OPINIÃO
Não escreveu, não disse, mas teimam em
atribuir-lhe a autoria.
Porquê?
Circulam na Internet milhares de textos apócrifos atribuídos a autores
célebres. Um triunfo da mediocridade, num crime imune a castigos.
7 de
Fevereiro de 2019, 7:30
É um jogo pérfido e nem
sequer é novo. Mas a Internet, que também já não é nova, deu-lhe o adubo ideal
e o cenário perfeito. Já leram este lindo texto de fulano? E este poema de
sicrano? E esta citação, tão bela, de beltrano? Leram? Pois não são deles. Os vivos
ainda se revoltam, furiosos, quando reparam. Como Gabriel García Márquez,
quando insistentemente lhe atribuíam a autoria de uma “carta de despedida” que
muito circulou na net e provocou comentários emocionados e tristes. O escritor
estaria a morrer, coitado, e a despedir-se do mundo. Só que o texto era tão
bizarro que ele (hospitalizado nesse ano de 1999 em que surgiu tal texto, por
complicações que viriam a revelar um cancro linfático que mais tarde superou,
morrendo 15 anos depois, em 2014) afirmou que “mais valia morrer com um cancro
linfático do que ter escrito aquilo”. Soube-se depois que o texto,
intitulado La Marioneta, foi na
verdade escrito mesmo para uma marioneta pelo humorista e ventríloquo mexicano
Johnny Welch, para o espectáculo El
Mofles.
Como foi, então, parar a
pretensa autoria a García Márquez? Do mesmo modo que, às centenas ou até aos
milhares, surgem na Internet textos apócrifos atribuídos a autores célebres,
obrigando (quem se dá a tal trabalho) a um complicado processo de busca e confirmação,
para evitar o logro. Sophia de Mello Breyner, como o PÚBLICO noticiou há dias,
é uma das vítimas de tais enganos. Há um poema medíocre
chamado O mar dos meus olhos que,
usando palavras e imagens de outros escritos por ela, se tornou viral na rede
como se fosse de Sophia. Está em portais com marca de fiabilidade e já foi
traduzido para alemão. Há até um site,
Nanoterapia, que o coloca à cabeça na lista dos 15 melhores poemas de Sophia!
Um desvario sem barreiras,
tal como o seu hóspede sem fronteira ou limite (excepto nas ditaduras, mas essa
é outra conversa), a Internet. Como se resolve isto, na era do “copia e cola”?
Com sabedoria. Um leitor de García Márquez não o vê autor de La Marioneta, tal como quem leia
habitualmente Sophia passará ao lado das lamechices que povoam o tal Mar onde ela jamais mergulhou.
Porque há, nestes textos apócrifos, uma bitola comum: o uso do choradinho, da frase
enfática, do gongorismo despropositado; quem os escreve quer atingir um alvo
fácil, o gosto popular mais básico, sem lhe interessar particularmente o autor
ou autora vítima da fraude. Mas se assinassem com os seus nomes, desconhecidos,
quem os leria? É mais fácil assinar Sophia, Pessoa, Drummond, Neruda.
Sim, porque todos eles já
“escreveram” coisas que jamais imaginaram ou viram. Andam por aí, pela
Internet, com o falso “carimbo” da sua identidade. Um jornalista brasileiro,
Emílio Pacheco, dedica-se a descobrir textos apócrifos. Em 2006, escreveu: “Os
textos apócrifos da Internet é um dos temas recorrentes neste blog. No entanto,
nunca publiquei aqui a lista de ‘falsos Quintanas’ que sempre divulgo no Orkut,
tanto na comunidade ‘O verdadeiro Mário Quintana’ como em qualquer outra em que
o assunto vier à baila. Como aqui não existe a limitação de tamanho de mensagem
do Orkut, terei espaço para fazer mais comentários. Atenção: os textos que
serão citados abaixo não são de Mário Quintana! Não importa onde você os tenha
visto com a autoria atribuída ao poeta.” E vinha, a seguir, uma longa lista.
Mas há mais, para citar o exemplo do Brasil. Um outro site, no capítulo “Falsas autorias”, publica uma longa lista onde
se incluem textos “bastantes disseminados” erradamente atribuídos: de Bruna
Lombardi atribuído a Clarice Lispector, de Artur da Távola atribuído a Carlos
Drummond de Andrade, de Fernando Sabino atribuído a Fernando Pessoa, de Eduardo
Alves da Costa atribuído a Maiakovski, de Martha Medeiros atribuído a Pablo
Neruda ou de Helenita Scherma atribuído a Cecília Meireles. Há mais, muitos
mais. E idêntico fenómeno existirá noutros idiomas.
Os mortos não podem
defender-se, os vivos indignam-se (Eduardo Prado Coelho lutou, durante muito
tempo, contra um texto publicado online que
insistiam em atribuir-lhe). Em 2009, a Folha
de São Paulo publicou um texto reflectindo reacções de repúdio de
“escritores consagrados” contra textos falsos a circular na rede. Luís Fernando
Veríssimo (hoje com 82 anos) recebeu até um telefonema de uma senhora a dizer-lhe
que odiava tudo o que lia dele até ver, na net, “um texto que adorara”.
“Agradeci, modestamente. Admiradora nova a gente não rejeita, mesmo quando não
merece.” Ora o tal poema “dele” era Quase,
escrito por uma estudante de Florianópolis, e, segundo a Folha, chegou até a ser traduzido e
publicado em França numa colectânea de escritores brasileiros.
Já o humorista Millôr Fernandes (1923-2012), à
data ainda bem vivo, comentou: “É isso que pensam de mim?! Quer dizer que acham
que eu escreveria uma babaquice dessas?!” O problema é mesmo esse: acham. E até
ficam tristes quando percebem que não escreve tão mal. Assim vai triunfando a
mediocridade, à custa de um crime imune a castigos.
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