quarta-feira, 30 de abril de 2008

Crónica de Uma Guerra Inventada, de Sum Marky


 

A inventona de Batepá

O romance Crónica de Uma Guerra Inventada, de Sum Marky (escritor que não me merece, pela sua obra anterior, particular apreço; autor que foi de textos menores, roçando o porno-tropicalismo que a ditadura, naturalmente, proibiu – claro, que a literatura portuguesa não ficou mais pobre pelo facto, embora esses livros tenham sido precursores da subliteratura que hoje, em versão feminina, enchem de lixo mediatizado as bancas das livrarias), é um texto só possível de produzir em liberdade, suficientemente distanciado em relação aos factos que relata tornando-o assim num livro sem ressentimentos nem constrangimentos excessivos – característica afinal, apesar dos pesares, comum a grande parte da literatura que tem a questão colonial como matriz. Este romance fala-nos, sem rebuços, dos homens e mulheres que em S. Tomé e Príncipe foram vítimas da ignomínia, do arbítrio, dos mecanismos de cerco, de tortura e morte de que foi capaz o colonialismo salazarento, para submeter e escravizar os povos autóctones.
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Partindo de dados factuais (o romance refere os dias trágicos de Fevereiro de 1953) através da transcrição de manifestos, petições, ordens militares, despachos dessa figura sinistra que foi o governador da província coronel Gorgulho, depoimentos de presos e seus familiares, Sum Marky constrói a denúncia pungente e avassaladora de um colonialismo sem regras, desumano e primevo, sublinhando com comedimento formal a extrema desigualdade existente entre brancos e pretos, entre europeus e africanos, pondo a nu a oficial e decantada ausência de preconceitos racistas nos procedimentos administrativos nas ex-colónias.
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Através da narrativa da atribulada viagem de Manuel João da Palma Carlos a S. Tomé, enquanto advogado de defesa de alguns presos políticos acusados de instigarem uma rebelião pró-comunista, inventona engendrada pelo governador Gorgulho, seus lugares tenentes e os roceiros que viam no golpe a possibilidade de se apossarem das terras ainda em posse das elites nativas santomenses e de assim perpetuarem ad eternum a mão-de-obra escrava (a CIA e o Pentágono muito teriam a aprender com os processos de terrorismo de estado que o fascismo encenava, caso não nos considerassem uma excrescência ibérica pejada de madraços pedintes com capital em Madrid), o autor consegue traçar um dolorosíssimo quadro dos anos cinquenta portugueses vividos nas condições específicas e particulares da nossa presença em África e do entendimento que os poderes coloniais traçavam dessa especificidade. S. Tomé era um covil de bandidos, escreve Palma Carlos nas suas memórias, referindo-se à administração colonial e sequazes, mas essa denúncia não impediu que os bandidos saíssem impunes de seus crimes, sendo apenas, quando a coisa extravasou fronteiras, suave e paternalmente admoestados, podendo partir em paz para a metrópole e com os alforges a abarrotar.
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O cacau, os grandes interesses do capital e dos fazendeiros, a corrupção generalizada, a impunidade dos grandes senhores e das empresas coloniais, as atrocidades da máquina opressora do regime, com a conivência activa da Igreja, as arbitrariedades de um governador megalómano, desmedido de ambição, de uma sordidez rapace – exemplar extremo do pior que o salazarismo criou – tudo isto descrito como se de um pesadelo kafkiano se tratasse; um longo inquérito policial sobre o absurdo no qual o real é tão excessivamente avassalador que nos magoa de vergonha e perplexidade.
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Este romance é também a estória de sum Clé Clé, homem sábio, demiurgo, curandeiro das doenças da alma (porque é nela que tudo adoece), num tempo desalmado no qual Deçu/Deus, a existir – mas é tão improvável, ou então cego anda – se esqueceu dos humanos filhos deixando-os entregues à sua sorte e ao arbítrio dos déspotas. Sum Clé-Clé, preto velho, livre de olhar o tempo que passa lento, porque a vida é para se sorver sem pressa nem temores, placidamente, sentindo-a vibrar por dentro da carne como se fosse a música que a chuva executa no zinco da cubata.
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Bibliografia:
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A Guerra Colonial - Realidade e Ficção - Org. de Rui de Azevedo Teixeira - Ed. Notícias
Revista História
Crónica de Uma Guerra Inventada, de Sum Markly – Veja
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in Avante 2008.04.17
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terça-feira, 29 de abril de 2008

A idéia de revolução burguesa no pensamento marxista brasileiro

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Por PAULO ROBERTO DE ALMEIDA

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas

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Florestan Fernandes e a idéia de revolução burguesa no pensamento marxista brasileiro

1. Itinerário teórico-prático da revolução burguesa no Brasil

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A idéia de revolução burguesa é consubstancial ao próprio desenvolvimento do marxismo no Brasil, conhecendo seus momentos de ascensão teórica ou de declínio prático, de projeção exclusiva no establishment intelectual ou de concorrência com outros modelos analíticos típicos da academia, pari-passu aos progressos teóricos ou percalços práticos da ideologia marxista no País. Essa noção perpassa grande parte da produção intelectual situada no campo teórico do marxismo, alcançando seu ponto máximo, enquanto “tipo-ideal” da conceitualização marxista sobre o desenvolvimento capitalista brasileiro, na obra do sociólogo Florestan Fernandes. O sociólogo paulista foi um dos mais brilhantes representantes do marxismo acadêmico no Brasil, elevando a interpretação marxista da história brasileira a um plano certamente elevado de conceitualização, sobretudo com o clássico A Revolução Burguesa no Brasil.

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Depois do grande triunfo da “concepção marxista da História” na academia brasileira, entre os anos 50 e 80 — movimento coincidente com as vitórias materiais, militares e ideológicas do “socialismo realmente existente” —, o abandono teórico da idéia de revolução burguesa parece ter sido acelerado pela derrocada econômica e política dos países que, entre os anos extremos de 1917-1945 e 1989-1991, encarnaram a suposta materialização prática das idéias marxistas, países estes que curiosamente iniciam, ou retomam, em princípios dos anos 90, suas próprias “revoluções burguesas” práticas. [1] Mas, antes mesmo do “final da História” e da erosão prática do socialismo real, [2] a concepção da revolução burguesa como noção explicativa do desenvolvimento capitalista no Brasil vinha sendo substituída por novos modelos teóricos, alguns baseados na idéia gramsciana de “revolução passiva”, outros na abordagem “bismarckiana” da revolution von Oben e da modernização conservadora, outros ainda, de forma mais incisiva e original, pela afirmação de uma vertente reacionária e mesmo autocrática da revolução burguesa no Brasil, típica do capitalismo dependente da periferia latino-americana. Esta última concepção, de evidente paternidade “florestânica”, representa, na verdade, uma inversão do modelo original marxista e uma espécie de inovação conceitual sobre as concepções tradicionais a respeito da revolução social no Brasil, mas ela representa, de fato, o final da parábola da idéia de revolução burguesa no Brasil.

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O movimento dessa parábola “teórica” no Brasil não é, evidentemente, linear e previsível como uma equação matemática, nem, como seu equivalente bíblico, apresenta-se desprovido de sinuosidades interpretativas ou de surpreendentes, senão oportunas, correções de rota, algumas explicáveis pela própria história mundial do comunismo, outras impostas pelas conhecidas desventuras da democracia no Brasil. Do ponto de vista teórico, em todo caso, a ascensão e declínio da idéia de revolução burguesa não observou, no Brasil, o timing histórico de outras experiências interpretativas e exegéticas conhecidas na história do marxismo: uma certa defasagem cronológica na importação de conceitos e doutrinas pela elite intelectual brasileira poderia explicar por que certas idéias, mesmo as mais poderosas ou prometéicas, dão a impressão de se encontrar um pouco fora de seu lugar ou deslocadas em seu tempo de realização efetiva. [3] De certa forma, a discussão da idéia de revolução burguesa no Brasil intervém quase um século após os conhecidos debates teóricos do marxismo clássico.

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A trajetória prática de uma hipotética “revolução burguesa” no Brasil, por sua vez, não só fugiu aos padrões explicativos desse mesmo marxismo como inovou em termos dos modelos historicamente conhecidos de modernização social e econômica e de transformação política. A Revolução de 1930, por exemplo, a melhor candidata a figurar no panteão ideal de uma revolução burguesa “concreta” no Brasil, não foi um movimento exclusivo da classe burguesa contra uma suposta aristocracia “feudal” nem tampouco se realizou em defesa do industrialismo capitalista contra supostas travas nas relações sociais de produção impostas por uma formação social de base essencialmente agrária. As interpretações simplistas dessa Revolução, baseadas no primeiro esquematismo de fundo marxista, já foram há muito descartadas pela sofisticada historiografia que se desenvolveu no âmbito universitário a partir dos anos 70. [4]

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O modelo de “modernização varguista” — que domina o Brasil desde o final dos anos 30 até praticamente o auge do regime militar de cunho industrializante de meados dos anos 70 — não poderia, para sermos estritos em termos de comparabilidade histórica, ser equiparado a uma revolução burguesa. As dúvidas e questionamentos — inclusive por parte de representantes do próprio marxismo acadêmico — são diversos: como e quando, exatamente, teria sido efetivada a hegemonia burguesa na esfera política?; quando essa classe teria transformado de forma radical, ou decisivamente, as relações de produção no campo; em que medida, com que extensão e sob quais condições ela teria colocado as bases de um processo de acumulação capitalista de base autônoma? Como se vê, os contrastes com o “modelo ideal” de revolução burguesa, tal como enunciado na literatura marxista tradicional — como em Nelson Werneck Sodré — ou mesmo inovadora — como em Florestan Fernandes —, são aparentemente enormes.

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Mas, esse tipo de situação contraditória — na qual os fatos não se encaixam na modelização teórica marxista — não é certamente exclusivo do Brasil, podendo igualmente ser observado em determinadas conjunturas históricas de “transformação passiva” de antigas sociedades tradicionais, de processos delongados de modernização conservadora, de mudanças sociais enquadradas num contexto de capitalismo tardio, de ausência, enfim, de uma verdadeira revolução burguesa suscetível de romper as alianças espúrias do ancien régime e inaugurar uma nova era de progresso social e incorporação cívica das camadas subalternas ao jogo político-institucional. Foi o caso, talvez, da “revolução passiva” descrita por Gramsci — o transformismo da experiência política que se seguiu à unificação italiana —, da Revolution von Oben da mais aristocrática modernização conservadora alemã — de inspiração bismarckiana e de sustentação junkeriana — ou ainda da transformação Meiji, que combinou aspectos de modernidade e de tradição na ascensão do Japão à era moderna.

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Independentemente de suas desventuras práticas ou sucessos teóricos nos países de capitalismo “tardio”, a idéia de revolução burguesa conheceu uma trajetória de relativo prestígio — ainda que essencialmente acadêmica e intelectual — nos países do capitalismo avançado, no quais, finalmente, a “revolução burguesa” era decididamente um assunto do passado e a “revolução proletária” um projeto sem futuro. Paralelamente, a doutrina marxista era posta politicamente à prova nos países do capitalismo periférico, colonial, atrasado ou dependente, nos quais nem a burguesia nem o proletariado estavam preparados para cumprir suas respectivas “missões históricas”. Seu relativo sucesso enquanto força social ou ideológica nestes últimos, inclusive no Brasil, se deve, talvez, à ausência da “verdadeira” revolução burguesa e à falta de transformação real das condições materiais de produção durante boa parte da história contemporânea desses países.

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Assim, se as dificuldades práticas de atualização dessa poderosa idéia social diminuíram seu grau de atratividade — de fato sua necessidade histórica — nos países avançados, na periferia geográfica do capitalismo ela permaneceu o terreno de eleição por excelência — ainda que historicamente marginal — dos profetas do desaparecimento inelutável deste último, considerado teórica e materialmente inferior ao modo socialista de produção, este bem mais racional do ponto de vista econômico e socialmente mais justo. O marxismo da periferia, mais do que uma proposta original de socialismo, sempre foi basicamente um anti-capitalismo, tanto mais poderoso quanto o país em causa era mais atrasado do ponto de vista capitalista. Marx e Engels trataram muito pouco da problemática da transição nos países atrasados — apenas alguns artigos de jornal, para condenar os “bárbaros” indianos e chineses, ou os “idiotas” dos mexicanos e espanhóis, que se opunham à marcha do capital e da civilização, um sendo o equivalente do outro —, mas o que se sabe é que eles condenavam irremediavelmente o despotismo asiático ao purgatório do capitalismo europeu, não tendo sido capazes de jamais imaginar que sociedades pré- ou semi-capitalistas pudessem um dia encarnar os ideais elevados e progressistas de um socialismo moral, política e materialmente superior ao sistema que ele estava destinado a substituir.

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Constitui um dos maiores paradoxos da história do marxismo o fato de que os únicos países a entrarem no “livro dos recordes” do comunismo realmente existente tenham sido, todos, ou mesmo exclusivamente, sistemas econômicos atrasados do ponto de vista capitalista, nações que jamais conheceram uma “revolução burguesa” prática e que preservaram, contra as recomendações do iniciador da doutrina, sistemas políticos que mais se assemelharam ao despotismo asiático desprezado por Marx do que aos democráticos conselhos operários concebidos a partir das revoluções de 1848 e da Comuna de Paris. Em todo caso, contrariamente ao programa histórico desenhado por Marx para os proletários e intelectuais socialistas dos países desenvolvidos — isto é, levar a seu termo a “missão histórica” do capitalismo burguês, para só então dar início à era socialista —, foram os intelectuais e “proletários” dos países menos avançados que julgaram ser melhor saltar a etapa histórica da democracia burguesa e do capitalismo empresarial para penetrar de imediato na democracia socialista e na propriedade estatal.

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Esses intelectuais — muito poucos proletários legítimos participaram da aventura marxista na periferia — foram, portanto, basicamente anti-capitalistas, falhando no entanto o movimento real do comunismo enquanto partido de massas precisamente devido à crônica e notória insuficiência de capitalismo real em suas formações sociais respectivas. Em contrapartida, foram esses mesmos intelectuais que, na periferia atrasada, produziram algumas páginas brilhantes da teoria social contemporânea, renovando o pensamento marxista e as ciências sociais como um todo. A idéia de “revolução burguesa”, como em todas as outras experiências de capitalismo tardio e de democracia retardatária, encontra-se obviamente no centro da discussão.

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Muito embora tenham sido vários os autores dignos de serem citados em qualquer história do marxismo acadêmico no Brasil, três podem ser considerados como intelectuais de primeiro plano, isto é, influentes ao longo do tempo, nesse terreno relativamente bem freqüentado por historiadores, sociólogos, economistas e cientistas políticos: são eles Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré e Florestan Fernandes.

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Caio Prado, já definido — em mais de um sentido — como um historiador revolucionário, foi provavelmente o mais fecundo dos três, ao dar início a uma reflexão pioneira e inovadora sobre o desenvolvimento histórico da sociedade brasileira e suas possibilidades de transformação nos quadros do modo de produção capitalista. Werneck Sodré, talvez o mais ortodoxo do grupo, buscou fornecer armas intelectuais para a etapa da revolução nacional capitalista no Brasil, pensada enquanto resultado de uma aliança de classes. Florestan, por sua vez, o mais bem aparelhado conceitualmente, foi um acadêmico integral, dedicado na maior parte da sua vida à elaboração de um pensamento socialista original e criador, que tenta desvendar os segredos e descobrir os caminhos pelos quais se estabelece num país periférico do ponto de vista da economia central uma modalidade particular de capitalismo, dependente e autocrática. Sua trajetória política no final da vida corresponde a uma fase de menor elaboração teórica, durante a qual o “leninismo” instintivo do articulista de jornal deixa de lado a finesse terminológica dos primeiros tempos de funcionalismo sociológico e de weberianismo acadêmico. [5]

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Caio Prado, Sodré e Florestan trabalharam na efervescência política e intelectual de suas épocas respectivas, convivendo com outros pensadores igualmente notáveis na maneira de interpretar o Brasil, partilhando uma mesma vocação voltada para a transformação do País. Mas, eles representam seguramente o que de melhor foi produzido em termos de marxismo inovador no Brasil, buscando respostas teóricas ou práticas às dúvidas que uma parte de nossa elite intelectual e política legitimamente entretinha sobre nossas chances de desenvolvimento capitalista nos escombros de uma ordem independente não totalmente liberada das amarras e defeitos estruturais da economia colonial exportadora.

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No pós-guerra, uma corrente “nacional-burguesa” — representada por Hélio Jaguaribe, Roland Corbisier, Celso Furtado, Ignacio Rangel, Alberto Guerreiro Ramos — e outra “nacionalista” tout court — como Álvaro Vieira Pinto, Cândido Mendes de Almeida, João Cruz Costa — formularam interpretações que se aproximaram por vezes da concepção marxista sobre a “revolução burguesa” e chegaram mesmos a conceber projetos “burgueses” de desenvolvimento econômico e social para o País. Mas, as contribuições desses pensadores tinham tendência a diluir a burguesia numa entidade obscura chamada “povo”, quando não privilegiaram categorias quase filosóficas, tais como a “vontade nacional”, no confronto com outras de extração bem mais “materialista” que estavam sendo oferecidas nessa mesma época por pensadores como Caio Prado e Werneck Sodré, precisamente. Outros intelectuais dessa época permanecem numa vertente “culturalista” (Manuel Diegues) ou quase “funcionalista” (Costa Pinto), mas não deixam menos de enriquecer o grande canal da teoria social brasileira em construção. O sociólogo Guerreiro Ramos, por exemplo, faz referência explícita à noção de “revolução burguesa” em sua reflexão sistemática sobre a mudança social no Brasil, mas ele está pensando na verdade numa simples “revolução industrial”.

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Os anos 60, num movimento paralelo ao do aprofundamento da crise econômica e política do Brasil em fase de industrialização, assistem a um florescimento extraordinário da produção acadêmica, sobretudo em suas vertentes marxista e weberiana, muito embora algumas poucas correntes universitárias de inspiração liberal tenham continuado se desenvolver mesmo nos ambientes mais “contaminados” pela mística da transformação social e das reformas radicais — agrária, urbana, educacional. O exemplo de Cuba e o aparente sucesso da industrialização socialista como via alternativa ao capitalismo dependente e periférico, agitam o debate acadêmico e motivam as pesquisas sobre o Estado, os empresários e as classes sociais por herdeiros de Gilberto Freyre, de Sérgio Buarque ou de Caio Prado. É a voga dos trabalhos monográficos ou de amplo escopo que fazem a revisão crítica da “visão ingênua” que tiveram seus predecessores sobre a marcha do capitalismo no Brasil: Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Paul Singer, e muitos outros colegas ou discípulos daqueles founding fathers e seus continuadores na chamada “escola paulista de Sociologia”, onde começava a pontificar, precisamente, Florestan Fernandes.

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O que se poderia chamar de “teoria social brasileira” se inspira essencialmente no marxismo, muito embora o ecletismo seja de rigor, com muitas doses de weberianismo acadêmico e algumas pitadas de historiografia francesa. A unidade de pensamento é muito mais aparente do que real. No terreno da historiografia, por exemplo, a escola marxista comportava tanto representantes da corrente ortodoxa como pesquisadores “revisionistas”. No primeiro grupo se situariam os adeptos de uma “etapa feudal” no desenvolvimento histórico da sociedade brasileira. De uma certa maneira, eles seguiam nesse ponto as teses da historiografia tradicional sobre o período colonial. Pela conceitualização que eles fazem do “modo de produção” que teria precedido o capitalismo no Brasil, essa corrente inscreve sem qualquer equívoco uma “etapa burguesa” no quadro da “revolução nacional” que estaria em curso no Brasil desde o final do século XIX (basicamente a partir do final da Abolição). O historiador Nelson Werneck Sodré é, certamente, o representante mais típico da interpretação marxista ortodoxa da “revolução brasileira”.

Mas, o verdadeiro iniciador da historiografia marxista no Brasil, Caio Prado Júnior, era entretanto muito menos ortodoxo nesse particular. Tendo inaugurado a interpretação materialista da sociedade brasileira, esse decano da história econômica e social influenciou, como veremos, mais de uma geração de pesquisadores, desde seu pioneiro Evolução Política do Brasil (1933), passando pela Formação do Brasil Contemporâneo (1942) e pelo História Econômica do Brasil (1945). Mas, o debate se instala verdadeiramente a propósito de seu livro polêmico A Revolução Brasileira (1966), no qual Caio Prado nega à burguesia brasileira qualquer “papel revolucionário” ou anti-imperialista, como pretendia a “visão etapista” defendida pelo PCB e pelos demais ideólogos da esquerda ortodoxa.

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Fora da historiografia, os partidários de uma “revolução nacional” ou “burguesa” são tão numerosos quanto seus adversários, estes recrutados nas mais diversas tendências da esquerda marxista. Alguns, adeptos da tese do “capitalismo desde o começo” ou da “superexploração imperialista”, situando o crescimento e a estagnação capitalistas no contexto do sistema internacional dominante, operam uma redução radical da autonomia social da classe burguesa. Os que adotaram nessa época a concepção relativamente inovadora dita do “subdesenvolvimento satelitizado” — inaugurada por André Gunder Frank e revista pelos teóricos da “dependência”, entre eles Ruy Mauro Marini — atacaram com razão o falso binômio “tradicional-moderno”: não há uma dualidade estrutural entre os setores colonial-exportador e o industrial-capitalista, mas uma só cadeia de exploração imperialista ligando entre elas as atividades econômicas as mais diversas, desde o centro dominante até a periferia dominada. A debilidade “orgânica” da burguesia “nacional” — interpretação que tinha o assentimento do sociólogo Fernando Henrique Cardoso — seria devida, portanto, não tanto à natureza intrinsecamente perversa dessa burguesia, mas ao caráter deformado, desigual e dependente do desenvolvimento do capitalismo periférico, o que não impediu os mais afoitos de abandonar a hipótese da “revolução burguesa” e de inscrever na agenda da história um projeto de “revolução socialista” (como Wanderley Guilherme ou Theotônio dos Santos, por exemplo).

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Outros, colocando mais ênfase no caráter “específico” dos modos de produção dominantes durante as fases colonial e nacional — identificados como sendo o “escravista” e o “dependente” — dividiam-se também quanto ao papel social e político da classe burguesa vis-à-vis o poder do Estado e da potência do imperialismo. A teoria da “dependência” por exemplo — que deriva dos conceitos de centro e periferia já aplicados desde os anos 40 por um economista inovador como Raul Prebisch — constituía uma espécie de “funcional-estruturalismo” aplicado à velha teoria leninista e luxemburguiana do imperialismo: ela buscava combinar a análise classicamente marxista com uma abordagem macro-nacional sobre a interação de sistemas econômicos complementares e desiguais. Os conceitos de “burguesia” e de “Estado” ocupam um espaço preponderante nessas análises — conduzidas, a partir da inspiração de Florestan, por jovens sociólogos como Cardoso, Ianni, Weffort, Cohn — mas o argumento da Revolução burguesa está longe de se constituir em variável analítica independente como na obra do mestre da Escola Paulista de Sociologia: não se nega a possibilidade de uma “hegemonia burguesa”, mas esta permanece limitada pelas “ligações perigosas” mantidas pela elite industrial com a oligarquia e o imperialismo (se fala mesmo de uma “internalização da dependência” na própria estrutura social).

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Os anos 70 constituem, paradoxalmente, um período de, por um lado, brutal repressão contra a intelligentsia marxista dos cenáculos acadêmicos e contra seus êmulos guerrilheiristas nas ruas das grandes cidades brasileiras e, por outro, de disseminação das idéias marxistas nas gerações mais jovens, a ponto da “concepção marxista da história” ter-se tornado propriamente dominante nos cursos secundários e nos ambientes universitários. Trata-se, na maior parte das vezes, de um marxismo de ocasião, baseado em algumas poucas idéias mal digeridas de leituras apressadas de vulgatas elaboradas a partir de alguns textos de estilo stalinista de Marta Hannecker ou de cunho “estruturalistas, como em Louis Althusser. O tipo de crítica anti-marxista dos nouveaux philosophes ou aquela mais antiga de intelectuais dissidentes do marxismo real quase não aportou na terra brasílica, povoada em grande medida de socialistas improvisados.

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Mas, ao lado desse triunfo do marxismo simplista, estudiosos de renome continuam a produzir uma teoria social digna do nome, basicamente preocupada em encontrar, como seus predecessores liberais de princípios do século, explicações consistentes para as raízes do atraso econômico e social do Brasil. Com exceção do próprio mestre Florestan, a Escola Paulista de Sociologia — Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Gabriel Cohn, Paul Singer, Francisco Weffort e muitos outros mais — não pode ser exatamente identificada como um templo dedicado ao culto exclusivo do marxismo. Em todo caso, esses intelectuais praticam outras vertentes da doutrina, numa espécie de sincretismo modernizador que não ficaria nada a dever, em termos de pot-pourri litúrgico, à maior parte das religiões brasileiras.

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A noção de “revolução burguesa”, elevada ao panteão da ideologia marxista nessa época, continuava a se situar no centro das preocupações da maior parte dos estudiosos. Mas, nem todos professam os instrumentos do culto. A recusa desse modelo pode ser explícita, como no caso do marxista Jacob Gorender, grande estudioso do “modo de produção escravista”: para esse antigo ortodoxo do PCB reciclado no marxismo independente, a revolução burguesa, levando-se em conta algumas particularidades da formação econômica e social do capitalismo brasileiro, seria uma categoria analítica inaplicável à história do País. [6] O afastamento pode ser também tácito, como no caso do sociólogo e cientista político Luciano Martins: ele preferiu passar diretamente à tese “barringtoniana” da “modernização conservadora” para explicar tanto a ausência da hegemonia burguesa no Brasil como a circulação das elites no seio do Estado. [7] Mais recentemente, alguns sociólogos preferiram voltar ao conceito de modo de produção para explicar alguns dos momentos decisivos da passagem ao “Estado burguês” no Brasil. As analogias explícitas ou implícitas em relação ao “modelo ideal” de revolução burguesa transparece no trabalho do principal defensor dessa vertente, Décio Saes: para esse autor, são as classes populares (escravos e classe média urbana) que, como no exemplo da grande revolução “burguesa” da França, sustentam, sem esperar a liderança dos setores dominantes, os processos de transformação do sistema político e da ordem econômica no Brasil de 1888-1891, movimentos que, tomados conjuntamente, conformariam uma Revolução política anti-escravista e burguesa. [8]


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Outros teóricos, utilizando muitas vezes o mesmo tipo de conceitualização — capitalismo “tardio” ou “dependente”, manutenção do poder oligárquico, “incapacidade política da burguesia” etc. — colocam a revolução burguesa no centro de seus esforços interpretativos. Evidentemente, a concepção “nacional-burguesa” ou “capital-funcionalista” em vigor no final dos anos 50 — como a do já citado Guerreiro Ramos, para quem a “revolução industrial” então em curso seria uma espécie de equivalente histórico-funcional da revolução burguesa — tornou-se largamente desacreditada. Em contrapartida, as contribuições de marxistas independentes como Florestan Fernandes e Octavio Ianni são muito mais consistentes nesse particular. Ambos autores de uma vasta produção sociológica sobre o Brasil contemporâneo e representantes legítimos da Escola Paulista de Sociologia, Fernandes e Ianni aceitam plenamente o conceito e o modelo da revolução burguesa em suas análises respectivas sobre a formação social brasileira.

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É sobretudo a obra do primeiro — ao lado de Caio Prado e de Werneck Sodré — que deve merecer uma atenção particular, tendo em vista que a contribuição de Ianni apresenta a curiosa tendência de conceber a revolução burguesa apenas do ponto de vista do caráter do Estado e de sua organização efetiva no Brasil. O historiador Werneck Sodré permanece provavelmente o mais forte defensor de uma visão classicamente marxista sobre o desenvolvimento histórico da sociedade brasileira, ainda que a precedência histórica na elaboração de uma interpretação legitimamente marxista do desenvolvimento econômico e social do Brasil esteja com Caio Prado Júnior

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2. Florestan Fernandes e a revolução burguesa na periferia

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Florestan Fernandes é, sem dúvida alguma, o representante principal do que se poderia chamar, a falta de melhor designação, de “teoria social brasileira” e sua obra mais importante — A Revolução Burguesa no Brasil — constitui o esforço mais acabado empreendido na academia brasileira para elaborar uma teoria regional do desenvolvimento capitalista na periferia da “economia-mundo” capitalista.

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Egresso de uma das primeiras turmas de Ciências Sociais da USP, onde recebeu aulas de mestres franceses — dos quais tornou-se assistente —, Florestan realizou pesquisas sobre o folclore em São Paulo e terminou, em 1947, seu mestrado pela Escola de Sociologia e Política, com uma tese sobre a organização social dos tupinambá. Sua tese de doutoramento, já pela USP em princípios dos anos 50, representou uma continuidade desse trabalho, tendo examinado a função social da guerra entre os tupinambá. Sua aproximação ao marxismo, ainda durante os anos de estudos universitários, bem como às correntes de pensamento socialista se deu basicamente em função de sua própria condição social de “oprimido”, tendo sido aperfeiçoada em leituras, em traduções de Marx — Contribuição à Crítica da Economia Política , por exemplo — e em contatos freqüentes com grupos de socialistas e trotskistas dos meios jornalísticos e intelectuais.

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Mas, nessa primeira fase de sua vida acadêmica, em que atuou como professor assistente de Fernando Azevedo e depois de Roger Bastide, e como responsável pela cadeira de Sociologia-I na USP, Florestan seguiu o ecletismo típico de seus mestres franceses: uma pitada de cada teórico acadêmico — com destaque para Durkheim, Weber e Marx — e um diálogo constante com os grandes mestres contemporâneos: Mannheim, Freyer, Sombart, Tönnies, Linton e vários outros expoentes das escolas européias e norte-americanas. Uma pesquisa sobre as relações raciais em São Paulo formou a base de seus grandes trabalhos sobre o problema da integração do negro na sociedade de classes. Desde cedo, contudo, ele também é levado a pensar os problemas do subdesenvolvimento e da dependência, que era por ele chamado de heteronomia, conceito derivado de Marx e Weber. Estava tendo início ali um pensamento original dentro do que se poderia chamar de Sociologia Brasileira ou, de forma mais ampla, de Sociologia Latino-Americana, bastante conectada às contribuições econômicas “periféricas” e “desenvolvimentistas” de Raúl Prebisch e Aníbal Pinto — da chamada escola cepalina — e aos aportes propriamente sociológicos de José Medina Echavarria e de Rodolfo Stavenhagen.

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A análise interpretativa dos problemas raciais e das relações de classe no Brasil conduz Florestan ao estudo da formação econômica e social e às especificidades da “transformação burguesa” no País, base ulterior de seu grande trabalho sobre a “revolução burguesa” no Brasil. Com efeito, detentor isolado do copyright do conceito de revolução burguesa na produção sociológica brasileira, o grande intérprete da mudança social em nosso País não encontrou, até agora, muitos seguidores nesse campo minado da reflexão histórico-social. O único discípulo a adotar o conceito e a problemática da revolução burguesa na análise do desenvolvimento histórico brasileiro, Octavio Ianni, vincula, na verdade, essa noção ao estudo das formas assumidas pelo Estado, mas no trabalho de Ianni o conceito designa, na verdade, o seu contrário, isto é, a “contra-revolução burguesa”, o que é, pelo menos, um contra-senso heurístico.

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O opus magnum de Florestan, A Revolução Burguesa no Brasil (1975), integra, mediante instrumentos conceituais recolhidos nas melhores fontes da sociologia — sobretudo em Marx, em Durkheim e em Weber —, o essencial da produção historiográfica, sociológica e política relativa aos diferentes aspectos do processo de modernização econômica e social do Brasil. Trata-se, nada mais nada menos, do que interpretar todo o processo histórico de (trans)formação da sociedade brasileira, buscando em nosso passado dependente, escravocrata e periférico — ou seja de capitalismo incompleto e tardio e subordinado ao imperialismo e de insuficiente “mutação burguesa” das estruturas de dominação política — as razões e as raízes das deformações do período contemporâneo, marcadas pela ditadura militar — uma “autocracia burguesa” no entendimento de Florestan — e por um desenvolvimento econômico desigual, retardatário e caudatário dos principais centros da economia mundial.

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Florestan Fernandes pretendia, com seu monumental “ensaio de interpretação sociológica”, resumir as principais linhas da evolução do capitalismo e da sociedade de classes no Brasil. Mas, ao colocar no centro de sua interpretação o conceito específico de “revolução burguesa”, a summa sociológica de Florestan não deixa de apresentar algumas especificidades em relação a uma pretendida “filiação” marxista, tanto de forma como de substância. Algumas características propriamente “heterodoxas” dessa grande obra são de natureza estilística: uma redação que se estendeu durante cerca de uma década (1966-1974) justifica provavelmente insuficiências como a ausência de unidade global e de uniformidade no texto, o caráter descosido ou fragmentado de alguns capítulos e mesmo mudanças propriamente conceituais no desenvolvimento do discurso, como a substituição da abordagem classicamente weberiana e durkheiminiana da primeira parte pelo enfoque mais claramente “leninista” dos capítulos finais. A adesão de Florestan ao que ele mesmo chama de “sociologia engajada e radical” faz com que sua análise da “revolução burguesa” no Brasil acuse, em diversas passagens, o dilema entre a objetividade científica e a opção política.

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Essa obra constitui, fundamentalmente, uma forma peculiar de utilização da teoria marxista na reconstrução de processos históricos sempre únicos e originais, no caso, a transição brasileira para a modernidade social capitalista, que é vista, por Florestan, segundo a ótica da revolução burguesa. Sua interpretação desse processo permanece, ainda hoje, um marco do pensamento sociológico brasileiro, sendo apresentada, nos muitos escritos de seus epígonos acadêmicos, como um prova mesma da vitalidade do marxismo aplicado à realidade social do Brasil. Entretanto, nessa obra máxima de Florestan, o conceito de revolução burguesa não é qualificado de maneira estrita, nem possui um estatuto teórico muito preciso: passa-se de uma definição sócio-econômica a uma outra essencialmente política desse fenômeno, sem que se possa aferir a parte da “longa duração” e a da “conjuntura histórica de transformação” — para empregar os termos braudeliano e labroussiano bem conhecidos — na atualização brasileira desse conceito. Para Florestan, a revolução burguesa, definida de maneira genérica, constitui “um fenômeno estrutural, que pode se reproduzir de modos relativamente variáveis dadas certas condições ou circunstâncias, desde que certa sociedade nacional possa absorver o padrão de civilização que a converte numa necessidade histórico-social”.

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Em outros termos, o argumento de Florestan sobre a atualização histórica da “revolução burguesa” no Brasil assume primeiramente uma qualificação positiva (a da “emergência e consolidação do capitalismo”) para transformar-se, no final, em seu contrário (a “crise do poder burguês”). O equivalente histórico, no Brasil, da conjuratio burguesa seria dado pela agregação ideológica operada no movimento abolicionista. Florestan não adota o método comparativo, senão indiretamente, mas parece consciente dos dilemas e dos limites que o comparatismo coloca ao pesquisador. Ele critica, por exemplo, os que negam a existência de uma “Revolução Burguesa” no Brasil, “como se admiti-la implicasse pensar a história brasileira segundo esquemas repetitivos da história de outros povos, em particular da Europa moderna. O sociólogo paulista estabelece, por exemplo, uma distinção entre o modelo “clássico” de revolução burguesa — que teria conduzido ao capitalismo independente e à democracia política — e a revolução burguesa “periférica” — resultando no capitalismo dependente, na dominação externa e na autocracia burguesa —, mas, ele não diz porque o segundo processo deve ser inserido na mesma família conceitual do primeiro.

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A revolução burguesa de Florestan Fernandes apresenta-se, assim, como um paradigma na fronteira externa do capitalismo mundial. Procurando estabelecer que o espécime brasileiro pertence mesmo à família sociológica das revoluções burguesas, Florestan identifica o conteúdo essencial desses fenômenos históricos a um processo de “absorção de um padrão estrutural e dinâmico de organização da economia, da sociedade e da cultura”, que seria o da civilização capitalista moderna. O paradigma da revolução burguesa se justificaria pelo fato que, no Brasil também se assistiu “a universalização do trabalho assalariado e a expansão da ordem social competitiva”, isto é, ocorreu um simples processo de modernização capitalista.

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Florestan reconhece formalmente que o processo de modernização das estruturas sociais, políticas e econômicas das formações capitalistas não tem um único modelo estabelecido. Seria vão, portanto, diz o mestre, pretender no Brasil “uma réplica ao desenvolvimento capitalista característico das Nações tidas como centrais e hegemônicas”. O desenvolvimento capitalista no Brasil, a despeito das limitações internas e externas impostas ao processo, conseguiu, ainda assim, segundo Florestan, provocar uma “revolução econômica autêntica”. Entretanto, devido precisamente à preservação da “dupla articulação” — latifúndio e imperialismo —, não existe “espaço histórico para a repetição das evoluções do capitalismo na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, ou na Alemanha e no Japão”. Ainda assim, segundo o mestre paulista, “um desenvolvimento capitalista articulado não produz uma transformação capitalista de natureza diferente da que se pode observar nas sociedades capitalistas autônomas e hegemônicas. O que varia é a intensidade e os ritmos do processo”. Florestan reconhece, em primeiro lugar, que a “economia competitiva [da periferia] tende a redefinir e a fortalecer os liames de dependência, tornando impossível o desenvolvimento capitalista autônomo e auto-sustentado”, mas é para concluir imediatamente após: “Todavia, o desenvolvimento capitalista logrado traz consigo, como nas sociedades centrais e hegemônicas, as mesmas tendências de organização e de evolução da economia, da sociedade e do Estado”.

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Florestan jamais pretende a repetição, no Brasil, do que ele chama de “modelo democrático burguês de transformação capitalista”, chegando mesmo a negar a existência de “determinantes universais” nesse processo. Ele reconhece no entanto estar à procura das “conexões específicas da dominação burguesa com a transformação capitalista”, nos casos onde a “dupla articulação” foi preservada. Ele propõe o conceito de “modelo autocrático-burguês de transformação capitalista”, que seria típico das formações dependentes do capitalismo periférico. Mais que um conceito, trata-se de verdadeira tese sociológica, e que se constitui no elemento crucial do modelo interpretativo construído por Florestan para explicar a modalidade específica de modernização capitalista no Brasil.

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A tese de Florestan possui, implicitamente, duas premissas: primo, que a transformação capitalista apresente, em todos os lugares, um caráter burguês; secundo, que a dominação burguesa é inevitável, independentemente das formas políticas específicas de seu exercício. A implicação mais importante dessas duas proposições não estritamente formalizadas é, entretanto, a de que este modelo de transformação capitalista, apesar de “autocrático”, se inscreve igualmente no quadro conceitual da revolução burguesa.

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Florestan destaca a importância primordial da transformação capitalista como fator essencial da mudança histórica nas formações periféricas ocidentais: o crescimento capitalista é real, apesar de dependente. O que a periferia reproduz são as “características estruturais e dinâmicas essenciais” do capitalismo central — isto é, economia mercantil, competitiva, mais valia, etc. — sem as quais ela “não seria capitalista”. A uniformização dos princípios de modernização não exclui entretanto a existência de “diferenças fundamentais” que decorrem do processo pelo qual esse desenvolvimento capitalista torna-se “dependente, subdesenvolvido e imperializado”.

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Florestan reconhece a existência dessas “diferenças fundamentais”, típicas do capitalismo periférico, mas insiste em combinar os processos de transformação capitalista, de um lado, e de dominação burguesa, de outro, como se ambos devessem permanecer estrutural e necessariamente ligados nas diversas atualizações históricas concretas da modernização capitalista. A tese de Florestan sobre o “modelo autocrático-burguês de transformação capitalista” visa transcender o paradigma histórico consagrado sobre a revolução burguesa, representando ao mesmo tempo uma tentativa teórica de explicar os impasses e limitações praticas da modernização capitalista na periferia do sistema. O núcleo da explicação sociológica estaria no “caráter retardatário das Revoluções Burguesas na periferia dependente e subdesenvolvida do mundo capitalista”. No caso brasileiro, por exemplo, a “contra-revolução burguesa” de 1964 e o sistema “autocrático” que se instala ulteriormente seriam o produto inevitável da modernização tardia.

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3. Os intelectuais marxistas e a revolução burguesa no Brasil

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Vinculados, de uma forma ou de outra, aos combates políticos e sociais de suas respectivas épocas históricas e atuando em contextos políticos específicos, os intelectuais marxistas analisados neste trabalho pensaram a questão da democracia, da revolução burguesa e do desenvolvimento social no Brasil. Essa reflexão foi conduzida segundo um pensamento marxista inovador e propunha, de modo geral, uma inversão radical do tipo de capitalismo seguido até então — considerado submisso aos interesses da oligarquia agrária e dependente do imperialismo — e, de forma coerente com a primeira premissa, uma incorporação das camadas subalternas ao processo político democrático. Todos eles viam no socialismo um objetivo razoável de organização social da produção e um princípio legítimo de estruturação do sistema político, ainda que eles reconhecessem a necessidade de uma lenta acumulação de forças — consubstanciada na idéia de revolução burguesa — antes de que se pudesse pensar em passar à “etapa superior” de modelização da sociedade. Eles foram extremamente influentes nos círculos intelectuais, no pensamento acadêmico de modo geral e no próprio debate público de idéias no Brasil, desde os anos 30 até praticamente nossos dias.

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Caio Prado Jr. foi um pioneiro nesse tipo de reflexão radical sobre os destinos econômicos do País e seu regime político, vistos como um sistema industrial em formação e uma democracia possível, mas devendo antes se libertar das amarras do imperialismo e do latifúndio. Nelson Werneck Sodré atuou sobretudo nas hostes nacionalistas — militares e civis — buscando conformar uma agregação política de forças sociais suficiente para romper aqueles mesmos obstáculos identificados por Caio Prado em seus escritos históricos e econômicos. Florestan Fernandes, o mais acadêmico dos três, foi um verdadeiro maître-à-penser do desenvolvimento brasileiro, um tribuno de seus ideais socialistas e um dos maiores sistematizadores da teoria social moderna. Todos eles identificaram na chamada “burguesia nacional” — com os qualificativos políticos que cada um lhe atribuiu — uma força social importante, embora relativamente pusilânime em face dos desígnios, combinados ou não, do latifúndio e do imperialismo, mas, ainda assim, necessária e central à tarefa de transformação econômica e social da Nação. Suas respectivas contribuições intelectuais foram orientadas, de certa forma, a “empurrar” — talvez contra sua própria vontade — a burguesia nacional para um tipo de capitalismo independente e um regime político democrático plenamente participativo.

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Uma particularidade desse tipo de raciocínio — derivada talvez da virtual tendência marxista em identificar uma determinada classe social com um “devir” histórico específico — pode ser apontada na conexão de tipo estrutural que se faz entre sistemas econômicos e regimes políticos, como se se tratasse de um modelo de tipo hegeliano, no qual uma determinada categoria social encarna o “espírito” de cada época histórica. Os intelectuais marxistas brasileiros, atribuindo, com Marx, ao capitalismo, uma força social transformadora superior às suas possibilidades históricas efetivas, frustraram-se amplamente ao constatar as debilidades materiais, políticas, sociais e ideológicas de uma classe — a burguesia — que, supostamente, deveria encarnar as principais virtudes e ideais do modo de produção “revolucionário”, de toda forma superior ao sistema monocultor agrarista conhecido até então.

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Qualquer que seja o destino futuro do marxismo acadêmico no Brasil, sua trajetória faz parte da própria história intelectual no País, tendo ela sido profundamente marcada pelas contribuições que ofereceram, em seus respectivos campos de atuação, pensadores como Caio Prado, Werneck Sodré e Florestan Fernandes. Eles foram paradigmáticos de uma certa época e plenamente representativos de um determinado debate de idéias, assim como foram, para suas respectivas gerações, “lideranças carismáticas” na descoberta de “campos virgens” de exploração teórica, na condução de pesquisas empíricas, na orientação de leituras, na identificação de caminhos explicativos, na organização científica dos conceitos e outros instrumentos analíticos, na apresentação de “contribuições relevantes”, assim como na própria mobilização política para o “bom combate”. A eles muito deve o vigor da teoria social brasileira nos últimos sessenta anos e sobre sua obra deve repousar, em parte, o esforço de reconstrução de uma teoria histórico-social adaptada ao estágio atual de transformação da sociedade nacional.

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Orientações de leitura sobre Florestan Fernandes:

Almeida, Paulo Roberto de. Classes Sociales et Pouvoir Politique au Brésil: une étude sur les fondements méthodologiques et empiriques de la Révolution Bourgeoise (Bruxelas: Université Libre de Bruxelles, 1984, 2 vols.; Thèse présentée en vue de l’obtention du grade de Docteur en Sciences Sociales)

———. “O Paradigma Perdido: a Revolução Burguesa de Florestan Fernandes”, in Maria Angela d’Incao (org.), O Saber Militante: Ensaios sobre Florestan Fernandes (São Paulo-Rio de Janeiro: UNESP - Paz e Terra, 1987, pp. 209-229)

Fernandes, Florestan. A Etnologia e a Sociologia no Brasil (São Paulo: Anhambi, 1958)

———. Mudanças Sociais no Brasil (São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960)

———. Folclore e Mudança Social na Cidade de São Paulo (São Paulo: Anhambi, 1961)

———. A Sociologia numa Era de Revolução Social (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963

———. A Integração do Negro na Sociedade de Classes (São Paulo: Dominus-USP, 1965);

———. Educação e Sociedade no Brasil (São Paulo: Dominus-USP, 1966)

———. Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento (Rio de Janeiro: Zahar, 1968)

———. The Latin American in Residence Lectures (Toronto: University of Toronto, 1969-70)

———. O Negro no Mundo dos Brancos (São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972)

———. Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina (Rio de Janeiro: Zahar, 1973)

———. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica (Rio de Janeiro: Zahar, 1974)

———. Circuito Fechado: quatro ensaios sobre o “poder institucional” (São Paulo: Hucitec, 1975)

———. “A Revolução Burguesa no Brasil em Questão”, Contexto (São Paulo: ano I, n° 4, 1977, pp. 141-8)

———. A Sociologia no Brasil (Petrópolis: Vozes, 1977)

———. A Condição do Sociólogo (São Paulo: Hucitec, 1978)

———. Da Guerrilha ao Socialismo: a Revolução Cubana (São Paulo: T.A. Queiroz, 1979)

———. Apontamentos sobre a “Teoria do Autoritarismo” (São Paulo: Hucitec, 1979)

———. A Natureza Sociológica da Sociologia (São Paulo: Ática, 1980)

———. Poder e Contrapoder na América Latina (Rio de Janeiro: Zahar, 1981)

———. Reflections on the Brazilian Counter-Revolution: essays (New York: M. E. Sharpe, 1981)

———. “Esboço de uma trajetória”, depoimento concedido a equipe coordenada pela Prof. Mariza Correa, em 29 de março de 1984, Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais (Rio de Janeiro: ANPOCS, n° 40, 2° semestre 1995, pp. 3-25)

Morse, Richard M. “A Economia de Manchester e a Sociologia Paulista”, Dados (Rio de Janeiro: n° 18, 1978, pp. 3-56)

Nascimento Arruda, Maria Arminda do. “Arremate de uma reflexão: a Revolução Burguesa no Brasil de Florestan Fernandes”, Revista USP; dossiê Florestan Fernandes (São Paulo: n° 29, março-maio 1996, pp. 56-65)

Santiago, Silviano. “A Revolução Burguesa”, Contexto (São Paulo: ano I, n° 2, 1977, pp. 149-153)

Outros textos sobre o marxismo e o comunismo na América Latina:

Almeida, Paulo Roberto. Velhos e Novos Manifestos: o socialismo na era da globalização (São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999)

Aricó, José. Marx e a América Latina (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982)

Fukuyama, Francis: “The End of History?”, The National Interest (n° 16, 1989, pp. 3-18)

———. The End of History and the Last Man (New York: Free Press, 1992)

Cardoso, F. H. e Enzo Faletto. Dependência e Desenvolvimento na América Latina (Rio de Janeiro: Zahar, 1970)

Gorender, Jacob. A Burguesia Brasileira (São Paulo: Brasiliense, 1981)

———. O Escravismo Colonial (São Paulo: Ática, 1978)

———. “O Conceito de Modo de Produção e a Perspectiva Histórica” in José Roberto do Amaral Lapa (ed.): Modos de Produção e Realidade Brasileira (Petrópolis: Editora Vozes, 1980, pp. 43-65)

———. “The Brazilian Problem: a Communist View” in Irving Louis Horowitz, Revolution in Brazil: Politics and Society in a Developing Nation (New York: E. P. Dutton, 1964, pp. 328-341)

Guerreiro Ramos, Alberto. O Problema Nacional do Brasil (Rio de Janeiro: Saga, 1960)

Gunder Frank, Andrew. Capitalism and Development in Latin America (New York: Monthly Review Press, 1969)

Hobsbawm, Eric, Georges Haupt, Franz Marek, Ernesto Ragionieri, Vittorio Strada e Corrado Vivanti, Storia del Marxismo (Torino: Einaudi, 1979-1983; vv. vols.)

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Ianni, Octavio. “O Ciclo da Revolução Burguesa no Brasil”, Temas de Ciências Humanas (São Paulo, n° 10, 1981, 1-34)

———. O Ciclo da Revolução Burguesa (2a ed.: Petrópolis: Editora Vozes, 1985)

Lowy, Michael. Le Marxisme en Amérique Latine de 1909 à nos jours: anthologie (Paris: Maspéro, 1980)

Marini, Ruy Mauro. Subdesarrollo y Revolución (México: Siglo XXI, 1969)

———. Dialectica de la Dependencia (México: Era, 1973)

Martins, Luciano. Pouvoir et Développement Économique: formation et évolution des structures politiques du Brésil (Paris: Anthropos, 1976)

Marx, Karl. Contribution à la Critique de l’Économie Politique (Paris: Ed. Sociales, 1957)

———. Oeuvres I: Économie (Paris: Gallimard, 1968)

Miceli, Sérgio (org.). História das Ciências Sociais no Brasil (São Paulo: Vértice, 1989)

Moore Jr., Barrington. Poder Político e Teoria Social (São Paulo: Cultrix, 1972)

———. Social Origins of Dictatorship and Democracy: Lord and Peasant in the Making of the Modern World (Harmondsworth: Penguin, 1979)

Motta, Fernando C. Prestes. Empresários e Hegemonia Política (São Paulo: Brasiliense, 1979)

Santos, Theotônio dos. Socialismo o Facismo: el nuevo caracter de la Dependencia y el Dilema Latinoamericano (Buenos Aires: Periferia, 1973)

———. “The Crisis of Development Theory and the Problem of Dependence in Latin America” (1969) in Henry Bernstein (ed.), Underdevelopment and Development: the Third World Today (Harmondsworth: Penguin, 1973, pp. 57-80)

Schwartzman, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro (Rio de Janeiro: Campus, 1982)

Silva, Angelo José da. “Agrarismo e industrialismo: uma primeira tentativa marxista de interpretação do Brasil, Revista de Sociologia e Política (Curitiba, UFPR: nº 8, 1997, pp. 43-54)

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domingo, 27 de abril de 2008

A história da senha do 25 de Abril de 1974

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(…)
O que é preciso é termos confiança
se fizermos de Maio a nossa lança
isto vai meu amigos isto vai.
José Carlos Ary dos Santos

O primeiro 1º de Maio celebrado em Portugal depois do 25 de Abril foi a maior manifestação alguma vez organizada no país. Para muitos, foi a forma dos portugueses demonstrarem a sua adesão ao 25 de Abril, que uma semana antes restituira ao país a democracia.

33 anos depois desta data, façamos do 1º de Maio uma grandiosa demonstração de força e de unidade.

José Gomes

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"Cantar Alentejano" - José Afonso
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24 Abril 2007


A história da senha do 25 de Abril



A história da senha do 25 de Abril de 1974

“Querido Amigo,
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Já agora seria bom que repuséssemos uma verdade que tem andado omitida e lembrássemos quem foi o homem que na Rádio Renascença pôs no ar a “Grândola Vila Morena”. Foi o locutor Carlos Albino, homem completamente esquecido! E não se entende porquê... às vezes esquecemo-nos que a História é feita destes pequenos feitos e destes pequenos/grandes heróis e que, sem eles, nada teria sido possível. Carlos Albino está completamente esquecido e muito justamente amargurado. E no entanto foi um homem fundamental na engrenagem dos factos que levaram à nossa Libertação!”
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A partir deste e-mail e servindo-me de u
ma artigo do DN de 24/04/99, vou da a palavra a Carlos Albino que nos vai contar a sua experiência naqueles dias que antecederam a madrugada de Abril:




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(24 de Abril de 1999)
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O acontecimento menos conhecido de todos é o da combinação da "senha" difundida pela Rádio Renascença para a saída das tropas dos quartéis no próprio dia 25 de Abril de 1974. A sua escolha fez-se no bairro de Alvalade, onde tinha a sede a empresa radiofónica que emitia o programa "Limite" que pôs no ar a canção "Grândola Vila Morena".
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A verdadeira história da senha do 25 de Abril de 1974
Era meia-noite, 20 minutos, 19 segundos
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Carlos Albino: - Passaram 25 anos desde aquele momento em que eu e o Manuel Tomás nos vimos directamente comprometidos e cúmplices conscientes na senha para o arranque simultâneo dos militares que decidiram acabar de uma vez por todas com uma ditadura que matava o País com uma morte que não se via. Durante este tempo todo, os únicos responsáveis directos pela execução e transmissão da senha têm assistido ao mais lamentável desfile de vaidades por parte de gente e até de forças políticas que indevidamente têm querido apropriar-se desse gesto. E o que é mais lamentável é que, tendo este País tantos historiadores, quase nenhum destes quis acertar com a verdade sobre factos recentes e autores vivos. Em matéria de senhas do 25 de Abril, tem havido para cada um a sua senha.
Otelo é que, no fundamental, tem dito sempre a verdade no seu legítimo ponto de vista de comandante operacional do 25 de Abril. E, diga-se, também pouco mais interessará do que esse ponto de vista, pelo que os responsáveis efectivos pela execução e transmissão da senha jamais ao longo destes anos tentaram meter-se ou insinuar-se nessa área em que Otelo fala por direito próprio, como também, depois que foi comunicada e confirmada em definitivo a senha escolhida pelo Movimento, jamais incomodaram os militares operacionais com questões que apenas passaram a fazer parte da responsabilidade de quem, independentemente do risco (ao lado do local da emissão da senha estava o Governo Civil, pejado de polícia de choque, e em linha de vista a própria sede da PIDE), assumiu o firme compromisso de a transmitir e no momento exacto. Foi o que aconteceu e também isto foi importante.
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Ora, a partir do momento em que ficou assente que para o arranque do movimento militar seria necessária uma senha transmitida através de uma estação de rádio com efectiva cobertura nacional, as escolhas não eram muitas. Uma das escolhas seria o Rádio Clube Português, que haveria de ser pensado para posto de comando do Movimento após ocupação militar das instalações, e transmitir previamente uma senha por aí seria uma imprudência de toda a ordem. Outra escolha possível seria a antiga Emissora Nacional, mas não se via lá dentro alguém com capacidade de intervenção e iniciativa para actuar àquela hora ou mesmo a qualquer outra hora, pois os democratas nessa altura não abundavam por lá. Restava a Rádio Renascença e dentro desta o "Limite", um programa independente que, pelo aluguer de instalações e antenas para as suas emissões, pagava por mês o equivalente em moeda actual a 4500 contos.
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O programa, à data da preparação final do movimento militar, tinha no núcleo duro dos seus decisores Marcel de Almeida (um amigo de longa data de Melo Antunes), Leite Vasconcelos e Manuel Tomás (vindos de Moçambique com indesmentível currículo de democratas) e o signatário.
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Como não acontecia com qualquer outro programa de rádio, o "Limite", que era transmitido em directo, era alvo de duas censuras: uma que era a da própria Rádio Renascença e a outra a oficial, exercida por um coronel cujo nome neste momento não me ocorre mas de que conservo as garatujas de assinatura, instalado na Renascença exclusivamente para actuar sobre o "Limite" (por tanto recebia o equivalente hoje a 300 mil escudos, quantia obtida através do aumento do aluguer das antenas ao "Limite" - ou seja, o programa pagava indirectamente ao seu próprio censor...
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E quanto aos célebres Emissores Associados de Lisboa, o que era isso? Essa rede de fracos emissores mal se ouvia em Lisboa (nas zonas baixas da cidade a sintonia era impossível). Seria impensável a transmissão de uma senha para todo o País através dos Associados. O sinal que consistiu em “E depois do Adeus” serviu e bem como primeiro toque para uns poucos operacionais e, diga-se já agora, serviu também para quem no "Limite" estava com aviso.
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Mas por aí houve uma fase em que toda a gente corria para as senhas de Abril, para os símbolos de Abril, para as condecorações de Abril, para os heróis de Abril, e no meio de tanta distracção chegou a dizer-se que o sinal dos Associados serviu para todo o País, pouco faltando para se garantir que quando o Paulo de Carvalho apresentou tal canção para o concurso televisivo já o tinha feito a pensar no MFA, na noite do 25 de Abril, na libertação dos presos políticos, no fim da censura e no termo da guerra colonial. Que José Afonso assim já pensasse (e de há muito) quando escreveu, cantou e gravou a Grândola, não duvido.
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Mas devo dizer, agora que passaram 25 anos e no que está relacionado com o que me pediram, que apenas dois civis tiveram conhecimento do processo que culminaria com a senha do 25 de Abril: Manuel Tomás e quem dá testemunho nestas linhas. Álvaro Guerra foi um precioso elemento de ligação e naturalmente que não foi ouvido nem achado para a execução da senha; Leite Vasconcelos, que no seu dia de folga deu a sua voz a tudo o que tinha que ser dito nos exactos 11 minutos de duração do bloco previamente submetido às censuras; o estagiário de locução que estava na cabine (não quero dizer o nome antes que o encontre porque é um dos que têm andado para aí a mentir) estava longe de imaginar o que se iria passar e nada justificava que se lhe dissesse o que estava em jogo; a regência de estúdios onde em todo o caso poderia ser interrompida a emissão caso tivesse ocorrido alguma denúncia, estava debaixo de olho. Mas, acima de tudo, devo aqui testemunhar que o Manuel Tomás, para além de uma lealdade total, foi uma peça-chave para o êxito da pequena coisa que foi pedida – a senha.
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A caminho do limite…
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22 de Março. Informação inicial sobre a inevitabilidade de uma senha por rádio com efectiva cobertura nacional para o arranque dos quartéis.
29 de Março. Ensaio no Coliseu (festival da Casa da Imprensa) sobre a aceitação de Grândola. O festival foi gravado e transmitido em diferido pelo Limite.
23 de Abril, fim de manhã. Álvaro Guerra é o elemento de ligação com Carlos Albino, a quem pede a transmissão da canção “Venham mais Cinco” no Limite de 25 de Abril. Carlos Albino pede a Álvaro Guerra para devolver a resposta de que tal canção estava proibida pela censura interna da Renascença embora a censura oficial a tolerasse. Sugeridas alternativas, entre as quais Grândola.
24 de Abril, 10 horas. Álvaro Guerra novamente serve de elo de ligação de Almada Contreiras com Carlos Albino, a quem comunica a escolha definitiva de Grândola Vila Morena como senha para o movimento militar. Carlos Albino garante a transmissão.
24 de Abril, 11 horas. Carlos Albino adquire na então Livraria Opinião, a Madeira Luís, o disco "Cantigas de Maio" para garantia. Desde Dezembro de 1973, havia indícios de que a PIDE preparava o assalto aos escritórios do Limite, na Praça de Alvalade.
24 de Abril, 15 horas. Encontro decisivo com Manuel Tomás, para a execução da senha e garantia de transmissão face às duas censuras que o Limite enfrentava: a da Rádio Renascença e a oficial (um coronel que acompanhava as emissões em directo e visava previamente os textos). Carlos Albino e Manuel Tomás decidem sair dos estúdios para um local onde possam prosseguir com segurança o diálogo.
24 de Abril, 15 e 30. Ajoelhados na Igreja de S. João de Brito e simulando rezar, Carlos Albino e Manuel Tomás combinam todos os pormenores técnicos da senha.
24 de Abril, 17 horas. Leite Vasconcelos (em dia de folga na locução do Limite) é convocado por Manuel Tomás para "gravar poemas". Carlos Albino escreve textos para serem visados pelo censor.
24 de Abril, 19 horas. O censor autoriza textos e alinhamento.
24 de Abril, 20 horas. Na Renascença, gravação dos textos por Leite Vasconcelos, desconhecendo o objectivo.
25 de Abril. Aos 20 minutos e 19 segundos, arranque da fita com a senha. Carlos Albino e Manuel Tomás retiram-se da Renascença às 3 e 30.
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Que vasta galeria de falsos heróis
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Carlos Albino: - A senha, com as características com que foi pedida (leitura da primeira quadra de Grândola, transmissão integral da canção e repetição da quadra inicial), era à partida de difícil execução e transmissão num programa que estava debaixo de duas censuras: uma, relativamente tolerante e até em certos momentos pactuante, montada pela Renascença, e outra, braço directo da censura oficial a actuar exclusivamente sobre o Limite.
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É lícito recordar isto, pois não são poucos os que têm procurado fazer a contrafacção da senha, chegando a pôr em causa a palavra e a própria dignidade pessoal das duas únicas pessoas (e não mais) que têm a ver directamente com o caso.
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Em todo o caso, a leitura das quadras (independentemente de a canção de José Afonso ser permitida) e só pelo facto de ser uma leitura suporia sempre passagem pela censura que chegou a impedir que fizéssemos momentos de silêncio (as brancas como se diz na gíria da rádio). Ninguém hoje pode imaginar a dificuldade que era a de fazer rádio em directo como nós, os do Limite, fazíamos. Era aliás a nossa razão de existir na rádio.
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Como é que as dificuldades foram contornadas, com a máxima garantia de que a transmissão da senha não seria interrompida, abortada ou substituída por outro material? Todos os cuidados eram poucos, pois não se passava só connosco - a PIDE conseguia instalar informadores em tudo o que fosse sítio. O Limite não poderia ser uma excepção só por ser Limite.
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Como dois a pensar funcionam melhor do que um só, o Manuel Tomás e eu (ajoelhados na Igreja de S. João de Brito, local fantasticamente protegido para conspiração de tal tamanho, pois até o facto de o pároco ser então o antípoda dos progressistas ajudava a que o local obrigasse a PIDE a grandes cuidados), a senha ficou combinada nestes termos: eu escreveria dois poemas para justificar a chamada a serviço do Leite Vasconcelos, que estava em dia de folga, os textos seguiriam para o censor, o Manuel Tomás, segundo um alinhamento combinado, faria a engenharia final da peça, no domínio estético e técnico. Este modo de actuação não daria grandemente nas vistas: o Limite assentava na sua maior parte sobre textos poéticos meus lidos sempre, àquela época, pelo Leite de Vasconcelos e trabalhados também sempre segundo os belíssimos esquemas que somente a sensibilidade artística de Manuel Tomás conseguia nas circunstâncias em que trabalhávamos.
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Assim foi.
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O alinhamento foi redigido, em resumo: quadra, canção Grândola, quadra, poema Geografia, poema Revolução Solar e para finalizar a canção Coro da Primavera.
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Os censores (da Renascença e o coronel) viabilizaram os textos sem hesitações: a "geografia" falava dos rios portugueses e a "revolução solar" falava de planetas e galáxias... Para eles, isto não tinha "política". Viabilizados, os textos foram lidos pelo Leite de Vasconcelos e gravados a seco, sendo pouco depois trabalhados sonoplasticamente pelo Manuel Tomás. O bloco ficou com 11 minutos, o que era habitual no Limite. Tudo se fez como se tudo fosse o mais normal. O que não tem sido normal é o aproveitamento que nestes 25 anos se tem feito da senha.
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Vou esforçar-me para não dizer nomes, pois estamos em época de concórdia, mas recordo que surgiu um e garantiu que escolheu comigo o disco da senha. Não escolheu nada. Surgiu outro e garantiu que a senha foi o Depois do Adeus – e bem se viu o triste espectáculo e as tremendas confusões que fizeram nas comemorações do 25 de Abril que decorreram em Santarém. Ora isso não foi senha, por amor de Deus!
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Outro que nem era do Limite deixou-se filmar para um alegado documentário sobre a senha que percorreu o Alentejo, sendo aqui recebido como herói. Não era. E outro que até era do Limite – não resisto a citar Leite de Vasconcelos – deixou-se filmar pelo musicólogo Fernando Matos Silva para alegada "reconstituição do cenário". Não era. A voz foi dele, mas ele estava longe do estúdio e mais longe ainda do que a senha significava.
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Reportagem no ar sem hesitação
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Carlos Albino: - As primeiras reportagens sobre o 25 de Abril e o que estava a acontecer nas ruas da capital, solicitadas como serviço a Adelino Gomes, a quem foram disponibilizados meios profissionais adequados, foram transmitidas por responsabilidade do Limite.
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Os noticiários da Renascença até 27 de Abril continuaram com reservas sobre a queda da ditadura e ninguém esperava que o MFA fosse ocupar o Rádio Clube Português para mandar fazer reportagens... A Emissora Nacional dava música clássica e quanto aos Emissores Associados, ninguém ouvia nem podia ouvir isto.
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Os primeiros debates políticos com intenção deliberadamente pluralista aconteceram no Limite. Mas também todo este sonho acabou no dia 8 de Junho de 1974, após a transmissão da primeira entrevista com Arnaldo Matos (na presença de Fernando Rosas, o historiador deve recordar bem a cena) e depois de terem sido ouvidas personalidades dos mais diversos quadrantes.
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A Renascença acabou com o Limite trocando-o pelo efémero "Voz dos Trabalhadores" decidido em plenário, onde também ninguém se solidarizou com as circunstâncias que ditaram o fim do contrato firmado entre o Limite e a Renascença.
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Não foi difícil perceber que a colisão frontal entre o Limite e a administração da Renascença de então resultou do facto de se ter usado a estação para a transmissão da senha. Até hoje, ao que se saiba, nunca a estação assumiu como ponto de honra o facto de ter acontecido nessa casa o gesto que significou a mudança radical da vida portuguesa, pois, se o fizesse, dificilmente poderia evitar a alma do Limite que tem todos os motivos para descansar em paz.
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Até ao último momento da existência do programa ninguém compreendeu como a Igreja perdeu uma oportunidade excelente para, logo em 1974, sair da sexta-feira pouco santa da ditadura para decididamente entrar no dia de ar livre da ressurreição que começou a ocorrer apenas passados anos, limitada e tardiamente.
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Digamos que sobre o Limite caiu uma espécie de maldição impensável e da qual, por certo, nestas páginas de alguma forma se livra tendo sido necessário deixar passar estes 25 anos para que se diga à vontade o que jamais pode ser entendido como defesa de causa própria. Na verdade, algo de fundamental para a Revolução do 25 de Abril faz parte do património disso que hoje é já mera lembrança e simples recordação, mas que para aquela grande parte de uma geração a entrar nos 40, 50 e 60 que não perdeu ou não quis perder a memória, continua a ser a evocação suave de uma deliberada cultura de sensibilidade e da fragrância de um perfume com as possíveis palavras rasgadas nas noites de terror.
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Não se está a sugerir o descerramento de uma placa à entrada da Renascença, nem outra coisa qualquer. O que se sugere é que já era altura de a Renascença assumir o Limite como facto importante da sua biografia, como altura é dos historiadores e candidatos a isso serem mais rigorosos e precisos, quanto a nomes, horas e formas. Sobretudo, ouvindo quem fez sobre o que fez.
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A amiga Júlia Coutinho deu-me a conhecer quem foi o homem (Carlos Albino) que na Rádio Renascença pôs no ar “Grândola Vila Morena”. Este trabalho, tirado do DN de 24 de Abril 1999) é mais um contributo para a História do 25 de Abril.
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José Gomes
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