sexta-feira, 1 de julho de 2022

Carlos Coutinho - Biografando

* Carlos Coutinho
  

   TIVE nos tempos de antanho um amigo chamado Mário-Henrique Leiria que conheci no “Montecarlo”, um antigo café de Lisboa, ali ao Saldanha, onde ele às vezes também aparecia, acompanhado por uma jovem meio esgalgada de quem nunca cheguei a saber o nome e que não foi capaz de pronunciar qualquer palavra ao pé de mim. Depois de dar “duas voltas ao mundo”, demorando-se no Brasil, em Macau, em Xangai, por “ligações” que ele definia como “astrológicas”, instalou-se em Carcavelos com “o Tejo inteiro à frente dos olhos”. 

   Já trazia acabado o seu livro mais famoso, “Contos do Gin-Tonic” e, antes de morrer em 1980, com 57 anos, ainda publicou “Novos Contos do Gin”. Se eu quisesse agora escrever a sua biografia em modo surrealista, bastava-me seguir com rigor absoluto os passos tergiversantes da sua vida pluricontinental. 

   Passou pela Escola Superior de Belas Artes, mesmo ao lado do Chiado, donde foi expulso em 1942 “por motivos políticos inconfessáveis”. Participou nas atividades do Grupo Surrealista de Lisboa, entre 1949 e 1951. Em 1962 foi preso, por participação na "Operação Papagaio”, uma intervenção surrealista contra o fascismo que a PIDE facilmente gorou. 

   Na Primavera de 1962, um ano após o início da Guerra Colonial, um grupo de surrealistas do qual faziam parte Virgílio Martinho, António José Forte, Manuel de Castro, Mário-Henrique Leiria e outros, concebeu um plano estapafúrdio: atacar o Rádio Clube Português, prender e amarrar o contínuo de serviço e substituir a bobina com o programa noturno “Companheiros da Alegria” por uma outra contendo o hino nacional, marchas militares e, a cada cinco minutos, notícias sobre movimentações militares para derrubar o Governo. Terminava convocando a população a deslocar-se à Baixa de Lisboa para saudar os militares vitoriosos e o advento da democracia. 

   Durante os interrogatórios na PIDE, aconteceu por diversas vezes os beleguins saírem dos “gabinetes de investigação» e virem rir às gargalhadas para o corredor. Não houve torturas nem se formou processo e foram confiscadas as armas reunidas para a execução do golpe. No seu livro “Prazo de Validade” (1998), Luiz Pacheco dá-nos a sua versão destes acontecimentos, não diferindo muito nos pormenores.

   Seguidamente, Mário-Henrique Leiria partiu para o Brasil onde desenvolveu várias atividades, como a de encenador e a de diretor literário da Editora Samambaia, regressando a Portugal em 1970, depois das tais “duas voltas ao mundo” que nunca me foi possível confirmar. Cá, colaborou com pequenos contos no suplemento “Fim-de-Semana” do jornal “República” e no semanário humorístico "Pé de Cabra". Também chefiou a redação de “O Coiso”, um semanário impresso nas oficinas do “República”, durante 13 semanas, em 1975. 

   Em 1976, “cheio de um certo fervor brasileiro”, aderiu de alma e coração ao PRP, talvez porque “já tinham passado uns bons 15 anos” sobre a entrega, em 1961, de um punhado de textos seus, alguns já publicados e outros ainda inéditos, para serem incluídos na “Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito”, organizada por outro Mário e ex-surrealista, o Cesariny de Vasconcelos. 

Os dificílimos últimos anos da sua vida, tolhido pela sua degenerescência óssea e caído na pobreza, foram decisivos na opção pelo clandestinidade da vida. Embora contrariado, viveu finalmente na casa materna, com a mãe e uma tia, ambas muito idosas, mas solícitas 

2022 07 01

Ricardo Araújo Pereira - Agasalhe-te, cidadão


*  Ricardo Araújo Pereira


cartoon de João Fazenda - rap bru

«Quando o Presidente da República disse que, nos próximos meses, “cada qual fará o esforço para não estar doente”, fui obrigado a reflectir e concluí, com vergonha, que nunca antes fiz esse esforço. Tenho vivido de forma inconsciente, sem me empenhar para não adoecer — e por isso tenho tido, como é evidente, algumas doenças. A culpa não é só minha. A ciência, estranhamente, tem dirigido a sua atenção para a cura de doenças, quando seria mais fácil e barato lembrar às pessoas que devem fazer um esforço diário para não adoecer. Se todos fizessem esse esforço, o SNS funcionaria muito melhor, ocupado apenas com os preguiçosos que não se esforçam o suficiente. Alguns levam o desleixo tão longe que até acabam por morrer, o que não deixa de ser justo. Eu tenho padecido de algumas maleitas, e até já fui submetido a operações cirúrgicas mais de uma vez, só para se ter uma ideia do meu desmazelo. Talvez não seja justo, aliás, usar o verbo padecer. Provoquei algumas maleitas, assim é que é. Quando era pequeno, não me esforcei o suficiente para evitar o sarampo, a papeira e a escarlatina. Mas a idade adulta, curiosamente, não dá a ninguém a maturidade suficiente para aperfeiçoar o esforço para evitar doenças. Tenho reparado que os idosos, uma faixa da população com idade para ter juízo, são dos que menos esforço fazem para não adoecer.

Algumas pessoas ficaram exaltadas com as declarações do Presidente, em clara desobediência a essas mesmas declarações. Marcelo pede a todos um esforço para evitar adoecer e imediatamente há gente que fica apopléctica. Mania de contrariar. Para mim, as declarações do Presidente pecam por defeito. Os cidadãos, querendo, podem contribuir para não sobrecarregar outros serviços do Estado. Além de se esforçarem para não adoecer, os portugueses podem fazer outros esforços úteis. Por exemplo, se as crianças fizerem um esforço para se instruir, precisaremos de menos escolas. E se os cidadãos fizerem um esforço para não litigar, acabam-se os atrasos na justiça. O português ideal não precisa de ir à escola, nem ao hospital, nem ao tribunal. Na verdade, o português ideal é um português defunto. Quando pomos os nossos compatriotas no Panteão, não estamos bem a homenageá-los pelo que fizeram quando 

1.7.22