sexta-feira, 29 de março de 2019

Alexandre O'Neill,- Daqui, desta Lisboa compassiva

* Alexandre O'Neill

 Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por suíços habitada,
onde a tristeza vil e apagada
se disfarça de gente mais activa;

daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira de vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristolho que se apaga;

daqui, só paciência, amigos meus!
Peguem lá o soneto e vão com Deus...

Alexandre O'Neill,  atrás dos tempos vêm tempos, 1996

segunda-feira, 25 de março de 2019

Afonso Sanches, tença a Vasco Martins de Resende

* Afonso Sanches

- Vaasco Martins, pois vós trabalhades
e trabalhastes de trobar d'amor,
do que agora, par Nostro Senhor,
quero saber de vós, que mi o digades,
5dizede-mi-o, ca bem vos estará:
pois vos esta, por que trobastes, já
morreu, par Deus, [senhor], por quem trobades?
  
- Afonso Sanches, vós [me] preguntades
e quero-vos eu fazer sabedor:
10eu trobo e trobei pola melhor
das que Deus fez - esto ben'o creades;
esta do coraçom nom me salrá,
atenderei seu bem, se mi o fará;
e vós al de mim saber nom queirades.
  
15- Vaasco Martins, vós nom respondedes,
nem er entendo, assi veja prazer,
por que trobades - que ouvi dizer
que aquela por que trobad'havedes,
e que amastes vós mais doutra rem,
20que vos morreu há gram temp', e por en
pola morta a trobar nom devedes.
  
- Afonso Sanches, pois nom entendedes
em qual guisa vos eu fui responder,
 a mim en culpa nom devem poer,
25mais a vós, se o saber nom podedes:
eu trobo pola que m'em poder tem
e vence todas de parecer bem,
pois viva é, ca nom como dizedes.
  
- Vaasco Martins, pois morreu por quem
30sempre trobastes, maravilho-m'en,
pois vos morreu, como nom morredes.
  
- Afonso Sanches, vós sabede bem
 que viva é e comprida de sem
a por que eu trob'; e sabê-lo-ed


sexta-feira, 22 de março de 2019

António Guerreiro - O que fazer dos pobres?


*  António Guerreiro

8 de Março de 2019, 10:58

o     
A sua classe é a dos homens mais ricos de Portugal, o que suscita invejas sem classe, como a dos que lhe chamam merceeiro, apoucando assim o dono do Pingo Doce e os seus balcões, fazendo dele uma figura com mundividência de bairro e contas feitas em papel pardo, por muitos zeros que tenham as somas finais. Na semana passada, Alexandre Soares dos Santos mostrou não só que tem uma aguda consciência das classes, da sua e da dos que ele tutela, mas também que faz dessa consciência uma força revolucionária: “Os pobres fizeram-se para a gente os transformar em classe média”, disse ele, ao Observador, numa “entrevista de vida”, um género que no jargão jornalístico designa a recitação, pelo entrevistado, do seu curriculum vitae, perante um jornalista extasiado com tanta vida do interlocutor .
Livro de recitações
“Há mais políticos com contratos permanentes nos media do que lugares na maior bancada parlamentar da Assembleia da República”

Rosa Pedroso Lima, in Expresso, 2/3/2019
Estes números confirmam a existência de uma nova classe que, na linguagem dos seus detractores, é a classe político-mediática. Evidentemente, ela também supõe a reversibilidade: a classe mediático-política. Quando já não houver mais nada para além da lei deste hífen, teremos atingido um estado homogéneo que se configura como uma nova versão do fim da História, isto é, do fim da política e do fim do jornalismo. O processo não se deu por invasão, mas por hospitalidade, o que o tornou mais sereno e eficaz. A pouco e pouco, os media transformaram-se em rampas de lançamento para políticos voadores, ou em estâncias de retiro para engordar reformas e cultivar prestígios de políticos opulentos. O espaço público mediático povoado por uma tagarelice política que funciona em circuito fechado, eis o nosso destino. A esta classe hifenizada devemos fazer a pergunta: quem são os políticos e quem são os jornalistas?

O entrevistado, por modéstia, diz “a gente”, mas é apenas uma maneira de dizer “nós, os líderes”. E ao dizê-lo tinha certamente em mente a pergunta que John Locke fez em 1697, numa exposição escrita que apresentou no Ministério do Comércio: “O que fazer dos pobres?”. Como resposta, o filósofo propunha algumas soluções plausíveis. A primeira, condição indispensável para a realização de todas as outras, consistia em “pôr os pobres a trabalhar”, retirá-los do vício e da ociosidade, o que limitaria desde logo a sua inclinação para o deboche. Mais de três séculos depois, a pergunta não perdeu pertinência e continua a ser formulada nas cúpulas, onde o imperativo é operare, fazer obra, sempre fazer: o que fazer então dos pobres, hoje? A resposta, agora, pinga mais doce: transformá-los obviamente em classe média, de acordo com o movimento inexorável da História, à escala planetária. Quem o diz não tem apenas consciência das classes, e não foi em rolos de papel pardo que leu que o conceito de classe estabelece uma ligação entre sociedade e natureza e organiza um sistema coerente da vida social; quem o diz tem também iluminações da psicologia social. E sabe que a classe média é uma criação (aliás, tardia; há mesmo quem diga que ela só foi inventada para alimentar a sociedade de consumo) e resulta de um processo de transformação que se pretende irreversível: ascende-se à classe média e nunca mais se quer voltar à origem. Mesmo que se desça nos critérios materiais, o ethos da mediania de classe ficou inculcado e não se apaga. Mas ficar lá para sempre também não basta, não traz a alegria que se esperava. A classe média tem a superstição de um sucesso que depois não existe de facto. E isso só engendra medos e discordâncias em relação ao ambiente social. No fundo, mesmo que não o admita nem o racionalize desta maneira, a classe média tem complexos de pobreza intelectual. E não tem nada de fascinante pertencer à classe média. Por isso é que não há tanta generosidade como parece, nem tanto progresso como insinua, neste homem rico do Pingo Doce que transforma a matéria-prima pobre em mercadoria medianamente enriquecida. Na verdade, nenhum pobre alguma vez disse que queria chegar à classe média. Os pobres, todos os pobres de todos os tempos e latitudes, o que dizem é que querem ser ricos, sem terem de passar pelas etapas medianas, medíocres, onde ficam sujeitos a um olhar que sempre os relativiza: ora são considerados ricos porque estão além do limiar dos pobres; ora são considerados pobres porque estão abaixo dos ricos. Esta classe média que era pobre antes de se tornar média, se mora na Bobadela não quer ir morar para os Olivais. Quer é instalar-se em Nova Iorque. Mas isto não percebe, ou não quer perceber, o homem que é dos mais ricos de Portugal, a quem se deve a transformação virtuosa dos seus pobres já não em pobrezinhos, como fazia outrora a classe abastada, mas em classe média. Ele faz questão de afirmar que tem nas suas mãos os comandos do ascensor social (ou diz-se antes elevador?), deixa bem claro que essa deslocação vertical é por ele controlada e tutelada. Sem ele, sem “a gente”, dos pobres nada feito. Que assim seja, é motivo de regozijo e não justifica mais exigências. Para se sentir privilegiada, menos exigente e menos fatigada, a classe média só tem de visitar todos os dias os pobres na televisão.


12 COMENTÁRIOS
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1.   
Aqui mesmo08.03.2019 20:17
Para quem gosta de pensar as pessoas em termos de classe poderá ser um texto interessante para ler. E quem gosta de pensar as pessoas em termos de classe não são os pobres. Estes podem-no fazer por razões de luta, não evocam as classes sociais pelo prazer que isso lhes dá. Uma pessoa está muito para lá destas qualificações que são próprias de quem tem uma visão determinista da sociedade.
Portugal08.03.2019 19:25
A frase é realmente chocante (“Os pobres fizeram-se para a gente os transformar em classe média"), tão chocante quanto aquela outra: "brincamos aos pobrezinhos" na Herdade da Comporta, propriedade de uma família que só aparentemente caiu em desgraça na praça pública. Mas esta última "pérola" parece bem mais ardilosa, por estar de acordo com o zeitgeist predador e totalitário que é o nosso presente. Afinal, se eu quiser, não poderei regredir triunfalmente de classe? Não poderei sequer propor-me a tal? E logo eu que não compro há quase dez anos no PD!

2.   
08.03.2019 19:23
O merceeiro do pingo doce referia-se aos pobres portugueses que ele e outros como ele fazem com gosto e alta eficiência diária. Ainda hoje Ferraz da Costa, esse intelectual de cepa, avisava que há muitos a ganhar demais. Os fazedores de pobres gostam de ser eficazes cortando o salário, reformas, pensões, prestações sociais, não o atualizando salários, congelando progressões nas carreiras e denunciando unilateralmente a contratação coletiva. Isso é a política oficial da UE/BCE e está em curso em Portugal pela ação do "arco da governação" PS, PSD, CDS que ocupam 100% dos cargos de gestão das instituições e empresas públicas e privadas. O problema do merceeiro é ter observado que, por mais promoções que faça, não vende mais por causa dos pobres terem a característica de não terem dinheiro.

3.   
Porto08.03.2019 18:21
O texto tem tido diferentes interpretações dignas de Freud. Muito bom mesmo. Pelo texto e pelo que faz pensar (revelar) certas pessoas

4.   
08.03.2019 17:15
Depois de meia dúzia de anos sem ir a Londres, voltei lá na semana passada. Voltei lá e voltei para cá doente incomodado com tantos e tantos sem-abrigo. Muita gente nova, com menos de 30 anos.

5.   
08.03.2019 16:46
Este texto é mesmo muito bom. Até que enfim que apareceu alguém para comentar aquela frase. Soberbo. Parabéns

1.   
Steventon08.03.2019 18:06
Concordo com o Rogerio Borges. Excelente texto.

6.   
évora08.03.2019 13:38
o truque retórico favorito do opinante das sextas resume-se a descrever rigorosamente os factos e os valores da ascensão social da pobreza aos 'remediados', na sua história planetária, mas pôr nisso o tom escarninho do menino-mais-espertinho-que-os-outros-que-os-está-a-gozar-durante-o-recreio. Sinto aqui um tique retardado de adolescente. Claro que os ricos o querem ser mais, e o que os pobres querem é serem mais ricos ainda do que isso: o que julga o ás que é o euromilhões, feito de encomenda para a classe média? O ás não percebe que pertencer a uma classe é pertencer ao struggle aspiracional que mistifica, aliena e conserva em tensão superativa essa classe (sobretudo a classe média, em q o dispositivo foi afinado à perfeição). Se ele fosse pobre, calava mas era a boca e ia ao pingo doce.

1.   
évora08.03.2019 13:46
Que julga AG que é a China? Um pingo dulcíssimo a ser papado por uma classe média robusta galvanizada para essa espiral progressiva de produção-consumo (o mesmo hífen que explica o incesto dos poderes, na coluneta lateral) que atira o país para superpotência. Se tivesse um pouco mais de vida, era isso que o merceeiro teria dito: estamos aqui a tornar as nações europeias integradas em superpotência, graça ao embaratecimento da produção e distribuição em massa, que permite converter a pobreza económica em remediação social mediante o encontro de todos no consumo dessa ‘coca-cola’ igual para o presidente e para o varredor. O que lixa o esquerdismo do AG é que essa classe média é a burguesia triunfante. É essa humilhante aurea mediocritas q ele não perdoa. Porque é rico - e 'rico intelectual'.

7.   
Porto08.03.2019 12:23
Este artigo não é uma opinião, é um manifesto de alguém que vai morrer a pensar coisas como essa da classe média ter sido "inventada para alimentar a sociedade de consumo", como a de que “pôr os pobres a trabalhar” é para os impedir do "deboche". Pensava eu que viver na ociosidade à custa dos outros era algo que os comunistas abominavam, mas afinal não. Pode-se afinal não trabalhar e consumir. O que é preciso mesmo, é acabar com esses que têm a mania de ser classe média, acabar com todos os ricos substituindo-os por funcionários do partido para colocarem os pobres a trabalhar de maneira a que os funcionários vivam bem.

8.   
08.03.2019 11:52
Torná-los "classe média",para pagar os impostos

9.   

C. PIEDADE ALMADA08.03.2019 11:52
Classe média, - 700 euros por mês ao fim de +30 anos de trabalho nessa cadeia de mercearias?! Será que o sr. ensandeceu já? E, hoje o presidente do Fórum para a Competitividade, Pedro Ferraz da Costa, diz /muitas pessoas ar´ganham mais do que deviam" ...Lamentavelmente esqueceu-se de dizer que devia ser a começar por ele e seus congéneres.