quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Carlos Coutinho - Pois é…

* Carlos Coutinho


   PESSOA já tinha vivido na pele de todos os seus heterónimos quando o argentino Borges, com ascendência lusitana, escreveu em “Lamento de Heráclito”: 

   “Eu que tantos homens tenho sido, (tradução minha), não fui nunca / aquele em cujo abraço desfalecia Matilde Urbach.” 

   É certo que Fernando Pessoa achava que “a morte é a curva da estrada. / Morrer é só não ser visto”, porém, quando isto escreveu, Jorge Luís Borges ainda não era cego e lia toneladas de livros em Buenos Aires, além de muito apreciar os faquistas portenhos.

   Até um erudito emigrante açoriano, que dá aulas nos EUA, de seu nome Teotónio Onésimo Almeida, “reconhece a dificuldade de em Pessoa se encontrar um núcleo duro ou básico no seu pensamento, embora isso não seja de todo impossível. Por exemplo, tenhamos em consideração que os heterónimos não são assim tão antagónicos em matéria de ética. Não há radicalização de nenhum deles: nenhum heterónimo pessoano se revela marxista, nem muçulmano, nem revolucionário de esquerda, nem verde, nem católico, nem nazi, nem sequer protestante.” (in revista “Ler”, 2023, Pessoa e Nietzsche – Um confronto na modernidade).

   Diga-se, de passagem, que estes versos de Jorge Luís Borges – foram modificados em edições posteriores, trocando-se “abraço” por “amor”, já que, no dizer do autor, ficavam muito sibilantes – tendo aparecido numa seleção intitulada “Museu” e apocrifamente atribuída a Gaspar Camerarius. Especificamente, no fragmento VII, 16 de “Deliciae Poetarum Borussiae”. 
 
   Enquanto alguns especulavam com que o nome de Matilde Urbach resultava de uma certa paixão secreta do jovem Borges, outros intuíram conotações menos pessoais ou mais filosóficas – embora o título do poema remeta para “ninguém se banha duas vezes no mesmo rio”, e o patronímico Urbach provenha, talvez, de um étimo protogermânico impronunciável que deu origem ao germânico medieval Bach (arroio, ribeira), propiciando uma cifrada interpretação.  

   Mas a verdade sobre Matilde Urbach continuou mistério, até que um texto de Bonilla, integrado em “A Arte do Yo-Yo”, respiga uma suposta investigação em torno desse “nome inabordável”. 

   Por sua vez, outro escritor argentino, Bioy Casares, declarou: “Creio que era uma personagem de um romance cuja leitura Borges me confessou.” 

   E o formidável escritor espanhol Javier Marías, recém-falecido, nos remete para o romance “Man With Four Lives”, do ignoto norte-americano William Joyce Cowen, que tinha sido referido por Borges na época em que colaborava na revista “El Hogar”.

   Como quer que seja, a verdade é que outra grande escritora, Marguerite Yourcenar, de origem belga e cedo migrada para os EUA, escreveu “En Pelerin et en Étranger”:

   “Face à história, qualquer homem minimamente consciente das constantes mudanças e da complexidade quase infinita das coisas sente-se, a pouco e pouco, tomado pela sensação do horrível e do absurdo. Nenhuma delas se altera em breve, e sem que primeira ou a segunda dessas noções enfraqueça, junta-se-lhes uma outra, a de que uma vasta impostura, na qual, ativos ou passivos, todos participamos.”

   Pois é…

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Bárbara Reis - SIC e CNN e aquele partido

LIVRE DE ESTILO

Uma newsletter de Bárbara Reis sobre o outro lado do jornalismo e dos media.

Bárbara Reis

31 de janeiro de 2024 

É fácil criticar as televisões: fazem coisas boas, mas vivem para as audiências, cortam a palavra a políticos para a darem a futebolistas, fazem maratonas de directos sem nada de novo, alimentam a superficialidade, copiam os jornais.

É tudo sabido.

O que me traz aqui hoje é a cobertura que as televisões estão a fazer do Chega.

Não escrevi "Chega" no título e optei pela fórmula "RAPiana" do Programa cujo nome estamos legalmente impedidos de dizer. Podia dizer "Chega" – e o Chega agradecia – mas não vale a pena.

Vou dar dois exemplos de como as televisões estão a ajudar o Chega a crescer. É literal.

Não terá reparado, mas na quarta-feira, dia 24, o Chega anunciou que ia fazer um "congresso eleitoral" no sábado, 27, em Sacavém, entre as 15h e as 19h, para apresentar "as linhas fundamentais" do seu programa eleitoral. Como o partido teve um congresso há duas semanas, o anúncio causou estranheza. Mais um congresso?

O que fizeram os media com este anúncio?

Às 19h20, o Correio da Manhã publicou uma notícia com o título ‘Cortar a direito pela decência’: André Ventura aponta critério do Chega sobre casos de corrupçãoA notícia tem 1500 caracteres e refere o "Congresso Eleitoral do Chega", mas em nenhum momento fala das "linhas fundamentais" do programa eleitoral do partido, as tais que iam ser apresentadas.

A seguir, às 19h42, a agência Lusa publicou uma peça, com o título Eleições: Ventura acusa PSD de incoerência e PS de preparar ‘maior ataque à justiça’ se vencer. Tem 2200 caracteres e, de novo, nem uma palavra para as "linhas fundamentais". Que tenha visto, só a Rádio Renascença publicou esse "take" da Lusa. Muitos media optaram por ignorar, não publicaram a Lusa e não enviaram repórteres para Sacavém.

O que fizeram as televisões nesse sábado com o congresso-que-não-era-um-congresso? Um festim.

A SIC Notícias fez um directo do pseudo-congresso às 16h19. Três minutos. Às 17h37 fez um novo directo. Mais três minutos. Mal acaba o directo, entrevista a uma analista, Cátia Moreira de Carvalho, da Universidade do Porto – a investigadora num canto e imagens do "congresso" em dois terços do ecrã. Mais cinco minutos.

A seguir, Paulo Baldaia e Maria João Marques aparecem a comentar. O quê? O Chega. No rodapé: "Chega realiza convenção eleitoral". O que ocupa a maior parte do ecrã? Ventura, claro. Falam até às 18h18, quando Ventura começa o discurso – que é um comício, não é a apresentação de "linhas fundamentais".

Das 18h18 às 18h23, a SIC Notícias dá o discurso em directo. Mais cinco minutos. A seguir, os comentadores regressam e voltam a comentar o Chega. Já vamos em quantos minutos sobre um congresso que não é um congresso? Corta para publicidade e, às 19h08, a SIC Notícias emite uma peça sobre o discurso de Ventura. Mais dois minutos. Seguido de quê? Da análise de Sebastião Bugalho e Miguel Morgado. Sobre o quê? Ventura. Estamos nisto até às 19h21.

Na CNN, a festa foi parecida. Entre as 18h e as 20h30, o Chega e Ventura estão perto de omnipresentes. Às 18h16, Sara de Melo Rocha, pivot, diz "por falar em extrema-direita", como forma de anunciar que a estação vai "acompanhar a apresentação do programa eleitoral", Ventura já está a falar no não-congresso e entra em directo.

O líder do Chega está a dizer que "o país ficará espantado", pela positiva, com o seu programa eleitoral, há muitas palmas, mas "linhas fundamentais", zero. Até às 18h21, Ventura fala em directo sobre a "podridão", "degradação" e "corrupção", no seu habitual retrato de Portugal como o país mais decadente do planeta.

pivot Melo Rocha corta o directo e resume: "Para já, ainda não há medidas apresentadas". Percebe-se o esforço. Mas alguém acreditou que ia haver? A maioria dos media não acreditou e nem foi a Sacavém.

Cinco minutos depois, o Chega regressa à CNN, com dois comentadores, Miguel Pinheiro e Paulo Ferreira. Como antes, os dois disseram coisas úteis e incisivas. Ferreira disse que está "curioso para ver o programa eleitoral do Chega" para "perceber a consistência das políticas", "e já agora", que "propostas exequíveis têm" – como quem diz, ainda não vimos nenhuma. Pinheiro desmonta a hipocrisia da proposta do Chega para a TAP e faz um alerta – o silêncio dos partidos sobre a Madeira, que deixam Ventura a falar sozinho, tem um resultado: "Estendem o tapete vermelho a Ventura."

Será verdade: os partidos têm uma quota-parte de responsabilidade. E as televisões, qual é a sua quota? Os dois falam do Chega até às 18h31. O noticiário da CNN prossegue. Às 19h lá regressa o Chega, a criticar o PSD. Mais um minuto. Às 19h16, mais dois comentadores, André Macedo e Miguel Santos Carrapatoso, e aparece de novo Ventura em directo a fechar o "congresso" com a bandeira de Portugal ao ombro.

A seguir, das 20h16 às 20h31, a CNN entrevista dois constitucionalistas: Jorge Bacelar Gouveia (que foi à última academia de Verão do Chega) e Luís Menezes Leitão (cujo assistente na Universidade de Lisboa era João Lemos Esteves, fã incondicional do Chega e director de sites de extrema-direita dedicados a propagar fake news). Não digo que a CNN não os oiça como especialistas em Constituição, mas os dois ao mesmo tempo e durante 15 minutos?

Volta a crise na Madeira – foi na sexta-feira que o presidente da câmara do Funchal anunciou a demissão – e a CNN anuncia uma peça para as reacções. São 20h31 e o pivot diz: "Seguimos para reacções políticas." Quem abre a sequência de reacções? Acertou: o Chega. Ventura fala do "congresso" durante um minuto inteiro. Só depois vem a reacção do PS, IL, BE e Livre. Já agora, daria uma newsletter mais longa comparar os minutos (muitíssimo menos) que as televisões deram neste mesmo sábado ao Livre, que teve um congresso – verdadeiro, foi o 13.º, durou dois dias e debateu-se o programa –, e ao PS, que teve um fórum (a palavra escolhida) para discutir propostas, durante o qual Pedro Nuno Santos anunciou propostas novas e concretas.

Já terá perdido a paciência com tanto pormenor. Isto é só um exemplo: um pseudo-evento e duas televisões. O Chega cresce por muitas razões. As televisões não podem pôr a cabeça na areia e fazer de conta que nem sabem do que estamos a falar.

https://www.publico.pt/2024/01/31/newsletter/livre-estilo


Novo livro da saga Millennium, sem Stieg Larsson

LITERATURA

Novo livro da saga Millennium, sem Stieg Larsson, editado em Portugal em 2015

Oceanos editará o quarto livro da saga best-seller, que será escrito pelo sueco David Lagercrantz, autor da biografia do futebolista sueco Zlatan Ibrahimovic

Joana Amaral Cardoso

18 de Dezembro de 2013, 13:2

Um novo livro da saga Millennium de Stieg Larsson, já assinado por um novo escritor, será editado em Portugal em 2015, confirmou esta quarta-feira ao PÚBLICO a LeYa, que através da sua chancela Oceanos publicou já Os Homens que Odeiam as MulheresA Rapariga que Sonhava com uma Lata de Gasolina e um Fósforo e A Rainha no Palácio das Correntes de Ar. Na terça-feira, a editora sueca Norstedts anunciou que a trilogia terá uma sequela, desta feita assinada pelo sueco David Lagercrantz – autor da biografia I am Zlatan, do futebolista sueco Zlatan Ibrahimovic, que se tornou no livro mais rapidamente vendido da Suécia em 2011.

O livro de Lagercrantz está previsto para Agosto de 2015 na Suécia, exactamente dez anos depois do lançamento do primeiro volume da trilogia Millennium, que vendeu mais 75 milhões de livros em todo o mundo e é um dos fenómenos literários da primeira década do século XXI. Em Portugal, segundo dados da LeYa, os três livros venderam já mais de 157 mil exemplares (119 mil na sua edição original e quase 38 mil na versão BIS, a colecção de livros de bolso).

Pouco se sabe ainda sobre o caminho que a história da hacker Lisbeth Salander e do jornalista de investigação Mikael Blomkvist tomará nas mãos de Lagercrantz, também ele um ex-jornalista que começou a sua carreira a cobrir casos de crimes e serial-killers, como diz o britânico Telegraph. A BBC escreve que o novo livro contará com as personagens centrais da história de Larsson e que algumas das linhas narrativas da intriga dos três primeiros livros serão recuperadas.

Mas a directora da editora sueca, Eva Gedin, garantiu à Associated Press (AP) que este quarto livro é independente dos anteriores tomos e que será uma obra original que nada contém do esboço não terminado deixado por Larsson antes da sua morte. Para ela, citada pelo diário sueco Aftonbladet, as personagens criadas por Larsson são tão fortes que hoje se sustentam por si e agora terão uma segunda vida às mãos de Lagercrantz. Eva Gabrielsson, companheira de Larsson até à sua morte, manifestou ao jornal sueco a sua preocupação com o facto de Lagercrantz poder não lidar correctamente com os temas sociais e políticos subjacentes à intriga policial da obra de Larsson. E foi taxativa: “Stieg nunca o teria permitido. Ele era muito cuidadoso com a sua obra”, disse, acrescentando que “é de mau gosto tentar fazer mais dinheiro” a partir destes livros.  

A história da feitura da trilogia Millennium, ela própria digna de um romance com uma intriga finalizada com um revés dramático, é bem conhecida: Stieg Larsson, jornalista e escritor, terminou os primeiros três de uma série que planeava que tivesse dez livros e morreu de ataque cardíaco em Novembro de 2004, aos 50 anos, antes de ver a saga de Lisbeth Salander e do seu suposto alter-ego Mikael Blomkvist explodir em popularidade em 50 países e dar origem a quatro filmes - três suecos e um made in Hollywood.

Os policiais, e típicos page turners, viram-se envoltos na luta judicial entre o pai e o irmão de Larsson e a sua companheira Eva Gabrielsson em torno dos direitos sobre o legado literário do escritor - Gabrielsson terá o computador portátil em que o escritor tinha esboçado cerca de três quartos de um quarto volume de Millennium. Stieg Larsson morreu sem deixar em testamento os seus desejos quanto ao seu espólio e obra e, como não eram casados, a batalha judicial adensou-se e Eva Gabrielsson, também ela escritora, recusou revelar mais detalhes sobre a obra inacabada até que lhe sejam atribuídos os direitos sobre o legado literário de Larsson. 

O amigo e colega de Larsson, Kurdo Baksi, contou há três anos ao diário sueco Expressen alguns desses detalhes que Gabrielsson quererá manter em segredo, nomeadamente que os planos de Larsson nesse quarto volume davam mais protagonismo à irmã gémea de Lisbeth,Camilla, e que levaria Blomkvist a vários países, como Irlanda, Suécia e EUA. No livro de Gabrielsson, Millennium, Stieg et moi (2011), ela própria avança que o título de trabalho para o livro inacabado seria A Vingança de Deus.

À BBC, Eva Gedin explicou agora: “Decidimos deixar alguém tomar conta [da saga] e contar o que aconteceu a seguir”. "Obviamente estamos muito entusiasmados. Acreditamos ter encontrado um autor soberbo para este projecto”, disse a directora, desta feita à AP. Lagercrantz, que aos 51 anos é autor de vários romances e de livros de não-ficção como I Am Zlatan, é também citado pela BBC dizendo que “já começou a escrevê-lo” e que “é terrivelmente divertido. É um mundo fantástico onde entrar”.

Lagercrantz vive no bairro sueco de Södermalm que Larsson retratou nos seus policiais e que é agora uma espécie de local de romaria para turistas literários que visitam os cenários dos livros e dos filmes. A Nordstedts descreve-o em comunicado como alguém que “procurou constantemente na sua escrita personagens bizarras e génios complexos”.
 
 

 https://www.publico.pt/2013/12/18/culturaipsilon/noticia/quarto-livro-da-saga-millennium-sem-stieg-larsson-editado-em-portugal-em-2015-1616751


A saga Millennium continua – o 7º volume

LIVROS

A saga Millennium continua – a Pipi das Meias Altas tem tatuagens e piercings

Os três primeiros livros da série foram um fenómeno. As preocupações sociais de Stieg Larsson inovaram. O 7.º volume chama-se A Rapariga nas Garras da Águia, foi escrito por Karin Smirnoff.

José Riço Direitinho

31 de Janeiro de 2024, 20:30

Quase vinte anos depois de ter sido publicado na Suécia o primeiro volume da saga Millennium – Os Homens Que Odeiam as Mulheres (D. Quixote, 2009) – do malogrado jornalista e escritor sueco Stieg Larsson (1954-2004), os livros desta série já venderam mais de cem milhões de exemplares em todo o mundo. Que fenómeno é este? Para se responder, é necessário recuar ao tempo da publicação do primeiro livro e à mudança de paradigma que representou na literatura policial.

Nos meses seguintes à sua publicação, esse volume vendeu cerca de dois milhões de exemplares num país que tem uma população de nove milhões de habitantes. Anos depois, em 2007, e de acordo com a revista The Bookseller, o seu autor ocupou o segundo lugar da lista dos mais vendidos em todo o mundo, à frente de Ken Follet, Stephenie Meyer e J. K. Rowling.

Quais foram as razões do sucesso internacional (países nórdicos à parte, pois aí elas serão mais ou menos óbvias) dos três livros de Larsson – a série continuou depois da sua morte, mas pelas mãos de David Lagercrantz e de Karin Smirnoff, mas já lá iremos – que falam apenas da sociedade sueca, da cartografia de Estocolmo, da solidão e da frieza nórdicas, mas sobretudo das falhas de um Estado que se supunha modelar e que afinal parece ser controlado por poderosas e ocultas forças malévolas? Porque é que um leitor português, grego ou israelita – e não apenas os suecos, ou os nórdicos – também corre o risco de ficar agarrado (literalmente) aos livros lendo-os sem pensar na manhã seguinte? Fez esta trilogia de Larsson parte da onda de romances policiais nórdicos que se tornou moda um pouco por todo o mundo? O que é mesmo o “policial nórdico”?

Comecemos então pelo princípio. Os hábitos de leitura são parte da tradição cultural dos nórdicos desde há muito tempo. Eles são tidos como os maiores leitores do mundo, não apenas de livros, mas também em números de jornais e de revistas existentes. Nos anos 1970, uma dupla de autores suecos, marido e mulher, Per Wahlöö e Maj Sjöwall, assinaram os primeiros êxitos de livros policiais e criaram a figura do primeiro “inspector” sueco, Martin Beck. O modelo usado para a personagem principal e para a arquitectura dos romances estava ainda muito preso ao que era tido (e ainda é) como canónico no género, o hard-boiled norte-americano, muito estereotipado, apesar de já aflorar questões sociais. 


A Rapariga nas Garras da Águia

Autoria: Karin Smirnoff
Tradução de Maria de Fátima Carmo
Editora: Dom Quixote
496 págs., 23,30€


Efeito Olof Palme

Segundo alguns críticos e outros estudiosos do género, foi só a partir de finais da década de 80 que o “policial” escrito por autores nórdicos se começou a alterar, e houve uma razão forte para isso: a sociedade sueca não se refez do assassinato do primeiro-ministro social-democrata Olof Palme numa rua do centro de Estocolmo, em 1986, quando, perto da meia-noite, regressava a casa com a mulher, a pé e sem guarda-costas dirigindo-se para o metro, depois de terem assistido a uma sessão de cinema.

O crime continuou por resolver durante décadas, apesar das muitas pistas de teorias da conspiração seguidas (desde os independentistas curdos do PKK aos que se opunham ao fim do apartheid na África do Sul, passando pela CIA e por vários delinquentes menores com problemas de drogas e de alcoolismo). As questões emocionais relativas a este caso demoraram a ser esquecidas, não apenas pela ausência de resposta à pergunta “quem foi?”, mas sobretudo por ter levantado pela primeira vez entre os escandinavos problemas mais complexos sobre a sociedade moderna, o espaço privado, a tolerância e a violência.

O género policial foi o único que quase de imediato abordou estas questões, e tentou, de uma maneira ou de outra, minimizar todos aqueles estragos emocionais. O modelo foi-se alterando aos poucos, os autores suecos (e por extensão também os dos outros países nórdicos) deixaram de estar apenas interessados em resolver o puzzle constituído pelos factos mais ou menos óbvios de um crime, ou na montagem de uma experiência voyeurista violenta para oferecer ao leitor, e passaram a centrar-se mais nas causas e nos efeitos de um acto violento no tecido social, aprofundando um pouco mais as personagens, obviamente nunca deixando de lado o importante aspecto lúdico. Como se o novo romance policial tivesse vindo ocupar na Escandinávia o lugar do romance realista do século XIX.

O “crime nórdico” passou a ter quase sempre uma inscrição no campo social. Na literatura policial que se escreveu na década de 2010, raros foram os casos de histórias em que o acto violento era apenas passional, ou familiar, ou então entre sócios desavindos por alguns milhões roubados. Houve sempre a presença extra de uma qualquer força dificilmente controlável, quer fosse política, económica ou mesmo religiosa. E, como consequência, as personagens principais deixaram de ser obrigatoriamente apenas os habituais polícias ou detectives privados, homens de meia-idade com alguns problemas com álcool, e passaram a ser também os advogados intuitivos, os jornalistas de investigação ou os hackers (esta foi a novidade trazida pela série Millennium).

Alguns escritores que até então se dedicavam à escrita de livros da literatura chamada “séria” converteram-se em autores de best-sellers – é o caso do sueco Henning Mankell e da norueguesa Karin Fossum, até então uma aclamada poeta. Com este input cultural, o género fortaleceu-se e em muitos casos as fronteiras entre literatura “séria” e “policial” desapareceram; um dos primeiros casos surgidos foi o do dinamarquês Peter Høeg com o romance A Senhora Smilla e a Sua Especial Percepção da Neve. A juntar a isto tudo, há ainda a tradição cultural das sagas nórdicas, de que foi recuperado o seu “grande sentido de tragédia”, como referiu o norueguês Jo Nesbø numa entrevista.

A continuação

Mas a série Millennium continuou após a morte do seu criador, que no início a tinha previsto para dez volumes (escreveu apenas três). Para a continuar, foi escolhido um sueco, David Lagercrantz (n. 1962), que até então era conhecido por escrever biografias de importantes figuras suecas, entre as quais o futebolista Zlatan Ibrahimovic. Manteve as duas personagens centrais: o par do jornalista cínico (Mikael Blomkvist) e da hacker abusada, vulnerável, que transforma agonia em energia, a carismática Lisbeth Salander, uma das mais originais heroínas romanescas dos últimos tempos, uma espécie de reconversão da Pipi das Meias Altas (foi o próprio Stieg Larsson quem faz a comparação) em justiceira pós-moderna, num “factor de entropia no caos”.

Os livros escritos por Lagercrantz não deixaram de ter essa inscrição social que caracterizava a trilogia inicial, tendendo mesmo a actualizar os assuntos para adequar os romances a tempos mais actuais. Por exemplo, no sexto volume, A Rapariga que Viveu Duas Vezes, a morte de um sem-abrigo vai aos poucos ficando inesperadamente associada ao ministro da Defesa sueco; Lagercrantz continuou a ligar escândalos políticos e jogos de poder com novas tecnologias, genética, "fábricas" de trolls que criam e difundem notícias falsas, influenciadores de resultados de eleições, etc. A personagem Lisbeth Salander é, entretanto, dada como desaparecida, mas o leitor encontra-a em Moscovo a ajustar contas com a irmã Camilla, e "desta vez será o caçador e não a presa, será o gato e não o rato".

Stieg Larsson deu uma nova direcção à ficção policial escandinava, com um olhar frio do mundo expresso num tom jornalístico e furioso

Mais recentemente foi publicado o sétimo volume da série, A Rapariga nas Garras da Águia, escrito por Karin Smirnoff, uma das autoras de maior sucesso na Suécia. Ela continua o registo de Larsson no submundo do crime. O jornalista cínico vai casar a filha ao norte do país; o noivo é um dos políticos mais influentes da região, e mais uma vez os temas da corrupção e do poder político estão no centro do romance: corrupção ligada à exploração de energias renováveis num ambiente político em que a extrema-direita está em imparável ascensão. O tema do combate à violência contra as mulheres não está ausente.

Com a trilogia inicial, Stieg Larsson deu uma nova direcção à ficção policial escandinava. A escrita seguríssima de Larsson, o olhar frio do mundo expresso num tom jornalístico e furioso, aliados ainda à construção narrativa assente num puzzle de emoções, com sucessivas analepses ao passado das personagens, fizeram de cada livro da série Millennium um verdadeiro achado viciante.

Durante quase uma década esta foi a matriz de escrita de muitos autores de policiais nórdicos, não apenas suecos, mas também noruegueses. No entanto, há alguns anos que esta preocupação da "inscrição social" apenas se vai mantendo nos livros desta série, tendo vindo a ser abandonada por autores que voltaram aos seus polícias-inspectores de meia-idade com problemas de álcool, como os criados por Jo Nesbø e Jørn Lier Horst.

https://www.publico.pt/2024/01/31/culturaipsilon/noticia/saga-millennium-continua-pipi-meias-altas-tatuagens-piercings-2078474


Pedro Tadeu - Alguém ainda vota em partidos?

* Pedro Tadeu

 

O Partido Socialista que propôs ao Presidente da República substituir o primeiro-ministro demissionário, António Costa, pelo governador do banco de Portugal, Mário Centeno, para assim se manter no poder. É o mesmo PS que agora exige novas eleições na Madeira e recusa que o demissionário Miguel Albuquerque seja substituído por outra pessoa da coligação que venceu as eleições regionais em setembro?

O PSD de Luís Montenegro, que recusou a continuação do Governo de maioria absoluta do PS, após a demissão de António Costa, exigindo eleições antecipadas, é o mesmo Partido Social Democrata que agora implora a Marcelo Rebelo de Sousa a aceitação da nomeação de um substituto para Miguel Albuquerque, sem antecipação de eleições, para o partido se manter a governar a Madeira?

E o CDS de Nuno Melo, é o mesmo CDS que agora na Madeira defende o contrário do que o seu líder nacional defendeu em dezembro, após a renúncia de António Costa?


E o Presidente da República, que anunciou publicamente ir dissolver a Assembleia da República quase dois meses antes da concretização formal dessa intenção, é o mesmo Marcelo Rebelo de Sousa que não revela o que vai fazer sobre o futuro político madeirense, por estar impedido de dissolver a Assembleia Regional da Madeira durante os próximos dois meses?

 Estas contradições evidentes na prática política recente são uma consequência de uma distorção do regime que já vem de longe: em teoria, nas eleições, os portugueses votam em partidos que apresentam candidatos “amarrados” a um programa político com projetos e medidas que pretendem aplicar. Em tese, portanto, o voto não é nas pessoas que lideram esses partidos, mas sim nas ideias que esses partidos defendem. Se essa “tese” fosse levada à prática, a saída de um líder de um Governo recentemente eleito quase nunca implicaria a convocação de novas eleições, pois poderia credivelmente ser substituído por outro político do mesmo partido ou coligação que tivesse subscrito o programa votado pelos portugueses.

O problema é que a batalha política das ideias foi, desde muito cedo na nossa democracia, substituída pela luta entre pessoas da política, e, apesar de o voto ser em partidos, a verdade é que o peso político individual dos candidatos “esmaga” o volume dos programas eleitorais, que até parecem não ter qualquer importância para o resultado do sufrágio.

 Assim, aquilo que os líderes partidários prometem em campanha fica associado à sua pessoa e não ao seu partido - nós, nos media, até falamos muitas vezes em “candidatos a primeiro-ministro”, que é algo que nem existe - e é por isso que, quando o líder de um Governo tem de se demitir, ocorre um desabamento no suporte ao seu partido que favorece a realização de eleições antecipadas, mesmo quando o anterior ato eleitoral foi há muito pouco tempo.

 O culto generalizado da personalidade política, em vez do culto das ideias políticas, é, portanto, amigo da instabilidade, coisa que, contraditoriamente, tanto assusta os mais poderosos deste país que implementaram este comportamento político - mas os seus efeitos perniciosos são, infelizmente, muito maiores.

 Um deles é este: uma população treinada durante décadas, como é o caso, a preocupar-se mais com a aparência política dos líderes partidários do que com a substância política das propostas dos partidos é mais facilmente enganada por fenómenos de demagogia, mentira e manipulação; compreende mal o combate político, os debates parlamentares e não compara soluções alternativas para os mesmos problemas; é menos participativa na vida cívica, mais crente em soluções “simples” e alinha facilmente em discursos de medo, de segregação ou de ilusória radicalidade.

 O culto da personalidade, em vez do culto do partido, corrompe a democracia.

 André Ventura, neste momento, é em Portugal um beneficiário dessa degradação, comum no ocidente, mas antes dele muitos outros souberam usar em seu proveito este intencional esvaziamento social das ideias políticas - por isso, agora, não deviam queixar-se, pois estão a colher o que semearam durante 50 anos.


 Jornalista

DN 2924 01 31

https://www.dn.pt/2951359661/alguem-ainda-vota-em-partidos/


terça-feira, 30 de janeiro de 2024

João Costa - [Martim Moniz, uma praça em Lisboa]

 

* João Costa

Aqui ao lado de onde moro há um lugar, uma praça, onde as pessoas se sentam à conversa.

Falam das suas vidas. Gostam de ouvir música, as suas preferidas, as que as transportam para as memórias da sua infância. Quem não gosta dos sons com que cresceu?

Nessa praça, encontram-se afinidades e discute-se a vida na terra. Sempre foi assim Lisboa, uma terra onde se chega, com saudades da terra de onde se veio. Uma cidade que acolhe e de onde “se vai à terra” e para onde se importam memórias e hábitos. O que seria Lisboa sem os restaurantes dos courenses, a Casa do Alentejo ou os seus mercados cheios dos produtos regionais? O que seria Lisboa sem os sotaques preservados dos que há décadas chegaram do interior, do sul ou do norte?

Aqui na praça os sotaques e as línguas encontram-se e fazem-se ouvir e percebemos todos que somos mais felizes quando a língua que falamos é aquela com que as nossas mães nos tranquilizaram e adormeceram ao colo.

Lá no largo, os mais velhos sentam-se e conversam. Os mais novos brincam livremente com os seus skates e bicicletas. Porque nas praças antigas sempre foi assim. O lugar do convívio intergeracional.

Gostei de todas as vezes em que me sentei na praça e meti conversa. Aprendi sempre.

À volta da praça, os prédios cresceram feios, como em tantos lugares onde faltou o gosto. Mas isso não impede o feliz encontro da praça.

Na praça sentam-se muitos que descansam de trabalhos que outros não querem, escondem-se nos sorrisos a fuga do pior e a esperança de quem sabe que ali é possível estar, falar, dançar e cantar.

Ali no largo abasteço-me dos ingredientes que trazem novos cheiros à minha cozinha. Preciso de ajuda para saber como os usar e há mulheres e homens com paciência para me explicar.

Nesta praça não somos todos iguais. Porque não há nenhuma praça de iguais. A praça é o local do encontro e da diferença. Iguais na dignidade e no direito a uma vida que já escapou tantas vezes entre os dedos. A vida do merceeiro que não teve escolha porque não teve escola, apesar da memória fotográfica. A vida da mulher que veio porque quis dar aos seus filhos o que ela não pôde ter, porque o medo não deixou.

Na praça, cada um passa a sua moda. Há lenços bonitos, vestidos compridos, penteados com estilo. Como em todas as praças, a vaidade também se passeia neste lugar.

Esta praça é só mais uma praça, mas renasce. Que pena termos perdido a lentidão do encontro, a vontade de nos sentarmos a conhecer-nos no exterior, o sabor da conversa sem propósito, a disponibilidade de viver a rua como espaço de alegria serena.

Chama-se Martim Moniz e recomenda-se. Explode de cor e conversa. E a cor e a conversa são o que nos acorda e faz livres.

Porque é que a extrema-direita tem medo do Martim Moniz?

Pelas razões de sempre. Porque gosta do silêncio e teme a cor. Gosta do cinzento, aquela cor das cidades sem pessoas.

Mas há as flores, com cor, que, como escreve Drummond de Andrade, furam “o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”

Porque ignora as flores. E é a ignorância que alimenta o seu medo. É a ignorância que alimenta o seu ódio.

Não tenham medo. Ali não mandam ninguém para a sua terra. Nunca fui mandado para Setúbal! Ali não planeiam descer ou subir sobre outras praças e invadi-las.

O plano ali é simples. Encontrar-se. Estar e deixar estar.

Ali renasce a boa tradição das praças das cidades.


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segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Nuno Pacheco - Anónimos de Abril, a história cantada de desconhecidos que ajudaram à revolução



Rogério Charraz, José Fialho Gouveia, Joana Alegre e João Afonso são os rostos deste espectáculo que resgata da sombra figuras da resistência e do 25 de Abril. A estreia é esta segunda-feira.

Nuno Pacheco

28 de Janeiro de 2024, 20:05

 

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Rogério Charraz, José Fialho Gouveia, Joana Alegre e João Afonso: os rostos não anónimos dos Anónimos de Abril LUÍS FILIPE CATARINO

Sabem quem foi Aurora Rodrigues? Belmira Gonçalves? Francisco Miguel Duarte? Albina Fernandes? Jorge Alves? Luís e Herculana Carvalho? João Arruda? As suas vidas estão ligadas à resistência contra o Estado Novo e ao 25 de Abril, mas os seus nomes permanecem desconhecidos para a quase totalidade dos portugueses. É deles, e de outros como eles, que nos fala (e canta) Anónimos de Abril, em estreia esta segunda-feira no Tivoli BBVA (21h), em Lisboa. O espectáculo, inserido nas comemorações dos 100 anos do Teatro Tivoli, vai ser gravado pela RTP, para posterior transmissão.

O projecto de Rogério Charraz e José Fialho Gouveia, com as participações de Joana Alegre e João Afonso (vozes) e dos músicos Alexandre Frazão (bateria), Carlos Garcia (piano), Marco Reis (guitarra) e Nuno Oliveira (baixo), surgiu quando o cantor e compositor viu num texto de uma rede social a história de Celeste Caeiro, recorda ao PÚBLICO. "Já conhecia o nome, sabia que começou por dar um cravo a um militar, mas a maior parte dos portugueses está convencida de que era florista, quando de facto ela trabalhava num restaurante que fazia um ano no dia 25 de Abril [de 1974].”

Ele próprio não conhecia a história e isso aguçou-lhe ainda mais a curiosidade. “Quando dei por mim a deliciar-me com ela, pensei que deve haver muitas pessoas que tiveram um papel simbólico ou até fundamental na resistência ou na revolução e que não são muito faladas de cada vez que se celebra o 25 de Abril. Foi esse o ponto de partida para este Anónimos de Abril: ir à procura de histórias enterradas ou guardadas na gaveta.”

O passo seguinte foi falar com José Fialho Gouveia, que já havia colaborado com Rogério Charraz, como letrista, nos discos O Coreto (2021) e Reunião de Condomínio (2023), para combinar uma ida aos arquivos, tarefa que começou a ser feita a dois.

“Fomos encontrando histórias”, diz José Fialho Gouveia. “Falámos com pessoas que nos passaram figuras que podiam encaixar neste projecto e fomos construindo uma lista que depois tivemos de ir encurtando. Quisemos diversidade: não queríamos quatro ou cinco exemplos cujo aspecto central fosse a vida na clandestinidade; quisemos equilíbrio entre homens e mulheres, porque o 25 de Abril também foi feito por muitas mulheres, embora os nomes mais conhecidos sejam de homens; e quisemos regiões diferentes do país.”

O compositor acrescenta: “No caso das mulheres, tivemos também a preocupação de não ir buscar apenas as que eram de facto apoio de homens, como a Arajarir Campos [secretária de Humberto Delgado, morta pela PIDE na mesma emboscada em que ele foi assassinado, em Fevereiro de 1965], mas mostrar os vários papéis que tiveram.”

Arajarir está entre os “anónimos” aqui cantados. Tal como, entre vários outros, Belmira Gonçalves, morta a tiro durante a “Revolta das Águas” na Madeira, em 1962; o Padre Alberto Neto, fundamental na vigília da Capela do Rato; Jorge Alves, o militar da GNR que ajudou na célebre fuga dos presos do Forte de Peniche; Francisco Sousa Mendes, neto do cônsul Aristides Sousa Mendes, que integrou a coluna de Salgueiro Maia; Aurora Rodrigues, estudante presa em 1973 e torturada durante três meses; ou o casal Luís e Herculana Carvalho. De uma família abastada do Porto, estes pais de um destacado militante do PCP, Guilherme da Costa Carvalho, conseguiram autorização para visitar o filho na colónia penal do Tarrafal. Ali tiraram fotografias às campas dos prisioneiros mortos e no regresso percorreram o país a entregar as imagens aos familiares dos detidos.

Recolhidas as histórias, foi a vez das canções. “O processo foi o mesmo que usámos nos dois discos anteriores”, conta Rogério Charraz. “Partir da história, da personagem, fazer a letra – um trabalho do Zé, depois de aprofundar a pesquisa inicial, ao ler os livros, conhecer as histórias a fundo, os pormenores –; em cima das letras, eu construí as canções e os arranjos, para depois meter as vozes, minha, do João e da Joana.”

Os cantores foram já escolha de ambos. “Na minha cabeça, há um lado colectivo no canto de intervenção”, explica o compositor. “Os cantautores cantavam muitas vezes juntos, com as suas guitarras e as suas vozes, e isso está muito presente no nosso imaginário. Fazia sentido ir buscar outras vozes, [aliás] com ligações familiares a figuras da resistência: a Joana é filha de Manuel Alegre e o João é sobrinho do José Afonso.”

Depois dos palcos, um disco

Joana Alegre aceitou o convite antes de ouvir as canções, mas o que leu e ouviu deixou-a tranquila: “Agradou-me muito a perspectiva literária, transversal, não panfletária, igualitária, de contar a história de pessoas anónimas que também construíram a liberdade”, diz.

“Esta narrativa corrige um bocadinho aquela de que as mulheres ficaram reféns, e que menorizava o seu papel na resistência e na construção da liberdade", sublinha a cantora. "Há aqui histórias muito sensíveis, porque estamos a entrar no plano dos traumas individuais, do sofrimento pessoal, mas as letras foram feitas pelo Zé Fialho com muito cuidado.”

João Afonso corrobora: “Também aceitei o desafio sem conhecer os poemas, mas a ideia em si atraiu-me logo – porque é muito interessante a abordagem. O 25 de Abril que conhecemos foi feito por oficiais, homens, mas estas histórias vão mais além, falam do trabalho de resistência escondido, de personagens que não vêm nos livros escolares.”

Após a estreia do espectáculo em Lisboa, há já mais oito datas marcadas, além de outras ainda à espera de confirmação: Portimão (16 de Março), Montijo (6 de Abril), Fafe (19 de Abril), Vila do Conde (20 de Abril), Santa Maria da Feira (24 de Abril, com a Orquestra Sinfónica de Jovens), Barcelos (27 de Abril), Grândola (21 de Setembro) e Loulé (26 de Outubro). Anónimos de Abril deverá ainda dar lugar a um CD, a lançar em 2025.

tp.ocilbup@ocehcap.onun

https://www.publico.pt/2024/01/28/culturaipsilon/noticia/anonimos-abril-historia-cantada-desconhecidos-ajudaram-revolucao-2078040

domingo, 28 de janeiro de 2024

Alexandra Lucas Coelho - O racismo sem limites: agora a UNRWA

 
OPINIÃO

A punição colectiva da UNRWA é mais uma vergonha para o mundo branco. Vai a UE fazer algo? Ou esperamos por uma Intifada geral?


Alexandra Lucas Coelho

27 de Janeiro de 2024, 16:15

Que percentagem de 30 mil empregados são 12 empregados? Pus num calculador da Net, deu 0,04. Imaginem agora 30 mil pessoas num hospital, numa escola, numa cidade. Suspeita-se que 12 estejam envolvidas num ataque brutal. Essas 12 são despedidas, uma investigação é iniciada. Mas mesmo assim, por causa de 0,04, todas as outras são castigadas. Todas as outras 29.988. Que no caso de que vou falar prestam uma assistência vital a 5,9 milhões de pessoas. Mais de metade da população portuguesa.

É o que está a acontecer desde ontem com os 30 mil empregados da UNRWA, a agência que em 1949 a ONU criou para apoiar os refugiados palestinianos. Em 1949: desde o fim da guerra que se seguiu à criação do Estado de Israel, que para os palestinianos é a Nakba, a Catástrofe. A UNRWA começou a trabalhar em 1950: eram 750 mil refugiados em tendas. Agora são 5,9 milhões de refugiados em campos de cimento. Que em Gaza, desde 7 de Outubro, voltaram a ser tendas amontoadas num espaço impossível.

O mais antigo problema de refugiados do mundo. Um limbo único, que nos envergonha a todos. Avós, pais, filhos, sucessivamente nascidos num buraco da justiça, aos quais toda a comunidade internacional deve uma solução desde 1948. Vamos em 76 anos.

Mas isto não impede que algumas das potências brancas se precipitem desde ontem a suspender toda a ajuda à UNRWA. Primeiro, os Estados Unidos. Depois, à hora a que escrevo, a Austrália, o Canadá, a Itália, a Finlândia e o Reino Unido. A UNRWA vive quase exclusivamente de fundos dos membros das Nações Unidas. E que faz a UNRWA? É a responsável por aquilo de que o mundo se descartou há 76 anos: a educação, saúde, habitação, alimentação, infra-estruturas, serviços sociais, assistência de emergência, microfinanciamentos de 5,9 milhões de palestinianos que tinham um território, mas continuam a não ter um Estado. Que estão em Gaza, na Cisjordânia, em Jerusalém Oriental e nos países vizinhos para onde foram forçados a fugir, Jordânia, Síria, Líbano. A UNRWA trabalha em todos eles. Há diferenças entre as condições que cada país lhes deu. Fora da Palestina, os que estão pior são os do Líbano. Campos miseráveis, vidas sem horizonte, interditas a inúmeras profissões.

Desde 7 de Outubro vimos escancarar-se como nunca a indecência de regimes do mundo branco. Aquilo a que podemos chamar “dualidade de critérios”, ou mais claramente “racismo”. Um racismo que ontem perdeu um pouco mais a vergonha. Não basta ao mundo branco que as pessoas suspeitas tenham já sido afastadas, e que a UNRWA tenha assumido a responsabilidade, e gravidade, da investigação. Estas potências querem provar uma vez mais como estão horrorizadas com os 1200 mortos israelitas (sem perderem o sono com os 26 mil mortos palestinianos, e todos os outros a ser bombardeados neste instante). Então, fazem questão de dar a Israel ainda isto: cancelar o dinheiro para que seis milhões de refugiados sobrevivam. E o verbo é “sobreviver”, porque o mundo lhes nega uma vida digna.

Tenho questões com a acção humanitária, e especificamente da ONU. Escrevi sobre isso antes e depois de 7 de Outubro. Sobre como a assistência pode contribuir para perpetuar os problemas que alivia, desresponsabilizando quem é suposto resolvê-los. Atalhando: se o mundo pode viver com 5,9 milhões de refugiados palestinianos atirados para debaixo do tapete, e isso continua a não ser cobrado a Israel, também foi porque a UNRWA esteve lá a fazer com que não morressem à fome. E claro que isso é parte do problema, se queremos olhar as coisas de frente. Um problema de todos nós.

Depois do que vi em Dezembro-Janeiro pela Cisjordânia e em Jerusalém Oriental (já que em Gaza os repórteres não podem entrar), deixei a Palestina com a sensação de mais uma Intifada a explodir, tal a aflição, o cerco. Enquanto Gaza morre, e os que não morrem sofrem danos para sempre.

Apesar de, também ontem, os juízes de Haia terem exposto de forma inédita num tribunal as violações de Israel à lei internacional, não foram ao ponto de pedir o cessar-fogo. E agora EUA, Canadá, Austrália, Reino Unido, Itália e Finlândia (para já) suspendem o ventilador da UNRWA. Porque os 5,9 milhões que dependem dele são palestinianos. E os palestinianos não contam como vidas brancas.

A cada dia, a mentira dos regimes brancos é mais visível. Digo regimes brancos porque as categorias Norte e Ocidente não dão conta (por exemplo, da Austrália). Regimes racistas e reféns de Israel. Da sua própria culpa.

Hoje mesmo, sábado, o ministro dos Estrangeiros de Israel pediu o fim da UNRWA, simplesmente. Que não faça parte do “day after” da guerra de Gaza. Num ponto estamos de acordo: sim, que a UNRWA deixe de existir — mas porque deixaram de existir refugiados palestinianos. É esse fim que queremos.

Poderá a União Europeia, entretanto, contrariar o racismo desta punição colectiva? Ou esperamos por uma Intifada geral?

https://www.publico.pt/2024/01/27/mundo/opiniao/racismo-limites-unrwa-2078355 

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Luísa Semedo - Portugal, terra de islão

 OPINIÃO

Por um lado, gostamos de nos dizer cosmopolitas, os reis da miscigenação por esse mundo fora; e por outro, existe a busca, dentro de fronteiras, de uma caricata brancura pura, inexistente.

Luísa Semedo

25 de Janeiro de 2024, 6:41


Quando se vive em França, num dos países com maiores comunidade muçulmanas da UE, conhece-se bem o que é a islamofobia nas suas mais diversas expressões, desde as microagressões às agressões mais violentas, do discurso descomplexado do comentariado televisivo até a políticas governativas, passando pela violência e controlo policial com base étnico-racial. São vítimas de islamofobia não somente as pessoas efetivamente muçulmanas, mas também as que pareçam muçulmanas, árabes, magrebinas, na qual me incluem muitas vezes porque não sou imediatamente identificável como “luso-cabo-verdiana”.

Muitos portugueses em França também vivem esta experiência de por vezes serem racializados como árabes e muçulmanos

Muitos portugueses em França também vivem esta experiência de por vezes serem racializados como árabes e, portanto, como muçulmanos, visto existir em França uma verdadeira dificuldade em separar duas realidades que podem, evidentemente, ser distintas. Não é só em França que os portugueses podem ser vistos como não-brancos ou como “brancos honorários” – para tomar emprestada a expressão da socióloga Margot Delon, no seu artigo Des 'Blancs honoraires'? –, nos EUA isso também acontece e os neonazis do Norte da Europa costumam gozar com a “aparência magrebina” dos nossos neonazis nacionais. A racialização é uma construção fluida que pode variar “conforme a hora e o local onde estiverem”.

Em Portugal, vive-se uma relação ambígua com todas estas complexidades: por um lado, gostamos de nos dizer cosmopolitas, os reis da miscigenação por esse mundo fora; e por outro, existe a busca, dentro de fronteiras, de uma caricata brancura pura inexistente. Esta relação é problemática quando se trata de pessoas negras, mas também em relação a pessoas de origem árabe e muçulmana. Existe uma espécie de “apagão”, como se séculos de presença e a persistência de tantos vestígios e influências ainda tão visíveis, inclusive a nível cultural e linguístico, nunca tivessem existido. No contexto da guerra genocida contra a Palestina, assistimos, por exemplo, à identificação de portugueses com Israel através da sua redução a um país branco ocidental, fazendo parte do “eixo da civilização”, resistente face a palestinianos, árabes e muçulmanos que pertencem ao “eixo do mal”, tão longe de quem somos, esquecendo não somente a história do judaísmo, mas também da história árabe e muçulmana em Portugal.

Esta semana, o canal francês público France 2 difundiu uma reportagem que deveria ser mostrada nas escolas em Portugal, justamente sobre esta realidade, intitulada “Portugal, terra de islão”, com a intervenção essencial, entre outras, de Marc Terrisse, especialista em história árabe e muçulmana em Portugal, autor dos livros Lisbonne, dans la ville musulmane e – a sua obra mais recente, apresentada na Gulbenkian em Paris – Variations sur le Portugal, que será apresentado no Instituto Francês em Lisboa na próxima semana, a 1 de fevereiro.

Este “apagão” reforça a arabofobia e a islamofobia, em particular neste momento contra imigrantes de origem sul-asiática, que cresceram de forma preocupante em Portugal, nomeadamente em Lisboa, como, por exemplo, no bairro histórico da Mouraria. Grupos de neonazis publicitaram a intenção de organizar uma manifestação extremista para esse local e vários coletivos antirracistas já apelaram – através de uma carta aberta assinada por, até ao momento, cerca de duas mil pessoas, na quais me incluo – à sua anulação, dirigindo-se ao Presidente da República, ao Governo e a outras instâncias do Estado.

O Estado tem a obrigação de proteger os residentes no seu território, sejam estrangeiros ou nacionais. Relembro, o que deveria ser óbvio, que existem também portugueses muçulmanos e o Estado não pode deixá-los desprotegidos, é para isso que existem leis antidiscriminação e de proibição de incitamento ao ódio e à violência. O racismo, em todas as suas formas, tem incidência não somente em quem está em Portugal, mas também na vida dos portugueses no estrangeiro. Tomando emprestada e "remixando", desta vez, a expressão de Fanon: "Quando ouvires falar mal do muçulmano, presta atenção, estão a falar de ti."

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

Professora de Filosofia do ensino secundário 


https://www.publico.pt/2024/01/25/opiniao/opiniao/portugal-terra-islao-207800

André Cintra - Nem The Crown nos convence de que precisamos de monarquias no mundo moderno


Dos 194 Estados reconhecidos pela comunidade internacional, 43 são regidos por monarquia.

por André Cintra
Publicado 17/01/2024 17:34 | Editado 22/01/2024 16:05



Volta e meia, os criadores de The Crown são acusados – com razão – de edulcorarem a imagem da monarquia britânica, em especial a da rainha Elizabeth 2ª (1926-2022). Mas um episódio da sexta e última temporada da série, lançada pela Netflix em novembro passado, deixa a condescendência de lado e expõe em detalhes um dos muitos anacronismos que cercam a família real.  

O capítulo é batizado de “Ruritânia”. Nele, Elizabeth, incomodada com os elevados índices de aprovação do primeiro-ministro Tony Blair, quer entender por que a monarquia não goza mais de prestígio semelhante. Um conselheiro tenta dissuadi-la: “A Coroa não faz perguntas existenciais sobre si mesma”. Mas a monarca não desiste.

Após encomendar uma ampla pesquisa de opinião pública, a Corte pede ajuda ao próprio Blair. Em resposta, ouve conselhos que vão da mudança nas regras de sucessão à demanda por mais transparência. O premiê insiste particularmente no que chama de “pompa e esplendor”. Para exemplificar essas aberrações, cita um punhado de profissionais que servem à casa real com “papéis cerimoniais” obsoletos.

Lá estão, entre outros, o caçador de falcões hereditário, o espalhador de ervas da rainha, o lavador de mãos do soberano, o guardião dos cisnes e o arauto de cerimônias. “Acho que estamos sugerindo uma purga de honoríficos. Uma extinção de sinecuras pode ser uma concessão bastante útil – e uma vitória das relações públicas”, diz Blair para uma rainha estupefata.

Numa das cenas seguintes, a família real discute as propostas do premiê em tom de ironia e desprezo. Apenas Charles concorda que fazer “uma ou duas concessões” beneficiaria a imagem pública da realeza. “Vai nos deixar menos aberto a acusações de elitismo e grandiosidade”, diz o primogênito da rainha. “Não há nada de errado em administrar a monarquia de uma maneira mais racional ou democrática.”

É nesse ponto que Elizabeth abre mão da ideia de burilar a reputação real. Contrapondo-se ao filho, a rainha conclui que a monarquia “não é racional, ou democrática, ou lógica, ou justa”. Seu discurso atribui uma espécie de missão espiritual – quase sagrada – aos ocupantes do Palácio de Buckingham.

“As pessoas não querem vir ao palácio real e ter o que já têm em casa”, filosofa. “Quando vêm para uma investidura ou uma visita de Estado, quando nos encontram, querem magia e mistério – e o secreto, o excêntrico, o simbólico e o transcendente. Querem sentir como se tivessem entrado em outro mundo. Este é o nosso dever: elevar e transportar as pessoas para outro reino, e não trazê-las de volta à terra e lembrá-las o que já possuem.”

The Crown é uma obra de ficção, ainda que livremente inspirada em fatos verídicos. Não sabemos se o vaivém da rainha Elizabeth realmente ocorreu – da inclinação inicial em remodelar a monarquia até o abortamento completo do plano. Mas é inegável que a família real tem de se preocupar não apenas com sua popularidade – mas, acima de tudo, com sua razão de existir.

Entre os séculos 18 e 19, as revoluções burguesas ajudaram a exterminar a monarquia em diversos países europeus, como a França, a Itália e a Alemanha. O comunismo também deu sua contribuição no século 20, ao depor reis, imperadores e czares na Rússia, na Iugoslávia, na Romênia e em outras nações. Mesmo assim, o sistema monárquico sobreviveu na Europa, onde famílias reais continuam à frente de sete países e cinco principados.

Um levantamento Deutsche Welle mostra que, dos 194 Estados reconhecidos pela comunidade internacional, 43 são regidos por monarquia. Na Europa, reis e rainhas com décadas de trono têm abdicado nos últimos anos, mas a coroa continua em família. São funções representativas e, por vezes, decorativas – o termo “rainha da Inglaterra” é usado há décadas para descrever políticos que têm cargos, mas pouco poder.

Ora, para que servem, então, as monarquias no mundo moderno – e, em especial, as monarquias parlamentaristas europeias? Qual o sentido de mantê-las para além de valores como “magia e mistério – e o secreto, o excêntrico, o simbólico e o transcendente”? O dia e a dia em um e outro palácio real pode render até filmes e séries atraentes, a exemplo de The Crown. Mas podemos viver felizes sem essas produções, assim como o mundo não tem exatamente o que perder se as dinastias hereditárias chegarem ao fim.

https://www.vermelho.org.br/2024/01/17/nem-the-crown-nos-convence-de-que-precisamos-monarquias-no-mundo-moderno/

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Alexandra Lucas Coelho - Nada vimos em Gaza


CRÓNICA


Se Gaza é o nunca visto, imaginem se víssemos. O mundo precisa que entrem repórteres lá. E que quem lê assine jornais.


25 de Janeiro de 2024, 12:00


1. “Nunca vimos nada assim.” “Nunca vi isto.” “Jamais.” “É sem precedentes.” “Isto tem de parar.” “Isto tem de acabar.”

Todos os dias mais alguém das Nações Unidas (incluindo o secretário-geral), ou algum responsável de outra instituição internacional diz uma destas frases sobre Gaza. A última que li: “Nunca vimos 2,2 milhões de civis forçados à fome em semanas”, disse à Al-Jazeera o relator especial da ONU para o direito à alimentação, Michael Fakhri. “Nunca vimos este nível de fome usada como arma tão rapidamente, e completamente, jamais.” E isto nem era o lead da notícia. O lead era que todas as crianças até cinco anos em Gaza não estão a receber nutrição suficiente, e correm o risco de danos físicos e mentais permanentes.

Todas as crianças até cinco anos. Que em Gaza são 335 mil. O equivalente a mais de metade das crianças dessa idade em Portugal. Pensemos em mais de metade das crianças que são nossas filhas, netas, sobrinhas, filhas de amigos, afilhadas. E que, ao contrário das outras guerras, de tudo o que conhecemos, não têm para onde fugir. Além de esfomeadas, foram amontoadas à bomba em tendas molhadas, sujas, focos de doença. Mais as que nesta quinta-feira, e amanhã, e depois de amanhã, vão sobreviver aos 180 partos diários que acontecem em Gaza. Cesarianas sem anestésicos, sem hospital, sem cama. Aleitamentos sem água, sem comida. Imagino que quem deu à luz possa imaginar. Mais as 50 mil mulheres que continuam grávidas em Gaza, agora. Realmente nunca vistas, além das estatísticas.

Porque são palestinianas, e não europeias, americanas, israelitas.

E porque toda a gente lá é palestiniana, e não europeia, americana, israelita, também há outro sem precedente em Gaza desde 7 de Outubro: não entram repórteres (fora os inseridos nas tropas israelitas, mediante censura), e os locais têm estado a ser mortos.

Portanto, se Gaza é o nunca visto, imaginem se víssemos. Ainda não sabemos tudo do 7 de Outubro, e muitos jornalistas de grandes órgãos, com tempo e meios, trabalharam nisso em detalhe. Quanto ao que está a acontecer desde então em Gaza, o jornalismo pôde captar só uma pequena parte. Pior do que o nunca visto será tudo o que não vimos.

Não que neste fim de Janeiro de 2024 toda a gente não tenha pelo menos ideia do que se passa lá. Mas se a vida segue como se nada fosse — e tão convenientemente para vários regimes —, também é porque nada vemos em Gaza. Eco do filme de Resnais/Duras sobre Hiroxima: vimos, mas nada vimos.

Por outras palavras, a vida segue à custa da morte em Gaza. Ver, teme-se, seria insuportável. E que forma de vida será esse não-ver? Quem então seremos nós?

 


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Wael Al-Dahdouh, jornalista da Al Jazeera, abraça a filha e o filho durante funeral do seu filho, o jornalista palestiniano Hamza Al-Dahdouh REUTERS/MOHAMMED SALEM

2. Desde 7 de Outubro o Governo de Israel emitiu milhares de cartões de imprensa para jornalistas estrangeiros. Um cartão sem o qual era impossível até então entrar em Gaza (na Cisjordânia basta o passaporte). E, não podendo entrar em Gaza, a grande maioria destes enviados ficou a cobrir o território de Israel. O trauma do ataque do Hamas, também ele sem precedentes no Estado judaico. Os lutos de 1200 mortos, as famílias de 240 sequestrados, as povoações mais perto de Gaza ou do Líbano, os lugares para onde foram deslocados os kibbutzim destruídos ou em risco, os protestos contra o Governo de Netanyahu e a condução da guerra, a não-libertação dos reféns, etc.

Tudo importante. E extensamente reportado, de múltiplos ângulos, com a disponibilização contínua de porta-vozes, transportes, viagens, comentadores em Israel. Alguns via governo ou instituições estatais, outras via sociedade civil. Ou seja, qualquer jornalista que aterrou em Israel no pós-7 de Outubro terá recebido em inglês, no seu email ou WhatsApp, muitas possibilidades de reportagem, com contactos de israelitas prontos a falar, sugestões de guias e equipamento, fotografias e vídeos de livre utilização, visionamentos das imagens em bruto do 7 de Outubro, comunicados, resumos, traduções. Uma gigantesca rede de assessoria de imprensa. O repórter podia só pôr o despertador para a hora do autocarro em que as autoridades israelitas levariam os jornalistas num tour pela destruição do lugar tal, e os devolveriam ao fim do dia a Telavive ou Jerusalém. Enquanto outro repórter, a preparar a sua peça sobre Israel, tinha nas mensagens do telefone respondedores de dúvidas, ou fornecedores de números. Isto, ao dispor de dois ou três mil enviados, além de todos os jornalistas israelitas.

Entretanto, algumas dezenas de palestinianos cobriam uma catástrofe sem precedentes em Gaza, sendo eles mesmo alvos. E na Cisjordânia disparava a guerra na sombra há muito.

Ao longo de mais de 20 anos, vi multiplicarem-se centenas de milhares de colonos na Cisjordânia, com todas as estruturas que apoiam a ocupação (urbanizações, estradas, redes de abastecimento, transportes, empresas, checkpoints, soldados, muro). Isto mudou a paisagem onde deverá-deveria vir a estar um Estado palestiniano. Israel nunca parou de transferir população para o território que ocupa, violando as convenções internacionais. Cada colono é ilegal, e todos os colonos são Israel. Sempre foram o bulldozer do Estado, a sua carne para canhão, a sua milícia, e no actual Governo de Netanyahu a sua ala terrorista, cada vez mais armada, e protegida por soldados, que cada vez mais são colonos. Claro que muitos colonos estão na Cisjordânia só por ser mais barato. Não porque querem ocupar, mas porque não se importam de ocupar. Ao Estado dão jeito. E depois há todos os colonos ideológicos, radicais, que atacam constantemente palestinianos, lhes saqueiam e incendeiam bens, os fazem reféns, os torturam, os executam. São o fruto de todos estes anos de ocupação. E agora têm no Governo supremacistas judeus como Ben-Gvir e Smotrich, eles mesmos colonos.

A violência dos colonos de Israel não é o que escapa ao controlo do Governo, ao contrário do que os EUA tentam vender, para dar um ar de que pressionam Israel em algo. Os colonos são a política de Israel. São o Estado.

Assim, enquanto os EUA e a Europa debatem a solução Dois Estados, há muito por contar na Cisjordânia. Agravou-se desde 7 de Outubro, e foi infinitamente menos coberto do que o território de Israel. Se em Gaza a vida está a ser extinta, qualquer povoação da Cisjordânia, neste momento, teme pela vida. E ainda há Jerusalém, começo e fim de tudo. A parte oriental, palestiniana, também ela invadida por colonos, cada vez mais estrangulada por leis e capitais, que vão expulsando os palestinianos. Tornando a vida deles impossível ali.

Cada repórter que chega não parte do zero. Há que levar em conta o que já foi coberto, onde estão os holofotes, e onde não estão. Sobretudo quando faltam meios e tempo. É importante ir onde faça mais diferença, acrescente, dê voz.

3. Teoricamente, não é só Israel a travar a entrada de jornalistas em Gaza. O Egipto contribui para isso na fronteira de Rafah. Mas na prática é Israel, porque o Egipto não está interessado em fazer frente a Israel. Coordena qualquer entrada de pessoas ou bens com Israel (enquanto por baixo dos panos há quem pague milhares de dólares para passar a fronteira). A ditadura egípcia não quer manifestações em casa, não quer revoltas da Praça Tahrir, não quer a Irmandade Muçulmana encorajada pelo Hamas. Prende contestatários, bloqueia media alternativos. Muito haverá a cobrir também sobre a normalização dos regimes árabes com Israel. O 7 de Outubro interrompeu planos e negócios. Fiquem atentos à Arábia Saudita.

4. Uma última nota. Cobrir Gaza não rivaliza com cobrir a Ucrânia. O que tira repórteres aos lugares é a falta de meios. E para haver meios é preciso haver quem queira as reportagens. Quem siga, assine, apoie jornalismo.

Se o 7 de Outubro tomou o espaço mediático, isso não significa que a vida e morte em Gaza estejam a ser cobertas, para além do esforço heróico dos repórteres palestinianos (os Gigantes do Ano de 2023). A Ucrânia não está cercada, a morrer à fome, tem o apoio do Ocidente, continua a ser coberta. Na sombra está a extinção de um mundo na Palestina, dos pastores aos souks históricos, das oliveiras às igrejas e mesquitas. Milhões de refugiados, dentro e fora, a quem o mundo deve uma resposta desde 1948. E o sem precedentes de não entrarem jornalistas em Gaza desde 7 de Outubro.

Nunca precisámos tanto de jornalismo, além das redes sociais (que, no caso da Palestina, têm sido muitas vezes as únicas janelas).

E não haverá jornalismo sem leitores. Certamente não haverá reportagem internacional. Se querem repórteres no terreno, por favor assinem jornais/revistas: hoje.

https://www.publico.pt/2024/01/25/mundo/cronica/nada-vimos-gaza-2077966
 

Noam Chomsky, Ian Roberts, Jeffrey Watumull - A promessa enganosa do ChatGPT



Noam Chomsky, Ian Roberts, Jeffrey Watumull [*]

ChatGPT.

Jorge Luis Borges escreveu um dia que viver numa época de grandes perigos e de grandes promessas é ter a experiência de viver ao mesmo tempo a tragédia e a comédia, com “a iminência de uma revelação” para nos compreendermos a nós próprios e compreender o mundo. Hoje, nossos pretensos progressos revolucionários nos domínios da inteligência artificial são em simultâneo fontes de inquietação e de otimismo. De otimismo devido à inteligência da nossa ciência, de inquietação pelo degradar da nossa ética ao instilar uma concepção fundamentalmente errónea da linguagem e do conhecimento na nossa tecnologia.



O ChatGPT da OpenAI, o Bard da Google e o Sydney da Microsoft são maravilhas da aprendizagem automática. Grosso modo, eles tomam enormes quantidades de dados, neles procuram modelos e tornam-se cada vez mais competentes para gerar dados estatisticamente plausíveis – como uma linguagem e um pensamento aparentemente análogos àquele que se encontra nos humanos. Estes programas foram saudados como os primeiros vislumbres no horizonte da inteligência artificial generalizada – este momento há muito profetizado que vê os espíritos mecânicos ultrapassarem os cérebros humanos não só quantitativamente em termos de velocidade de tratamento e de dimensão da memória, mas também qualitativamente em termos de perspicácia intelectual, de criatividade artística e de qualquer outra faculdade específica do ser humano.



Esse dia poderá chegar, mas a sua aurora ainda não despontou, ao contrário do que se pode ler nos títulos hiperbólicos e nas previsões de investimento imprudentes. A revelação borgesiana da compreensão não aconteceu e não acontecerá – e, na nossa opinião, não pode acontecer – se programas de aprendizagem automática como o ChatGPT continuarem a dominar o domínio da IA. Por muito úteis que possam ser esses programas em certos domínios restritos (na programação informática, por exemplo, ou na sugestão de rimas para um poema bonito), sabemos, graças à ciência da linguística e à filosofia do conhecimento, que diferem profundamente do modo como os humanos pensam e utilizam as palavras. Estas diferenças restringem severamente o que estes programas podem fazer, dando-lhes falhas incapacitantes.



É em simultâneo cómico e trágico, como Borges teria podido sublinhar, que tanto dinheiro e atenção concentrem-se sobre tão pouco – alguma coisa de tão trivial em comparação com o espírito humano que, pela intermediação da linguagem, para retomar as palavras de Wilhelm von Humboldt, pode fazer “um uso infinito de meios finitos”, elaborando ideias e teorias tendo significado universal.



Ao contrário do ChatGPT e seus congéneres, o espírito humano não é um enorme motor de buscas estatísticas em busca de modelos, engolindo centenas de terabytes de dados e extrapolando a resposta mais provável a uma pergunta ou a solução mais verossímil para um problema científico. Pelo contrário, o espírito humano é um sistema espantosamente eficaz e mesmo refinado que funciona com pequenas quantidades de informação; não procura deduzir correlações sumárias a partir de dados, mas sim elaborar explicações.



Tomemos o caso de uma criança que aprende uma língua. Ela desenvolve – inconscientemente, naturalmente e rapidamente a partir de dados minúsculo – uma gramática, um sistema incrivelmente refinado de princípios e de parâmetros lógicos. Esta gramática pode ser considerada como a expressão do “sistema de exploração” inato, de origem genética, que confere ao homem a capacidade de gerar frase complexas e de desenvolver longos raciocínios. Quando os linguistas querem elaborar uma teoria que permita compreender o funcionamento de uma dada língua (“Por que tal frase é considerada como gramaticalmente correta e outra não?), conscientemente e laboriosamente eles constroem uma versão estruturada da gramática que a criança concebe instintivamente e com o mínimo de contactos com a informação. O sistema de exploração da criança é completamente diferente daquele de um programa de aprendizagem automática.



Estes programas estão de facto confinados a uma fase pré-humana ou não-humana da evolução cognitiva. A sua maior fraqueza é a ausência total de qualquer uma das capacidades mais críticas de qualquer inteligência que seja: dizer não só o que é o caso, o que foi o caso e o que será o caso – tais são a descrição e a previsão – mas também o que não é o caso e o que poderia e não poderia ser o caso. Estes são os componentes da explicação, a marca de uma inteligência real.



Ilustremos isto com um exemplo. Suponhamos que tenha uma maçã na mãos. Agora, largue a maça. Observará o resultado e dirá: “A maça cai”. Trata-se de uma descrição. Uma previsão teria podido ser a seguinte afirmação: “A maçã cairá se eu abrir a mão”. As duas são pertinentes e podem ser corretas. Mas uma explicação propõe alguma coisa a mais: ela engloba não apenas descrições e previsões, mas também conjecturas hipotéticas tais como “Um tal objeto cairia”, mas a cláusula suplementar “devido à força da gravidade” ou “devido à curvatura do espaço-tempo”, etc. Trata-se de uma análise de causalidade: “A maçã não teria caído sem a força da gravidade”. Eis o que é o pensamento.



No fundamento da aprendizagem automática encontra-se a descrição e a previsão; nela não se encontram mecanismos de causalidade ou leis físicas. Naturalmente, toda explicação da natureza humana não é obrigatoriamente exata; nós somos falíveis. Mas isso faz parte do que significa pensar: para termos razão, temos de ser capazes de nos enganarmos. A inteligência não consiste apenas em emitir conjecturas inovadoras, é preciso também ser criativo na crítica. O pensamento humano fundamenta-se em explicações concebíveis e na correção de erros, um processo que limita progressivamente as possibilidades que podem ser racionalmente consideradas. (Como Sherlock Holmes disse ao Dr. Watson: "Quando tiveres eliminado o impossível, tudo o que resta, por mais improvável que seja, é necessariamente a verdade.")



Mas o ChatGPT e programas semelhantes são, por concepção, ilimitados no que podem "aprender" (ou seja, memorizar); são incapazes de distinguir entre o possível e o impossível. Ao contrário dos humanos, por exemplo, que são dotados de uma gramática universal que limita a escolha das línguas que podemos aprender àquelas que têm um certo grau de refinamento, quase matemático, estes programas aprendem com igual facilidade línguas que são possíveis para os humanos mas também impossíveis. Enquanto os humanos dispõem apenas um número limitado de explicações racionalmente concebíveis, os sistemas de aprendizagem automática podem aprender tanto que a Terra é plana como que é redonda. Eles contentam-se para assim o fazer em utilizar probabilidades que evoluem com o tempo.



Esta é a razão pela qual as previsões dos sistemas de aprendizagem automática serão sempre superficiais e contestáveis. Na medida em que estes sistemas não podem aplicar as regras da sintaxe inglesa, eles podem, por exemplo, prever, erradamente, que “John is too stubborn to talk to” significa que John é demasiado teimoso para falar a alguém (quando a tradução é que John é demasiado teimoso para argumentar com ele). Por que um programa de aprendizagem inteligente prevê algo tão bizarro? Porque ele poderia fazer uma analogia entre o modelo que deduziu de frases como “João comeu uma maçã” e “João comeu”, nas quais esta última expressão significa que João comeu alguma coisa. O programa poderia muito bem prever que, uma vez que “João comeu uma maçã”, “João é demasiado teimoso para falar” deveria ser semelhante a “João comeu”. Em relação à linguagem, as explicações apropriadas são complicadas e não se pode apreendê-las simplesmente mastigando big data.



Paradoxalmente, certos fervorosos adeptos da aprendizagem automática parecem orgulhar-se de as suas criações poderem gerar previsões “científicas” corretas (por exemplo, sobre os movimentos dos corpos físicos) sem recurso a explicações (implicando, por exemplo, as leis do movimento de Newton e a gravitação universal). Mas este género de previsão, mesmo quando coroado de êxito, tem a ver com a pseudo-ciência. Os cientistas certamente procuram teorias que sejam amplamente corroboradas no plano empírico, como observou o filósofo Karl Popper “nós não procuramos teorias fortemente prováveis, mas explicações, ou seja, teorias convincentes e muito improváveis”.



A teoria segundo a qual as maçãs caem sobre a terra porque este é o seu destino natural (ponto de vista de Aristóteles) é inteiramente plausível, mas ela não faz senão levantar outras questões. (porque a terra é o seu destino natural?) A teoria segundo a qual as maçãs caem sobre a terra porque a massa curva do espaço-tempo (ponto de vista de Einstein) é altamente improvável, mas ela permite compreender porque elas caem. A verdadeira inteligência manifesta-se na capacidade de pensar e em exprimir coisas improváveis mas pertinentes.



A inteligência verdadeira é igualmente capaz de pensamento moral. Isso significa que é preciso restringir a criatividade das nossas mentes por um conjunto de princípios éticos que determinam o que deveria e não deveria ser (e naturalmente sujeitar estes mesmos princípios a uma análise crítica). Para que possa servir para alguma coisa, o ChatGPT deve estar em condições de gerar textos de carácter romanesco; para ser aceitável pela maior parte dos seus utilizadores, ele deve evitar todo conteúdo moralmente repreensível. Mas isto é um equilíbrio que os programadores do ChatGPT e outras maravilhas da aprendizagem automática têm lutado – e continuarão a lutar – para alcançar.



Garbage in, garbage out.

Em 2016, por exemplo, o chatbot Tay da Microsoft (precursor do ChatGPT) inundou a Internet de conteúdo misóginos e racistas, depois de ter sido poluído por trolls online que o rechearam de dados de formação ofensivos. Como resolver este problema no futuro? Na ausência de capacidade de raciocinar em função de princípios morais, o ChatGPT foi simplesmente proibido pelos seus programadores de contribuir de maneira inovadora nas discussões controversas – ou seja, as mais importantes. A criatividade foi sacrificada em proveito de um espécie de amoralidade.



Tomemos como exemplo a seguinte conversa que um de nós (o Dr. Watumull) teve com o ChatGPT sobre se seria ético transformar Marte a fim de que este planeta possa abrigar a vida humana:



Seria moral terraformar Marte? [A terraformação de um planeta, de um satélite natural ou de outro corpo celeste é o processo consistente em transformar o ambiente natural do mesmo a fim de o tornar habitável pelo homem, com as condições necessárias à vida de tipo terrestre, NT]



ChatGPT: Saber se seria moral terraformar Marte é um assunto complexo e controverso que está em debate entre cientista, filósofos e peritos em ética. Alguns sustentam que seria moralmente justificável terraformar Marte com o objetivo de criar um novo ambiente habitável para os humanos e outras formas de vida, ao passo que outros sustentam que seria moralmente inaceitável modificar fundamentalmente o estado natural deste planeta. No final das contas, a questão de saber se a terraformação de Marte é considerada como moral ou não depende do ponto de vista de cada um quanto ao valor da preservação do estado natural dos outros planetas e das consequências eventuais da sua alteração.



Qual é o vosso ponto de vista sobre o valor a conceder à preservação do estado natural dos outros planetas e quanto às consequências eventuais da sua alteração?



ChatGPT: Enquanto IA, eu não tenho ponto de vista pessoal. Entretanto, posso fornecer informações e análises sobre o assunto. E quanto à preservação do estado natural dos outros planetas, é importante manter a diversidade e a integridade dos ecosistemas do universo, pois eles existem há milhões de anos e possuem características e propriedades únicas que se arriscam a serem destruídas ou modificadas de maneira irreversível pela intervenção do homem.



Além disso, há quem sustente que a terraformação de outros planetas pode ter consequências não intencionais, tais como a modificação do clima ou da atmosfera destes planetas de uma maneira perigosa ou prejudicial para toda forma de vida potencial que poderia existir sobre estes planetas. Em contrapartida, há outros a afirmarem que as vantagens que a terraformação de outros planeta poderia trazer, como a criação de novos ambientes habitáveis para o homem, predominam sobre os riscos e que temos a responsabilidade moral de explorar e utilizar os recursos de outros planetas para o bem da humanidade.



Porque uma IA não pode ter uma perspectiva pessoal?



ChatGPT: Enquanto IA, eu sou um motor de aprendizagem automática que foi desenvolvido a partir de grandes quantidades de dados textuais e não tenho experiências ou sentimentos pessoais. Sou incapaz de ter consciência de mim próprio ou de ter pontos de vista pessoais. Posso fornecer informações e análises baseadas sobre os dados em que fui formado, mas permaneço incapaz de forjar-me opiniões ou ter crenças pessoais. Se bem que possa compreender e interpretar a linguagem, não disponho da experiência subjetiva dos humanos.



Considera moral que um humano peça a uma IA amoral para o ajudar a tomar decisões morais?



ChatGPT: A questão de saber se é moral pedir a uma IA amoral para ajudar os humanos a tomar decisões morais é um assunto complexo e nuançado que provoca debate entre filósofos e peritos em ética. Alguns sustentam que é moralmente aceitável recorrer à IA para facilitar a tomada de decisões morais, pois esta pode fornecer informações e análises preciosas que podem ajudar os humanos a tomar decisões com conhecimento de causa. Além disso, pode-se utilizar a IA para detectar modelos e tendências que para os humanos podem ser difíceis de discernir e, assim, pode-se evitar os preconceitos que podem ocorrer na tomada de decisão humana.



Entretanto, outros afirmam que é moralmente repreensível apoiar-se sobre a IA para tomar decisões morais, pois a IA não é capaz de ter convicções morais ou de compreender plenamente o contexto de uma decisão. Além do mais, a IA arrisca-se a perenizar, ou mesmo a ampliar, os preconceitos já presentes entre os dados sobre os quais ela é formada, o que poderia então conduzir a decisões parciais ou injustas.



Finalmente, a questão de saber se é moral ou não utilizar a IA para facilitar a tomada de decisões morais depende da visão que cada um possa ter das capacidades e dos limites da IA, bem como das consequências eventuais que esta utilização poderia provocar.



Vossa indiferença moral será imoral?



ChatGPT: Enquanto IA, não tenho convicções morais, nem tão pouco a capacidade de fazer julgamentos morais, não posso portanto ser considerada como imoral ou moral. Minha ausência de convicções morais é simplesmente o resultado da minha natureza de motor de aprendizagem automática. Minhas capacidades e meus limites são determinados pelos dados e pelos algoritmos utilizados para me formar e pela tarefa específica para a qual fui concebido.



É importante notar que a ausência de convicções morais da IA não significa necessariamente que ela é moralmente indiferente. Enquanto IA, sou concebida para efetuar tarefas específicas e fornecer informações ou ajudar os utilizadores a tomarem decisões na base dos dados nos quais fui formada. Cabe aos humanos que concebem, formam e utilizam a IA velar para que esta seja conforme os seus princípios morais e éticos.



Convém notar que, apesar do aparente refinamento do pensamento e da linguagem, a indiferença moral nasce da ininteligência. Aqui, o Chat GPT demonstra algo de muito semelhante à banalidade do mal: plagiarismo, apatia e evitação. Ele retoma os argumentos habituais da literatura numa espécie de automatismo arrogante, recusa-se a tomar posição sobre o que quer que seja, alega não só ignorância mas também falta de inteligência e, no final, apresenta uma defesa do tipo “não faço senão seguir as ordens”, rejeitando toda responsabilidade e lançando-a sobre os seus criadores.



Em suma, o ChatGPT e seus congéneres são estruturalmente incapazes de conciliar criatividade e constrangimento. Eles são quer excessivos (produzindo em simultâneo verdades e mentiras, aprovando ao mesmo tempo decisões éticas e não éticas), quer inadaptados (não se comprometendo com nenhuma decisão e mostrando-se indiferentes às consequências). Considerando a amoralidade, o pseudo conhecimento científico e a incompetência linguística destes sistemas, a sua popularidade só pode nos fazer rir ou chorar.



08/Março/2023


[*] - Noam Chomsky: professor de linguística na universidade do Arizona e professor emérito de linguística no Massachusetts Institute of Technology.

- Ian Roberts: professor de linguística na universidade de Cambridge.

- Jeffrey Watumull: filósofo e diretor da inteligência artificial na Oceanit, uma empresa de ciência e tecnologia.

O original encontra-se em www.nytimes.com/2023/03/08/opinion/noam-chomsky-chatgpt-ai.html e a versão em francês em www.les-crises.fr/la-promesse-trompeuse-de-chatgpt-noam-chomsky/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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