 

E eu, os versos, o bar, o espelho, 
sejamos só imagens noutro espelho
diante de algum Deus em cujo lasso 
olhar se fundem outro e mesmo, tempo e espaço.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A classe operária não vai ao paraíso

25 de dezembro de 2016 - 19h42 

A classe operária não vai ao paraíso


 

Tudo miúdo, até a vida.

(Do conto “O pano vermelho”)

Ao que me consta, foi Amando Fontes com Os Corumbas, romance de 1933 sobre o calvário e a desagregação de uma família sergipana na cidade grande pré-industrializada, que introduziu a fábrica (e, por extensão, o proletariado) na literatura brasileira. Quase meio século depois, o mineiro Roniwalter Jatobá amplia o tema apenas sugerido por Amando Fontes e faz da exploração do operário - o migrante nordestino que fugiu da seca e da miséria para viver na periferia de São Paulo - o leitmotiv de sua obra, sobretudo deste No chão da fábrica - contos e novelas (Editora Nova Alexandria, SP, 2016), que acaba de sair do pátio da indústria de personagens miúdos, derrotados e desencantados em que se transformou a ficção desse autor que deixou o interior da Bahia, onde foi chofer de caminhão, para ser também operário na maior metrópole do Brasil.


No chão da fábrica - contos e novelas é a reunião de três livros anteriores de Jatobá: Sabor de química, de 1976; Crônicas da vida operária (1978) e a novela, visceral e dolorosa, Tiziu (1994). Em comum com as três a utilização do peão de fábrica como personagem coletivo de uma tragédia brasileira: a impiedosa exploração do trabalhador iludido com as promessas jamais cumpridas do “milagre brasileiro”, a maior peça de marketing político da ditadura militar instalada no país em 1964. De milagre mesmo para os deserdados da sorte, os humilhados e ofendidos de Roniwalter Jatobá, só a capacidade de sobrevivência em meio às condições mais adversas e o apego à esperança quando todas as portas para uma vida melhor parecem trancadas por dentro, para que os pobres não possam entrar na Terra Prometida da justiça social.

Tanto em Amando Fontes quanto em Roniwalter Jatobá, a fábrica tem um quê de ente naturalista, como sua sirene apitando, engolindo e vomitando homens. Em Os Corumbas: 

Manhã.

Homens entroncados, sujos de pó, chegam junto às caldeiras da Têxtil, empurrando vagonetes de lenha. Lavados de suor, os foguistas não descansavam, jogando grandes toros em meio ás labaredas. Todas as máquinas da Fábrica se moviam, num barulho ensurdecedor.

E ainda:

A grande chaminé da Têxtil vomitava no espaço rolos fumo negro.

Um silvo curto e agudo anunciou a hora do almoço. E logo - como um bando de reses famintas que tivessem rebentado as cercas do curral - de todos os cantos surgiram centenas de operários a correr. Meninos, homens, mulheres. Uns, ganhavam o largo portão da frente; outros se lançavam para o vasto pátio da Fábrica, na ânsia de obter um bom lugar sob as árvores. Os mais retardados contentavam-se com o se abrigar em qualquer parte onde o sol não batesse bem a prumo.

Agora, Roniwalter Jatobá, a fábrica parecendo um campo de concentração (“A fábrica”):

A construção da fábrica tomava tudo, cerca de arame com quatro fios, farpados. Só se ouvia de longe o barulho de concreto sendo despejado no chão, serras elétricas, serrotes comuns serrando madeira; enxadas e pás tinindo de manhã à noite. Fizesse sol ou chuva. Aquilo nunca parava. Crescia, sim.

A fábrica sugando as últimas forças do homem e, depois, o descartando como o bagaço da laranja (em “Odília”):

Lembro do meu homem que a fábrica de química em tão pouco tempo, em cinco anos, por muito, definhou como um trapo ou pano de prato de fustão ruim que se gasta no trabalho diário e caseiro.

A fábrica envenenando, a prestações, os trabalhadores (em “Nos olhos, gases e batatas”):

Segunda de noite, a fábrica: seção F5, Nitroquímica, o gás rondando os olhos, entrando nas vistas marejadas, cegueira. A voz do feitor apressando, o sinal de saída demorando a tocar lá fora, os minutos se segurando, a dor nas vistas.

E ainda (em “Tiziu”):

O gás de química voava no espaço do galpão queimando em todos os cantos e penetrando até debaixo do pano grosso do macacão azul de brim.

Na novela “Tiziu”, mais um crime: o barracão da fábrica era feito de telhas de amianto.

Vemos ainda o operário afastado do trabalho, irremediavelmente doente e desprezado pelas pessoas sãs, do conto “Sabor de química”, que desabafa ante o desprezo dos demais:

Cuspo meu câncer nos pés deles.

Crônica da vida infeliz

Num clima em que a questão social parece ainda um caso de polícia como na República Velha (1889-1930), a carteira de trabalho, assinada, era o único salvo-conduto do trabalhador. A carteira de identidade de nada valia. O importante era estar trabalhando para provar que não era vagabundo (em “Trabalhadores”):

[...] Empregado. Carteira profissional só esperando a promessa que depois de todos os exames ficaria assinada, fichada, o carimbo da firma estampado dentro dela, aí, já podendo andar de cabeça erguida dentro dos bares, sem precisão de correr ao menor movimento de carro de polícia, assombrado.

O medo do desemprego assombrava a todos na fábrica. Todos temiam o facão, gíria para a dispensa na próxima leva de demissões (em “Trabalhadores”):

Fiquei dois anos e meio, novecentos dias esperando, toda manhã, em ser posto pra fora, vendo o medo passeando em todos, assim esperando, assim trabalhando. O coração palpitando forte na chegada da manhã; na hora de marcar o ponto, o dia inteiro assustado nos chamamentos para qualquer coisa que partisse de chefe, feitor, o pensamento voltado pra casa, ali no serviço corrido, na família, lá longe em outros bairros.

A pobreza, a exploração, o trabalho sem direito a domingo e feriado, os baixos salários, a constante ameaça de demissão, a família crescendo, os filhos nascendo e precisando das coisas, tudo isso dá no trabalhador uma tristeza de chorar, como na música “Gente humilde”, de Garoto, Vinícius de Moraes e Chico Buarque, a mesma gente humilde que também na ficção de Roniwalter Jatobá mora nos subúrbios (em “Domingo tem cinema):

[...] a gente perde o gosto pelas coisas, vai definhando, se acomoda num canto, só não chora porque é feio. Mas que dá vontade, isso dá.

A mutilação de membros aleija e inutiliza os trabalhadores mais distraídos (em “A mão esquerda”):

E foi passando na cabeça o meu choro, o sangue melando a máquina, o azul dela, fui sentindo vergonha, não me veio um tico de nada de ódio da prensa, da prensa que me deixou com tocos nos dedos, um homem aleijado, inutilizado como dizem por aí, não, não senti raiva cega da máquina, só da minha fraqueza, do meu medo, do meu descuido, do choro, essa mão, agora, pois vê, pesada e quieta como se não parecesse minha.

Na grande cidade e no pátio da fábrica, todos são joões, joões ninguém (em “Trabalhadores”):

Éramos três joões que se perderam por aí, nesse São Paulo sem datas, os dias parecidos, todos iguais, cada um de nós carregando sua sina traçada desde o nascimento ou muito antes, nos rostos suas esperanças estampadas e trazendo de outras erras seus sonhos, cada um indo e vindo na marcação de seu destino.

Porém, apesar de toda a vida de sacrifícios, de todo cansaço e de todo sofrimento, a esperança resiste, como um pássaro que pousa sobre uma prensa desativada, ou o homem do conto “O trem, a estação... todos os dias”, do livro Crônicas da vida operária, que observa a cidade e os companheiros taciturnos dentro o trem lotado que traz os operários de volta para casa, após a jornada de trabalho exaustiva:

[...] aí não dá pra perder a fé e não me vejo mais só no mundo.

Para o crítico literário Fábio Lucas, autor de O caráter social da ficção no Brasil, alguns contos de Roniwalter Jatobá “se apresentam como uma crônica da vida infeliz”. E assim é. O escritor mineiro empunha sua pena para tomar o partido dos pequenos, dos mais fracos, dos explorados e o faz com ardor militante, sem contudo cair nas armadilha sectária e maniqueísta do chamado “realismo socialista”. Por isso mesmo, como observou outro crítico, Celso Frederico, professor da USP, sua obra “possui um inestimável valor documental”.

Roniwalter Jatobá resgatou a agruras do operário brasileiro, mas não esgotou o tema, pois, como diz Tiziu (apelido de um trabalhador que volta mutilado para a sua terra natal, na Bahia, sem nada no bolso e com as mãos vazias, após 25 anos de dura labuta em São Paulo), “dois olhos não conseguem presenciar tudo o que se passa no mundo”.

Na ficção, dura e crua de Roniwalter Jatobá, a classe operária não vai ao paraíso, desce ao inferno da exploração do trabalho e rola no limbo da lenta e progressiva derrocada de seus sonhos.

Como disse Rubem Braga, numa crônica, “a vida é triste, Sizenando.”




 
*Eliezer Cesar é jornalista, escritor e mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia

http://www.vermelho.org.br/noticia/291469-1

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

José Régio - Poesia de Natal


* José Régio

NATAL

Mais uma vez, cá vimos 
Festejar o teu novo nascimento, 
Nós, que, parece, nos desiludimos 
Do teu advento! 

Cada vez o teu Reino é menos deste mundo! 
Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos, 
Festejar-te, — do fundo 
Da miséria que somos. 

Os que à chegada 
Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos, 
Somos — não uma vez, mas cada — 
Teus assassinos. 

À tua mesa nos sentamos: 
Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome; 
Mas por trinta moedas te entregamos; 
E por temor, negamos o teu nome. 

Sob escárnios e ultrajes, 
Ao vulgo te exibimos, que te aclame; 
Te rojamos nas lajes; 
Te cravejamos numa cruz infane. 

Depois, a mesma cruz, a erguemos, 
Como um farol de salvação, 
Sobre as cidades em que ferve extremos 
A nossa corrupção. 

Os que em leilão a arrematamos 
Como sagrada peça única, 
Somos os que jogamos, 
Para comércio, a tua túnica. 

Tais somos, os que, por costume, 
Vimos, mais uma vez, 
Aquecer-nos ao lume 
Que do teu frio e solidão nos dês. 

Como é que ainda tens a infinita paciência 
De voltar, — e te esqueces 
De que a nossa indigência 
Recusa Tudo que lhe ofereces? 

Mas, se um ano tu deixas de nascer, 
Se de vez se nos cala a tua voz, 
Se enfim por nós desistes de morrer, 
Jesus recém-nascido!, o que será de nós?! 


'LITANIA DO NATAL

A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sono, e disse: «Meu Jesus…»
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: «Meu Jesus…»
Que então me recordei do santo dia.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: «Meu Jesus…»
E a tarde descaiu, lenta e sombria.

E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»

De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: «Meu Jesus…»

E assim, mais uma vez, Jesus nascia.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

David Mourão-Ferreira - Ladainha dos póstumos Natais

* David Mourão-Ferreira


Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira
in Obra Poética II

Aluisio Azevedo - O Cortiço

9 de dezembro de 2016 - 17h47 

O Cortiço


Reprodução


"Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas"

Livro que traz uma notável descrição das relações sociais nas quais, no Rio de Janeiro do final do século 19, o escravismo definhava num mundo ainda não plenamente capitalista mas onde a miséria humana causada pelo poder do dinheiro estava presente em cada gesto. 


Prosa Poesia e Arte reproduz aqui o primeiro capítulo de O Cortiço, no qual a complexidade (e a atualidade) da mesquinharia do dinheiro é descrita com cortes forte e firmes. 

Leia o capútulo na íntegra: 



O Cortiço



Por Aluísio de Azevedo 



Cap. I 



João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro. 



Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa cheio de palha. A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia, uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português que tinha uma carroça de mão e fazia fretes na cidade. 



Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afreguesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de fígado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso, tinha de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu homem, depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta. 



João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça, fez-se até participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desventuras. Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades. “Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre mulher ter de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!” E segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos. 



Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conselheiro da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo que ela produzia e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de “Seu João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”. 



E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da mulher, que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cegamente, todo e qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com ela qualquer negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo direito a João Romão. 



Quando deram fé estavam amigados. 



Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua. 



João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos de terreno ao lado esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas, dividida ao meio paralelamente à rua, sendo a parte da frente destinada à quitanda e a do fundo para um dormitório que se arranjou com os cacarecos de Bertoleza. Havia, além da cama, uma cômoda de jacarandá muito velha com maçanetas de metal amarelo já mareadas, um oratório cheio de santos e forrado de papel de cor, um baú grande de couro cru tacheado, dois banquinhos de pau feitos de uma só peça e um formidável cabide de pregar na parede, com a sua competente coberta de retalhos de chita. 



O vendeiro nunca tivera tanta mobília. 



- Agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você vai ficar forra; eu entro com o que falta. 



Nesse dia ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma folha de papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira. 



- Você agora não tem mais senhor! declarou em seguida à leitura, que ela ouviu entre lágrimas agradecidas. Agora está livre. Doravante o que você fizer é só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar os vinte mil-réis à peste do cego! 



- Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele, como meu senhor, exigia o jornal, exigia o que era seu! 



- Seu ou não seu, acabou-se! E vida nova! 



Contra todo o costume, abriu-se nesse dia uma garrafa de vinho do Porto, e os dois beberam-na em honra ao grande acontecimento. Entretanto, a tal carta de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar à burla maior formalidade, representava despesa porque o esperto aproveitara uma estampilha já servida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; o que lhe constou, sim, foi que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da morte do amigo. 



- O cego que venha buscá-la aqui, se for capaz... desafiou o vendeiro de si para si. Ele que caia nessa e verá se tem ou não pra pêras! 



Não obstante, só ficou tranqüilo de todo daí a três meses, quando lhe constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a qualquer dos filhos do morto; mas, por estes, nada havia que recear: dois pândegos de marca maior que, empolgada a legitima, cuidariam de tudo, menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de muitos anos àquela parte. “Ora! bastava já, e não era pouco, o que lhe tinham sugado durante tanto tempo!” 



Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda. Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo andava ocupado lá por fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo de outros serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, e, defronte de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à praia do Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade, não era tanta e nunca passava em todo o mês de alguns pares de calças de zuarte e outras tantas camisas de riscado. 



João Romão não saia nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos; tudo que rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa econômica e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da aquisição da crioula, indo em hasta pública algumas braças de terra situadas ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de construir três casinhas de porta e janela. 



Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa construção! Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraiam o material das casas em obra que havia por ali perto. 



Estes furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do melhor sucesso, graças à circunstância de que nesse tempo a polícia não se mostrava muito por aquelas alturas. João Romão observava durante o dia quais as obras em que ficava material para o dia seguinte, e à noite lá estava ele rente, mais a Bertoleza, a removerem tábuas, tijolos, telhas, sacos de cal, para o meio da rua, com tamanha habilidade que se não ouvia vislumbre de rumor. Depois, um tomava uma carga e partia para casa, enquanto o outro ficava de alcatéia ao lado do resto, pronto a dar sinal, em caso de perigo; e, quando o que tinha ido voltava, seguia então o companheiro, carregado por sua vez. 



Nada lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de pau, o banco ou a ferramenta dos marceneiros. 



E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas, foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão. 



Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de moradores. 



Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não perdendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez mais as próprias despesas, empilhando privações sobre privações, trabalhando e mais a amiga como uma junta de bois, João Romão veio afinal a comprar uma boa parte da bela pedreira, que ele, todos os dias, ao cair da tarde, assentado um instante à porta da venda, contemplava de longe com um resignado olhar de cobiça. 



Pôs lá seis homens a quebrarem pedra e outros seis a fazerem lajedos e paralelepípedos, e então principiou a ganhar em grosso, tão em grosso que, dentro de ano e meio, arrematava já todo o espaço compreendido entre as suas casinhas e a pedreira, isto é, umas oitenta braças de fundo sobre vinte de frente em plano enxuto e magnífico para construir. 



Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava à direita da venda, separado desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros, despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril. Comprou-o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do Hospício com uma loja de fazendas por atacado. Corrida uma limpeza geral no casarão, mudar-se-ia ele para lá com a família, pois que a mulher, Dona Estela, senhora pretensiosa e com fumaças de nobreza, já não podia suportar a residência no centro da cidade, como também sua menina, a Zulmirinha, crescia muito pálida e precisava de largueza para enrijar e tomar corpo. 



Isto foi o que disse o Miranda aos colegas, porém a verdadeira causa da mudança estava na necessidade, que ele reconhecia urgente, de afastar Dona Estela do alcance dos seus caixeiros. Dona Estela era uma mulherzinha levada da breca: achava-se casada havia treze anos e durante esse tempo dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério; ficou furioso e o seu primeiro impulso foi de mandá-la para o diabo junto com o cúmplice; mas a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela trouxera, uns oitenta contos em prédios e ações da divida publica, de que se utilizava o desgraçado tanto quanto lhe permitia o regime dotal. Além de que, um rompimento brusco seria obra para escândalo, e, segundo a sua opinião, qualquer escândalo doméstico ficava muito mal a um negociante de certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com a idéia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para recomeçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito à hombridade de português rico que já não tem pátria na Europa. 



Acovardado defronte destes raciocínios, contentou-se com uma simples separação de leitos, e os dois passaram a dormir em quartos separados. Não comiam juntos, e mal trocavam entre si uma ou outra palavra constrangida, quando qualquer inesperado acaso os reunia a contragosto. 



Odiavam-se. Cada qual sentia pelo outro um profundo desprezo, que pouco a pouco se foi transformando em repugnância completa. O nascimento de Zulmira veio agravar ainda mais a situação; a pobre criança, em vez de servir de elo aos dois infelizes, foi antes um novo isolador que se estabeleceu entre eles. Estela amava-a menos do que lhe pedia o instinto materno por supô-la filha do marido, e este a detestava porque tinha convicção de não ser seu pai. 



Uma bela noite, porém, o Miranda, que era homem de sangue esperto e orçava então pelos seus trinta e cinco anos, sentiu-se em insuportável estado de lubricidade. Era tarde já e não havia em casa alguma criada que lhe pudesse valer. Lembrou-se da mulher, mas repeliu logo esta idéia com escrupulosa repugnância. Continuava a odiá-la. Entretanto este mesmo fato de obrigação em que ele se colocou de não servir-se dela, a responsabilidade de desprezá-la, como que ainda mais lhe assanhava o desejo da carne, fazendo da esposa infiel um fruto proibido. Afinal, coisa singular, posto que moralmente nada diminuísse a sua repugnância pela perjura, foi ter ao quarto dela. 



A mulher dormia a sono solto. Miranda entrou pé ante pé e aproximou-se da cama. “Devia voltar!... pensou. Não lhe ficava bem aquilo!...” Mas o sangue latejava-lhe, reclamando-a. Ainda hesitou um instante, imóvel, a contemplá-la no seu desejo. 



Estela, como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o quadril da esquerda, repuxando com as coxas o lençol para a frente e patenteando uma nesga de nudez estofada e branca. O Miranda não pôde resistir, atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta, desviou-se, tornando logo e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que continuava a dormir, sem a menor consciência de tudo aquilo. 



Ah! ela contava como certo que o esposo, desde que não teve coragem de separar-se de casa, havia, mais cedo ou mais tarde, de procurá-la de novo. Conhecia-lhe o temperamento, forte para desejar e fraco para resistir ao desejo. 



Consumado o delito, o honrado negociante sentiu-se tolhido de vergonha e arrependimento. Não teve animo de dar palavra, e retirou-se tristonho e murcho para o seu quarto de desquitado. 



Oh! como lhe doía agora o que acabava de praticar na cegueira da sua sensualidade. 



- Que cabeçada!... dizia ele agitado. Que formidável cabeçada!... 



No dia seguinte, os dois viram-se e evitaram-se em silêncio, como se nada de extraordinário houvera entre eles acontecido na véspera. Dir-se-ia até que, depois daquela ocorrência, o Miranda sentia crescer o seu ódio contra a esposa. E, à noite desse mesmo dia, quando se achou sozinho na sua cama estreita, jurou mil vezes aos seus brios nunca mais, nunca mais, praticar semelhante loucura. 



Mas, daí a um mês, o pobre homem, acometido de um novo acesso de luxúria, voltou ao quarto da mulher. 



Estela recebeu-o desta vez como da primeira, fingindo que não acordava; na ocasião, porém, em que ele se apoderava dela febrilmente, a leviana, sem se poder conter, soltou-lhe em cheio contra o rosto uma gargalhada que a custo sopeava. O pobre-diabo desnorteou, deveras escandalizado, soerguendo-se, brusco, num estremunhamento de sonâmbulo acordado com violência. 



A mulher percebeu a situação e não lhe deu tempo para fugir; passou-lhe rápido as pernas por cima e, grudando-se-lhe ao corpo, cegou-o com uma metralhada de beijos. 



Não se falaram. 



Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer. Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos braços de uma amante apaixonada: descobriu nela o capitoso encanto com que nos embebedam as cortesãs amestradas na ciência do gozo venéreo. Descobriu-lhe no cheiro da pele e no cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro hálito, outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com delírio, com verdadeira satisfação de animal no cio. 



E ela também, ela também gozou, estimulada por aquela circunstância picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade daquele ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda, rangendo os dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o também agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o nos seus braços nus, metendo-lhe pela boca a língua úmida e em brasa. Depois, um arranco de corpo inteiro, com um soluço gutural e estrangulado, arquejante e convulsa, estatelou-se num abandono de pernas e braços abertos, a cabeça para o lado, os olhos moribundos e chorosos, toda ela agonizante, como se a tivessem crucificado na cama. 



A partir dessa noite, da qual só pela manhã o Miranda se retirou do quarto da mulher, estabeleceu-se entre eles o hábito de uma felicidade sexual, tão completa como ainda não a tinham desfrutado, posto que no intimo de cada um persistisse contra o outro a mesma repugnância moral em nada enfraquecida. 



Durante dez anos viveram muito bem casados; agora, porém, tanto tempo depois da primeira infidelidade conjugal, e agora que o negociante já não era acometido tão freqüentemente por aquelas crises que o arrojavam fora de horas ao dormitório de Dona Estela; agora, eis que a leviana parecia disposta a reincidir na culpa, dando corda aos caixeiros do marido, na ocasião em que estes subiam para almoçar ou jantar. 



Foi por isso que o Miranda comprou o prédio vizinho a João Romão. 



A casa era boa; seu único defeito estava na escassez do quintal; mas para isso havia remédio: com muito pouco compravam-se umas dez braças daquele terreno do fundo que ia até à pedreira, e mais uns dez ou quinze palmos do lado em que ficava a venda. 



Miranda foi logo entender-se com o Romão e propôs-lhe negócio. O taverneiro recusou formalmente. 



Miranda insistiu. 



- O senhor perde seu tempo e seu latim! retrucou o amigo de Bertoleza. Nem só não cedo uma polegada do meu terreno, como ainda lhe compro, se mo quiser vender, aquele pedaço que lhe fica ao fundo da casa! 



-- O quintal? 



- É exato. 



- Pois você quer que eu fique sem chácara, sem jardim, sem nada? 



- Para mim era de vantagem... 



- Ora, deixe-se disso, homem, e diga lá quanto quer pelo que lhe propus. 



- Já disse o que tinha a dizer. 



- Ceda-me então ao menos as dez braças do fundo. 



- Nem meio palmo! 



- Isso é maldade de sua parte, sabe? Eu, se faço tamanho empenho, é pela minha pequena, que precisa, coitada, de um pouco de espaço para alargar-se. 



- E eu não cedo, porque preciso do meu terreno! 



- Ora qual! Que diabo pode lá você fazer ali? Uma porcaria de um pedaço de terreno quase grudado ao morro e aos fundos de minha casa! quando você, aliás, dispõe de tanto espaço ainda! 



- Hei de lhe mostrar se tenho ou não o que fazer ali! 



- É que você é teimoso! Olhe, se me cedesse as dez braças do fundo, a sua parte ficaria cortada em linha reta até à pedreira, e escusava eu de ficar com uma aba de terreno alheio a meter-se pelo meu. Quer saber? não amuro o quintal sem você decidir-se! 



- Então ficará com o quintal para sempre sem muro, porque o que tinha a dizer já disse! 



- Mas, homem de Deus, que diabo! pense um pouco! Você ali não pode construir nada! Ou pensará que lhe deixarei abrir janelas sobre o meu quintal!... 



- Não preciso abrir janelas sobre o quintal de ninguém! 



- Nem tampouco lhe deixarei levantar parede, tapando-me as janelas da esquerda! 



- Não preciso levantar parede desse lado... 



- Então que diabo vai você fazer de todo este terreno?... 



- Ah! isso agora é cá comigo!... O que for soará! 



- Pois creia que se arrepende de não me ceder o terreno!... 



- Se me arrepender, paciência! Só lhe digo é que muito mal se sairá quem quiser meter-se cá com a minha vida! 



- Passe bem! 



- Adeus! 



Travou-se então uma lata renhida e surda entre o português negociante de fazendas por atacado e o português negociante de secos e molhados. Aquele não se resolvia a fazer o muro do quintal, sem ter alcançado o pedaço de terreno que o separava do morro; e o outro, por seu lado, não perdia a esperança de apanhar-lhe ainda, pelo menos, duas ou três braças aos fundos da casa; parte esta que, conforme os seus cálculos, valeria ouro, uma vez realizado o grande projeto que ultimamente o trazia preocupado - a criação de uma estalagem em ponto enorme, uma estalagem monstro, sem exemplo, destinada a matar toda aquela miuçalha de cortiços que alastravam por Botafogo. 



Era este o seu ideal. Havia muito que João Romão vivia exclusivamente para essa idéia; sonhava com ela todas as noites; comparecia a todos os leilões de materiais de construção; arrematava madeiramentos já servidos; comprava telha em segunda mão; fazia pechinchas de cal e tijolos; o que era tudo depositado no seu extenso chão vazio, cujo aspecto tomava em breve o caráter estranho de uma enorme barricada, tal era a variedade dos objetos que ali se apinhavam acumulados: tábuas e sarrafos, troncos de árvore, mastros de navio, caibros, restos de carroças, chaminés de barro e de ferro, fogões desmantelados, pilhas e pilhas de tijolos de todos os feitios, barricas de cimento, montes de areia e terra vermelha, aglomerações de telhas velhas, escadas partidas, depósitos de cal, o diabo enfim; ao que ele, que sabia perfeitamente como essas coisas se furtavam, resguardava, soltando à noite um formidável cão de fila. 



Este cão era pretexto de eternas resingas com a gente do Miranda, a cujo quintal ninguém de casa podia descer, depois das dez horas da noite, sem correr o risco de ser assaltado pela fera. 



- É fazer o muro! dizia o João Romão, sacudindo os ombros. 



- Não faço! replicava o outro. Se ele é questão de capricho eu também tenho capricho! 



Em compensação, não caia no quintal do Miranda galinha ou frango, fugidos do cercado do vendeiro, que não levasse imediato sumiço. João Romão protestava contra o roubo em termos violentos, jurando vinganças terríveis, falando em dar tiros. 



- Pois é fazer um muro no galinheiro! repontava o marido de Estela. 



Daí a alguns meses, João Romão, depois de tentar um derradeiro esforço para conseguir algumas braças do quintal do vizinho, resolveu principiar as obras da estalagem. 



- Deixa estar, conversava ele na cama com a Bertoleza; deixa estar que ainda lhe hei de entrar pelos fundos da casa, se é que não lhe entre pela frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe, não duas braças, mas seis, oito, todo o quintal e até o próprio sobrado talvez! 



E dizia isto com uma convicção de quem tudo pode e tudo espera da sua perseverança, do seu esforço inquebrantável e da fecundidade prodigiosa do seu dinheiro, dinheiro que só lhe saia das unhas para voltar multiplicado. 



Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que no entanto gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda, da venda às hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo de que ele não podia apoderar-se logo com as unhas. 



Entretanto, a rua lá fora povoava-se de um modo admirável. Construía-se mal, porém muito; surgiam chalés e casinhas da noite para o dia; subiam os aluguéis; as propriedades dobravam de valor. Montara-se uma fábrica de massas italianas e outra de velas, e os trabalhadores passavam de manhã e às Ave-Marias, e a maior parte deles ia comer à casa de pasto que João Romão arranjara aos fundos da sua varanda. Abriram-se novas tavernas; nenhuma, porém, conseguia ser tão afreguesada como a dele. Nunca o seu negocio fora tão bem, nunca o finório vendera tanto; vendia mais agora, muito mais, que nos anos anteriores. Teve até de admitir caixeiros. As mercadorias não lhe paravam nas prateleiras; o balcão estava cada vez mais lustroso, mais gasto. E o dinheiro a pingar, vintém por vintém, dentro da gaveta, e a escorrer da gaveta para a barra, aos cinqüenta e aos cem mil-réis, e da burra para o banco, aos contos e aos contos. 



Afinal, já lhe não bastava sortir o seu estabelecimento nos armazéns fornecedores; começou a receber alguns gêneros diretamente da Europa: o vinho, por exemplo, que ele dantes comprava aos quintos nas casas de atacado, vinha-lhe agora de Portugal às pipas, e de cada uma fazia três com água e cachaça; e despachava faturas de barris de manteiga, de caixas de conserva, caixões de fósforos, azeite, queijos, louça e muitas outras mercadorias. 



Criou armazéns para depósito, aboliu a quitanda e transferiu o dormitório, aproveitando o espaço para ampliar a venda, que dobrou de tamanho e ganhou mais duas portas. 



Já não era uma simples taverna, era um bazar em que se encontrava de tudo, objetos de armarinho, ferragens, porcelanas, utensílios de escritório, roupa de riscado para os trabalhadores, fazenda para roupa de mulher, chapéus de palha próprios para o serviço ao sol, perfumarias baratas, pentes de chifre, lenços com versos de amor, e anéis e brincos de metal ordinário. 



E toda a gentalha daquelas redondezas ia cair lá, ou então ali ao lado, na casa de pasto, onde os operários das fábricas e os trabalhadores da pedreira se reuniam depois do serviço, e ficavam bebendo e conversando até as dez horas da noite, entre o espesso fumo dos cachimbos, do peixe frito em azeite e dos lampiões de querosene. 



Era João Romão quem lhes fornecia tudo, tudo, até dinheiro adiantado, quando algum precisava. Por ali não se encontrava jornaleiro, cujo ordenado não fosse inteirinho parar às mãos do velhaco. E sobre este cobre, quase sempre emprestado aos tostões, cobrava juros de oito por cento ao mês, um pouco mais do que levava aos que garantiam a divida com penhores de ouro ou prata. 



Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam, enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá, porque ficavam a dois passos da obrigação. 



O Miranda rebentava de raiva. 



- Um cortiço! exclamava ele, possesso. Um cortiço! Maldito seja aquele vendeiro de todos os diabos! Fazer-me um cortiço debaixo das janelas!... Estragou-me a casa, o malvado! 



E vomitava pragas, jurando que havia de vingar-se, e protestando aos berros contra o pó que lhe invadia em ondas as salas, e contra o infernal baralho dos pedreiros e carpinteiros que levavam a martelar de sol a sol. 



O que aliás não impediu que as casinhas continuassem a surgir, uma após outra, e fossem logo se enchendo, a estenderem-se unidas por ali a fora, desde a venda até quase ao morro, e depois dobrassem para o lado do Miranda e avançassem sobre o quintal deste, que parecia ameaçado por aquela serpente de pedra e cal. 



O Miranda mandou logo levantar o muro. 



Nada! aquele demônio era capaz de invadir-lhe a casa até a sala de visitas! 



E os quartos do cortiço pararam enfim de encontro ao muro do negociante, formando com a continuação da casa deste um grande quadrilongo, espécie de pátio de quartel, onde podia formar um batalhão. 



Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem. 



Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que separavam a venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez palmos de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas, por cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta encarnada e sem ortografia: 



“Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras”. 



As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adiantado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar. 



Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los. 



E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco. 



E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. 



Do Portal Vermelho
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