sábado, 31 de dezembro de 2022

Carlos Coutinho - Que alívio!



* Carlos Coutinho - 

Que alívio!
   APENAS hoje fiquei a saber da frase mais importante que Joe Biden proferiu na conferência de imprensa conjunta com Zelensky na Casa Branca. Rejeitando o insistente pedido do seu homólogo ucraniano para a cedência de armas mais sofisticadas, Biden considerou que entregar esse armamento à Ucrânia teria como consequência “desintegrar a NATO, desmembrar a Europa e o resto do mundo”. 

   A desintegração da Europa e, sobretudo da NATO, não me incomodaria nada, mas o resto da afirmação do Presidente norte-americano deixou-me, pela primeira vez, algo confortado. Isto, apesar de ficar também a saber que, desde janeiro, Washington já entregou a Zelensky 47,8 mil milhões de euros, dos quais 23 mil milhões em meios militares, tendo também o Senado acabado de aprovar mais um pacote de 47 mil milhões para 2023.

   Assim como também só hoje fiquei a saber que Israel matou na Palestina mais de 220 cidadãos locais, feriu 9 mil e prendeu 6 500, segundo o chefe o primeiro-ministro palestiniano, Mohammad Shtayyeh que deu estes números sinistros, em Ramalah, na terça-feira, numa conferência de imprensa, acrescentado que mais de 832 edifícios e e infraestruturas foram demolidos e 13 mil oliveiras arrancadas.

   Claro que estes horrores de marca israelita já não surpreendem ninguém. Nem mesmo o nosso catolicíssimo António Guterres que usa palas cautelosamente norte-americanas para só ver o que se passa na Ucrânia.

   Mas da questão ucraniana também podem sair boas notícias que vão passando despercebidas na nossa Comunicação Social, sintonizada que está, ou queira mostrar-se, com o pensamento de Ana Gomes e com o que julga agradar à NATO. Por essas e por outras, aliás, é que a Redação da RTP, seguindo o exemplo da “Time” e do “Jornal de Notícias”, elegeu ontem Volodimir Zelensky “Personalidade do Ano”, como teria elegido o cego que conduz outros cegos, se ainda vivêssemos no tempo de Pieter Bruegel o Velho.

   À tarde
   NASCEU em 1401 em Cusa, cidade alemã com o nome atual de Bernkastel-Kues que fica perto do rio Mosela, cerca de 130 quilómetros a sul de Bona, Alemanha. Chamaram ao menino Nicolau Krebs ou Nicolau Chrypffs, mas acabou por ficar como Nicolau de Cusa (Kues), porque aí um asilo para idosos, edifício que abriga hoje a Biblioteca de Cusa, com mais de 310 manuscritos.

   Quando faleceu em Todi, Itália, no dia 11 de agosto de 1464, já era cardeal, mas pouco ortodoxo. Ficou consagrado como um dos primeiros filósofos do humanismo renascentista e autor do famoso “Da Douta Ignorância”, publicado em 1440 e agora posto em português pela Gulbenkian, com um extenso prefácio analítico de João Maria André que também traduziu a obra. 

   Nicolau era filho de um barqueiro, João Cryfts, e de Catarina Roemer. Pescava em todas as águas, pelo que tem sido considerado o pai da filosofia alemã, aquela cordilheira onde se erguem cumes tão altos como Kant, Hegel, Marx, Engels e, até um tal Friedrich Nietzsche que chegou a falar em nome de Zaratustra. 

   Repare-se nestas delícias que nos ajudam esta noite a encerrar o macabro ano de 2022:

"LIVRO TERCEIRO
"CAPÍTULO I

"189 Os princípios individuantes não podem concertar-se em nenhum indivíduo numa proporção harmónica tal como num outro indivíduo, e, assim, qualquer um é por si um só e perfeito do modo que pode. E ainda que em alguma espécie, como a humana, num dado tempo, se encontrem alguns indivíduos mais perfeitos e mais excelentes que outros segundo certas (qualidades), como Salomão que superava os outros em sabedoria, Absalão em beleza, Sansão em força, e ainda aqueles que mais superam os restantes no aspeto intelectual mereçam ser honrados mais que os outros, todavia, porque a diversidade de opiniões torna diversos os juízos de comparação de a acordo com a diversidade de religiões, de seitas e de regiões, de modo que o que é louvável segundo uma é vituperável segundo outra e há dispersos pelo mundo (homens) que desconhecemos, não sabemos, por isso, quem é mais excelente de entre os outros uma vez que nem um de todos podemos chegar a conhecer perfeitamente."

"CAPITULO VI
"215 (…) não há duvida de que o homem existe (dotado de) sentidos, de intelecto e de uma razão que está no meio de ambos e os une. Mas a ordem (das coisas) faz com que os sentidos estejam submetidos à razão e a razão ao intelecto não é do âmbito do tempo e do mundo mas desligado deles; os sentidos são do âmbito do mundo estão e estão sujeitos aos movimentos no tempo; a razão está como que no horizonte relativamente ao intelecto, mas no zénite relativamente aos sentidos, de modo que nela coincidem as coisas que estão no tempo e acima do tempo."

   Talvez por isso, o papa alemão, o emérito João Paulo II, tenha escolhido os últimos minutos de 2022 para voar para o Paraíso em que jurava acreditar, depois de ter sido o cardeal da ortodoxia contrarreformista (Dicastério da Doutrina da Fé), mantendo o corte com a dinastia pontifícia italiana iniciado por um polaco que inventou e financiou um sindicato, restaurando com apoio da NATO capitalismo mais abjeto que a Europa já conheceu e que um sucessor argentino está agora a tentar limar, adaptando-o à modernidade democrática e à moralidade possível.

   Na sua juventude, o agora falecido Bento XVI ingressou na Juventude Hitleriana e, segundo o seu biógrafo John Allen Jr. combateu no exército alemão, mas com 16 anos desertou do serviço militar. 

   Ratzingker estudou filosofia e teologia, em Munique e Freising e ensinou em diversas universidades. Em março de 1977, foi nomeado arcebispo de Munique e cardeal três meses depois. 

   Era da maior confiança de Karol Józef Wojtyła que combateu do lado oposto, mas talvez se tenha arrependido, a ponto de ser entronizado em 2014 como João Paulo II. Foi a natural prenda que então se dava a um padre, bispo e finalmente cardeal, que abriu a porta ao neofascismo da família Kasinski que ainda não desistiu de abocanhar o Norte da Ucrânia, dado ter sido uma região da Polónia até fim da Segunda Guerra Mundial com capital em Lviv, então Cracóvia. 

   Em 1967, ele foi importante na formulação da encíclica 'Humanae Vitae', que proíbe a eutanásia e interrupção voluntária da gravidez, questão novamente na berra, mesmo em Portugal

   Inventou também as jornadas mundiais da juventude e cheira-me que há certas similitudes entre o Solidarnocs, que instrumentalizou, e o nosso STOP, aquele sindicato de professores que está já a mexer muito por aí.

2022 12 31 

Carlos Matos Gomes - 2022 à la minute — On my own

Carlos Matos Gomes

Dec 31 2022

Gosto mais da frase em inglês — on my own — do que em português: só comigo.

A minha intenção ao escrever este texto sobre o ano de 2022 é a mesma dos solitários que fazem desenhos na areia: entreterem-se enquanto falam consigo próprios. Depois, quem passa olha, se lhe apetecer acrescenta, apaga, ou distorce. E segue o seu caminho. A nova maré levará a obra. O desenhador irá olhar o vazio para lá do horizonte.

Bom ano de 2023.

Personalidades portuguesas:

Marta Temido, a sua equipa e o SNS. A frágil ministra, juntamente com o seu sereno secretário de Estado, enfrentaram o mais poderoso e desapiedado gangue do planeta: o dos industriais e comerciantes da saúde. Os Serviços Nacionais de Saúde são uma ofensa inadmissível para os mercadores dos medicamentos, dos hospitais e clinicas, dos laboratórios e fábricas de equipamentos. Marta Temido e o seu secretário, mais da Diretora Geral da Saúde enfrentaram-nos. Se tivessem a mais pequena sombra no seu currículo, nas suas vidas privadas estariam entregues aos bichos, aos liberais! E nós, os cidadãos, com eles.

Os “uberistas”, sejam os condutores de automóveis sejam os distribuidores de comida às costas que respondem às app e aos Tm. São os novos escravos, sem esquecer os importados para os trabalhos agrícolas. Eles antecipam o futuro das sociedades ditas desenvolvidas, e neoliberais, a par dos “colaboradores” em teletrabalho e dos robôs.

Personalidades Internacionais:

Mohamedou Ould Slahi, prisioneiro dos Estados Unidos no campo de concentração de Guantanamo, que faz 20 anos. Passou 14 anos atrás das grades. Foi torturado durante 70 dias e interrogado 18 horas por dia durante três anos. Morava na Alemanha antes de ser preso, era suspeito de ser membro da rede Al Qaeda e de ter um papel central nos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, apesar de não haver nenhuma prova contra ele. Jamais foi indiciado ou condenado durante os 14 anos que passou em Guantánamo. O mauritano, agora com 50 anos, acabou sendo libertado, mas jamais foi compensado após sua parte de sua vida ter sido roubada.

Mulheres do Irão, do Afeganistão, da Arábia. A indignação com a morte de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos que morreu após ser detida pela política de moralidade do Irão, supostamente por usar seu hijab de forma inadequada, desencadeou protestos em todo o país que já duram semanas. Mas também as mulheres que têm de vender os seus filhos no Afeganistão, para sobreviver, as crianças forçadas ao casamento, as mulheres que têm de ser inexistentes por os homens inventaram um Deus que odeia mulheres e vivem num mundo os homens odeiam as mães e as irmãs.

Acontecimentos Internacionais do Ano:

A invasão russa da Ucrânia que materializou a rutura entre a Europa ocidental e a Rússia e, por arrastamento, de boa parte do mundo que não aceita um mundo sujeito aos Estados Unidos. Entrámos numa nova era e a Europa passou para a categoria dos serventes.

- A saga da família Windsor — A aristocrática família Windsor, com estabelecimento principal em Londres, proporcionou uma fotonovela permanente e expressão mundial com mortes, funerais, boatos, traições, assédios, amuos, racismo que competiu com os vários Big Brother plebeus. Reis e rainhas, príncipes e princesas, duquesas e marquesas deram o corpo ao manifesto para que nunca ao povo faltasse um motivo de espanto. As televisões agradeceram este maná, assim como os vendedores de quinquilharia e souvenirs. Artistas de primeira. Uns reinadios. Mas vendem e vendem-se bem, vivos ou mortos!

- A pedofilia religiosa: O assunto da pedofilia é sério sob todos os em pontos de vista. As igrejas e as religiões (e a pedofilia não será certamente exclusivo da Igreja Católica) não têm tabus na exploração dos crentes e dos que lhes possam servir de matéria a dominar, a violentar. As religiões são um crime continuado há milénios. Os deuses são feitos à imagem dos piores dos homens. A Igreja Católica do século XXI tem a seu favor relativamente às outras o facto de se expor. No Islão a pedofilia é oficial e abençoada pelas leis do profeta, com o casamento de crianças.

- O fanatismo islâmico: Mata à vista dos cabelos das mulheres, do seu pescoço, do tornozelo, da inteligência. Mata para impedir a humanidade e dignidade da mulher, mata pela cobardia dos homens perante as mulheres. Seitas de assassinos no Irão e nas Arábias são os nossos melhores aliados porque vendem petróleo em troca de mulheres.

Acontecimento Nacional do Ano:

- A placidez nacional perante o mundo. Resistimos com disciplina à pandemia, votámos uma maioria para não termos surpresas, fazemos julgamentos na praça pública para não incomodarmos juízes e procuradores, acreditamos que vai ficar tudo bem, apesar das breaknews das televisões e das suas campanhas de bombardeamento a propósito de desgraças cíclicas previsíveis, incêndios e cheias, gripes e entupimentos nas urgências. O Zé Povinho, totem nacional criado por Bordalo Pinheiro, tudo aguenta e quando bufa fá-lo sem grande alarido nem convicção. O presidente da Republica representa o pensamento nacional melhor do que os condutores de táxi e os barbeiros.

Acontecimentos inculturais do ano:

Nacional:

A saga do Big Brother, um verdadeiro teletrabalho de Filosofia de Alcova representado por uns rufias e umas gajas despachadas.

Os concertos sem dó dos programas das TV nas tardes de Domingo, com domingos e dominguinhas e acompanhamento de modelos atualizados das netas das pin-up do Vilhena, ao vivo e a cores. Espetáculos multimédia, alguns de autocarro (uma reativação das excursões da FNAT!). E têm audiências!

As Claques , a grande alteração do ano foi a passagem das claques do futebol para as claques das televisões. A mesma violência do “Só os nossos são bons!” Quem não acredita em nós é do inimigo. Onde havia superdragões, no name boys, lagartos e torcida leonina, há agora CNN de Queluz, SIC de Paço de Arcos, RTP de Olivais. Onde havia coiratos e cervejas há água de marca branca, mas mantem-se a gritaria e a injúria ao pensar.

Internacional: O campeonato do mundo de futebol no Qatar

Perguntas internacionais do ano:

- Cristina Lagarde percebe alguma coisa de finanças?

- Os aiatolas do Irão, os xerifes do islamismo, os chefes da Alqaeda, os talibans têm mãe e irmãs? Nasceram paridos por quem? São casados com quem? São tarados?

- Onde espera o Zelenski gozar a reforma? Miami? Mónaco?

- De quem foi a ideia de criar um tribunal para julgar o governo russo, o que implica mandar um oficial de justiça a Moscovo trazer o Putin, os seus ministros e generais para serem julgado por crimes de guerra no tribunal internacional dos estados que bombardearam a Sérvia e invadiram o Iraque?

- Existe algum espaço que o Elon Musk não explore?

- O sucessor do Trump será menos grotesco que o original?

- Quem é o chanceler da Alemanha, dado que a antiga germania está no estado sede vacante, sem papa, bispo, cura, sacristão?

- Os Verdes e Pacifistas alemães já estão maduros para aderirem ao nuclear e para negociar armamento?

. A descoberta da produção rentável de energia através da fusão nuclear é verdadeira, ou apenas uma mentira piedosa do governo americano para mascarar a falta de alternativas ao petróleo e ao gás da Rússia?

- O Batalhão do Mónaco, dos milionários patriotas ucranianos aliados de Zelenski e na frente de batalha do principado, deixou de comer caviar russo?

- Os satélites espiões e as armadas da NATO ainda não descobriram onde os petroleiros indianos passam o petróleo russo para os petroleiros com bandeira do Panamá? E também não descobriram nenhuma atividade estranha junto aos gasodutos Nordstream que explodiram nas águas territoriais suecas?

- O Iémen ainda existe? E a Líbia?

- Há algum correspondente de guerra das televisões na Palestina?

- Em que número vai o pacote de sanções à Rússia? Quando sairá um novo?

- Dado que o empresário é o mesmo, a guerra no Kosovo está a aguardar que a da Ucrânia arrefeça para acender as fornalhas, ou pode começar desde já?

Perguntas nacionais do ano:

- Onde será o novo aeroporto?

- Haverá novo aeroporto?

- Que acordo ortográfico vigora nas legendas das televisões?

Pergunta eterna:

Até quando aguentará o Muro das Lamentações as cabeçadas que lhe dão?

Vencedores do ano:

O Qatar (dos emires de camisa de dormir e dos camelos que lá foram ver a bola), que conseguiu organizar um campeonato do mundo de futebol num deserto, num país onde não se joga futebol e onde não cresce relva. Prova de que não existem impossíveis: desde que se pague.

Os Estados Unidos, que conseguiram separar a Europa Ocidental da Rússia e integrá-la como estado vassalo.

- As indústrias da saúde, dos armamentos e do petróleo — que tiveram um ano de belos lucros e que, com a derrota da Europa na guerra na Ucrânia, e o consequente fim do estado social, terão ainda melhores perspetivas com a total liberalização dos serviços médicos e sanitários.

- Elon Musk: que ganhou milhões do governo dos Estados Unidos (ele é um liberal — abaixo o Estado) a colocar satélites (até aos 12.500) para transmissão de dados e condução de operações militares por conta dos Estados Unidos; comprou o Twiter para transmitir a sua visão do mundo da selva, do cada um por si e ele a receber de todos, despediu os colaboradores e ainda levou um português a dar uma voltinha de foguetão num parque de diversões para adultos que querem ser famosos.

A igreja IURD e o seu bispo milionário, que batizaram Bolsonaro e transfiguraram um ser cavernícola numa espécie de humanoide, conseguindo a proeza de o fazer eleger sem ele falar e de o manter disfarçado de Presidente do Brasil durante toda uma legislatura! Não admira, pois, que nas ditas igrejas evangélicas os paralíticos andem, os cegos vejam e os mudos cantem!

- O Presidente da Coreia do Norte, que escapou mais um ano ao destino de Saddam Hussein e de Khadafi lançando uns foguetes para o Mar do Japão, avisando que podem transportar as armas de destruição maciça que os EUA não descobriram no Iraque e que, ao contrário da Líbia, não tem petróleo no território, mas que para umas doses de urânio ainda se arranjam alguns trocos.

Recep Erdogan, presidente da Turquia, que se marimbou para as sanções americanas à Rússia, manteve o diálogo com todos os atores da região, recebeu os curdos atados de pés e mãos dos países nórdicos a troco de os deixar entrar na NATO, que ele utiliza para fazer negócios, arbitrou o trânsito de navios de cereais no Mar Negro e parece ser o único interlocutor sensato e com acesso a todas as partes neste conflito. Chapeau!

O Grande Vencedor do Ano:

- Xi Jiping! Quase sem se mexer, sorrindo, o presidente da China, Xi Jiping, tornou-se o homem mais poderoso do planeta. Ele é o chefe do novo polo mundial que se confronta com os Estados Unidos. O polo encabeçado pela China inclui a Rússia e a Índia, os restantes Brics, caso do Brasil e de alguns dos principais países africanos. Um polo com um mínimo de 3 potências nucleares, que será determinante no Pacífico e no Índico, que criará uma nova moeda de troca mundial, que integra a nação com maior superfície territorial no planeta, a Rússia, e as duas mais populosas nações, a Índia e a China. Uma China que determinará a ação política de potências como o Japão e a Coreia.

Fantasma do ano:

- Liz Truss — a speedy Gonzalez do governo inglês (40 dias no 10 de Downing Stree!). O Reino Unido na decadência até da imagem de respeitabilidade, dirigido por aventureiros como ela, como Farage e Boris Johnson.

Ideia luminosa

- Criptomoeda — Bitcoin e correlativos. Na área da banca, finança e outros mistérios, o vencedor será Luiz Capuci, americano de 44 anos, residente na Florida, acusado dos crimes de “conspiração para cometer fraude eletrónica, fraude de valores mobiliários e lavagem de dinheiro a nível internacional”. Capuci enganou os investidores sobre o programa de criação e investimento de criptomoeda da sua empresa, que oferecia investimentos através da compra de “pacotes de mineração”. Há quem acredite e invista em pacotes de mineração!

Música do Ano:

- Tempestade perfeita e Sinfonia imperfeita pelo trio Ursula Van Der Leyen, Borrel e Mitchel, acompanhados à metralhadora por Jens Stoltenberg com orquestra da NATO. Destroçaram a Europa a toques de finados.

Vergonha Internacional do ano:

- A continuação da prisão de Julian Assange!

Zômbis internacionais do ano:

Trump e Bolsonaro — ainda não sabem que deixaram de existir.

Zômbis nacionais do ano:

- Maria João Avilez e Marques Mendes — também não existem, mas gralham.

Palavras do ano:

- Drone! Pacote! Bazuca! AZOV! Dívida! Gás e eletricidade! (E porque não: à rasca!)

Perplexidades do ano (vindas do anterior):

- As inadiáveis consequências das alterações climáticas afinal podem esperar em pousio até ao final da guerra na Ucrânia?

- Os carros elétricos poluem mais do que os de motores convencionais? O que fazer com as baterias usadas? Para quando aviões elétricos, paquetes de cruzeiro elétricos? Para quando uma guerra ecológica com foguetões intercontinentais elétricos?

- Israel tem bombas atómicas no Médio Oriente, mas o perigo são as que o Irão não tem?

- Os palestinianos são seres humanos, ou alvos para os israelitas treinarem?

- Moscovo e São Petersburgo são cidades asiáticas? Sidney é europeia?

- O COVID foi inventado por um chinês, mas porque vão os lucros das vacinas para as multinacionais americanas e europeias!

- Qual a diferença entre um oligarca russo e um multimilionário americano?

- Como foram substituídos os trabalhadores pelos colaboradores na civilização do Ocidente neoliberal e porque ficaram os emigrantes de fora da conversão?

- Quantas voltas dará Marcelo Rebelo de Sousa ao mundo até ao final do mandato?

- Onde estava C Costa, o governador do Banco de Portugal, enquanto o BES foi o Dono Disto Tudo?

- Além do grito: Vergonha! Qual é o programa político dos seguidores do esbracejante Ventura, depois de, segundo o DN de 27 de Agosto (na distração das férias) de ter “eclipsado” a destruição da escola pública e do SNS das suas bases programáticas?

- O que é a clarificação inversa que o chefe do Chega invoca para propor a lei da selva?

- Além de receberem mensagens do exterior e fazerem de porta-vozes, de irem a reuniões no estrangeiro, qual é a atividade dos ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros?

- A ASAE já sabe quantos gramas têm os novos quilos dos produtos que mantiveram os preços nas embalagens?

- Quando saberemos se somos visitados por extraterrestres?

Frustrado do ano (nacional):

- O bastonário da Ordem dos Médicos, que ainda não conseguiu extinguir o Serviço Nacional de Saúde!

Frustrados do ano (internacional):

- Os acionistas da Nord Stream, a empresa de transporte de gás cujos pipelines foram sabotados por sapadores amigos. A Nord Stream é uma rede de gasodutos subaquáticos através do Mar Báltico que deviam fornecer gás natural diretamente para o sistema europeu de transporte a partir das vastas reservas de gás da Rússia. Esta infraestrutura de energia de última geração financiada pelo setor privado teria uma vida útil de pelo menos 50 anos forneceria gás aos seus parceiros europeus, contribuindo assim para a segurança energética da Europa nas próximas décadas. O consórcio de gasodutos Nord Stream AG tinha sede em Zug, na Suíça, era uma joint venture internacional para o projeto, construção e operação dos novos gasodutos offshore. A russa Gazprom detinha uma participação de 51% na joint venture; as empresas alemãs BASF e PEG Infrastruktur AG detinham 15,5 por cento cada; a empresa de gás holandesa Gasunie e a francesa Engie 9% cada. Os 5 acionistas principais detinham 30% do capital de 7,4 mil milhões de euros e 70% tinha sido colocados no mercado de capitais. Um investimento a longo prazo com dividendos assegurados. De repente tudo explodiu. A 27 de Setembro de 2022 várias explosões subaquáticas danificaram o gasoduto de forma dificilmente reparável. Nenhum autor desta sofisticada sabotagem no mar territorial da Suécia se assumiu. Os dois gasodutos de NordStream tinham capacidade para fornecer 27,5 mil milhões de metros cúbicos de gás por ano, isto é 12% das importações de gás da União Europeia. Foi tudo por água abaixo (ou acima), mas os desiludidos que esperavam ganhar uns milhões de lucros em dividendos mantêm-se em silêncio cobarde.

Moda 2022

- Elas: Jaquetas de libelinha azul sobre T-shirt amarela à Úrsula Van Der Leyen

- Eles: Camuflado diplomático à Borrel, ou T-shirt verde azeitona à Zelenski

- Cartões de crédito platina (em alternativa conta no Dubai, no Qatar, nas Ilhas Caimão, ou no Estado de Delaware)

Destino turístico do ano

- Kiev — que substituiu Kabul, que tinha substituído Belgrado, que sucedera a Bagdad, ou ao contrário.

Desaparecidos do ano

- Guaidó, o presidente virtual da Venezuela (Washington não paga a inúteis)

- Carles Puigdemont o libertador da Catalunha, em parte incerta pela Europa

Nigel Farage — o patrocinador do Brexit. Desaparecido depois do êxito da campanha.

Ressuscitado do ano:

- Sílvio Berlusconi! Apareceu, recauchutado,na segunda fila de um governo italiano liderado por uma espampanante fascista. Regressam as festas bunga-bunga. Que tipo de Viagra tomará?

Imortal do ano:

Pinto da Costa

Funerais e velórios:

- Da rainha Isabel de Inglaterra e de Eduardo dos Santos de Angola — um grande espetáculo de sofreguidão com abutres e hienas sobre dois cadáveres!

Produtos do ano (segundo o sales manager Rogeiro):

- Gás liquefeito americano (para evitar a dependência energética da Europa!); HMRS (um género de lançadores de fogo à distância)

- Canhão Caeser — 40 quilómetros de viagem sem reclamações

- Míssil Patriot

- Javelins

- Fakenews

Objeto nacional do ano:

- Pilaretes, radares, ecopistas

Livros do Ano:

- Nacional: «O Governador» — como sacudir a porcaria do capote e espalhá-la pelos inimigos, de C. Costa, gerente de banco.

- Internacional: «Não Te F* das», de Gary John Bishop, que também escreveu «Sai da Tua Cabeça e Faz-te à Vida» — O livro vale pelo título, Não Te F*das é o manual de instruções para os que se resignaram à sua vidinha, ou para aqueles que querem (muito) mais do que têm. É, segundo a editora, “um verdadeiro manifesto para uma mudança real e significativa”. Traduzido já em 24 países, incluindo, segundo a promoção, o Vietname, passando pela Mongólia. É, julgo, livro de cabeceira dos autores nacionais de bestsellers.

Grande questão do ano e do próximo futuro

Os WC! Os arquitetos e os fabricantes de louça sanitária estão em apuros para definirem o lay out (desenho de colocação e distribuição de equipamentos parecia pouco moderno) das novas casas de banho para o mais recente género da humanidade ocidental, o LGBT. No resto do planeta o assunto tem sido resolvido sem disputas com a natureza.

Há ativistas de causas que propõem uma consulta ao livro do Génesis para descobrir como se aliviam o Adão e a Eva! Para se descobrir se as calças devem ter braguilha e se as saias devem ter presilhas de sustentação.

Aflição do Ano:

Onde se aliviam os LGBT? (Prevejo que será o grande tema mobilizador das hostes educadas do Ocidente em 2023, em substituição do atirar tinta às obras de arte clássicas!)

Atores Dramáticos do Ano:

- Cristiano Ronaldo e Vladomir Zelenski, Ursula Van Der Leyen e Madame Zelenska.

Pastores Bíblicos do Ano:

Nacionais:

- Rogeiro&Milhazes — Meninos de Deus

Internacionais:

- Jens Stoltenberg — Secretário-geral da Nato e profeta principal do Senhor Deus dos Exércitos.

Pastores ecuménicos nacionais:

- Marques Mendes e Paulo Portas

Pastor ecuménico internacional:

Mark Sargent, o terraplanista americano que anda pelo mundo a garantir que a Terra é plana. “A ciência diz que estamos numa pequena rocha coberta com um pouco de água e fumo, voando pelo espaço em diversas direções e velocidades. Mas não, tudo o que vemos é parecido com o cenário de filme . “Tudo o que se vê em cima de nós, como as estrelas, os planetas, o Sol e a Lua, são apenas imagens no teto”.

Pessoas como estas guiam automóveis, compram armas e podem viajar de avião a nosso lado. Apanhei um que vinha do Utah, num voo de Nova Iorque, ver o ponto de aterragem da senhora de Fátima em Portugal. Dizia-me que se a Terra fosse uma esfera ela não teria pousado em cima de uma azinheira, seguia em tangente para os confins do universo. E porque não se esborrachou na Serra d’Aire? Atrevi-me a questionar. É o segredo de Fátima, respondeu-me.

Cómicos Internacionais do Ano:

- Os porta-vozes do Kremlin. Um fardado e o outro em efígie.

Episódio pícaro:

Sofagate. Charles Michel e Ursula Van Der Leyen na dança das cadeiras diante do presidente turco. Michel senta-se ao lado do presidente turco Edorgan, e a senhora de pé, até se decidir pelo sofá. Um casal de frangos em apuros. A União Europeia em contradanças.

Mulher liberal do ano:

Nacional:

Alexandra Reis — gestora. Que arrecadou 500 mil euros de indemnização por atravessar a rua e ir da TAP à sede da NAV!

Internacional

- Elizabeth Holmes, americana, de 37 anos, fundadora de uma empresa de biotecnologia que prometia revolucionar os exames de sangue com ferramentas mais rápidas e baratas do que as utilizadas por laboratórios tradicionais. Foi acusada, não de charlatanismo, mas de um crime verdadeiramente grave: enganar investidores que colocaram dinheiro na sua startup (ou unicórnio), com sede na Califórnia.

Êxtase do Ano:

- A reportagem do Casal Zelenski e Zelenska, em Kiev, para a Vogue, entre escombros e cetins. Amor em tempo de cólera, do mais refinado. Lágrimas até encher as barragens.

Ingénua do ano:

- Ana Lúcia Matos — apresentadora ou ex-apresentadora de televisão. Uma famosa cujo marido, namorado ou companheiro foi detido e acusado de uma fraude internacional de cerca de 2,2 mil milhões de euros, e que, apesar da vida luxuosa que ele lhe proporcionava, acreditou que tudo era fruto de honesto trabalho!

O nome mais insólito de um território nacional:

- Oeiras Valley — com um xerife chamado Isaltino

A mais estranha operação policial:

- A captura de uma caixa de garrafas de vinhos ao ex-bancário e ministro Manuel Pinho!

O milagre do Ano:

O aparecimento de um saco com milhares de euros na casa de uma eurodeputada grega, que louvava o regime do Qatar! A miraculada chama-se Eva. (Eva Kaili) O milagre produziu-se num espaço de paz ecuménica entre o islamismo petrolífero e o cristianismo ortodoxo grego. A dita miraculada é também missionária das criptomoedas.

O Bezerro de ouro:

- O bezerro de ouro do ano chama-se Infantino e é presidente do consórcio mundial de futebol, a FIFA. Organizou um campeonato do mundo a meio dos campeonatos nacionais e no Natal cristão, sobre campos de gás natural e à custa de trabalho de seres humanos bestializados. Os números do espetáculo lá se foram sucedendo até à apoteose final em que os artistas de calções conviveram com dignitários bem ajaezados de fato ou camisa de noite com touca. Poucas mulheres à vista e nada de álcool, nem o champanhinho do costume a esguichar sobre a multidão se viu. Os camelos locais e os do estrangeiro podem agora descansar que o Infantino deve estar a preparar mais um espetáculo com bezerros de ouro e anões de calções.

https://cmatosgomes46.medium.com/2022-%C3%A0-la-minute-on-my-own-ffd9600be669

Francisco Louçã - Casos e casinhos, ou como ser governado por uma casta

Estado da Noção

* Francisco Louçã,

Deixou de ser preciso demonstrar como se gera esta bolha de favorecimento, os factos falam por si,mesmo que seja notório que o Governo tem um medo instintivo desta evidência e prefira a vaga de demissões

Édemasiado fácil, embora verdadeiro, ver nesta vertigem de minirremodelações governamentais a prova do pudim da maioria absoluta e da impunidade dos governantes na escolha de gente que lhes chega medalhada pelo partido (Miguel Alves) ou pelo trânsito meteórico entre empresas (Alexandra Reis). Deixou de ser preciso demonstrar como se gera esta bolha de favorecimento, os factos falam por si, mesmo que seja notório que o Governo tem um medo instintivo desta evidência e prefira a vaga de demissões a uma polémica impopular. A declaração do primeiro-ministro sobre os “casos e casinhos”, essas maléficas inventonas das oposições, é deste modo engolida com fel em cada um destes episódios, que chegam a ser desconcertantes de tanta prosápia e cumplicidade. Deixando o nevoeiro sempre capitoso destes casos, proponho-vos a tese de que isto não é o resultado de erros ocasionais, é antes a prova da natureza do nosso regime social, o resultado de uma construção meticulosa de redes de poder, ou de como uma casta se incrustou no uso do Estado. Essa casta é o passado de Portugal e quer ser o nosso futuro.

UM PASSADO QUE NOS MORDE

Malgrado a polémica historiográfica, vou tomar como aceitável a tese de que a emergência da burguesia moderna se fez em Portugal, ao longo do século XIX, ancorada numa aliança entre o capital comercial e a propriedade fundiária, sob a tutela do Estado. Daí terá resultado um conservadorismo arreigado, expresso, nomeadamente, na frágil industrialização e na fantasia imperial, vista como uma protegida reserva de acumulação de capital. Ao chegar à segunda metade do século XX, este sistema radicalizou-se na Guerra Colonial, mas, entretanto, ia mudando por dentro, seja pela consolidação da fusão entre a banca e o imobiliário, com a urbanização e a primeira turistificação, seja pelo impulso europeu, sobretudo na finança. Como este processo foi brevemente interrompido pelo 25 de Abril e depois recomposto com uma nova concentração de capital, é útil estudar como têm sido produzidos os governantes.

Com dois colegas, João Teixeira Lopes e Jorge Costa, publicámos, em 2014, um livro, “Os Burgueses”, que estudava esses processos. Um dos capítulos dedica-se a uma investigação detalhada do perfil de todos os ministros e secretários de Estado de todos os Governos constitucionais até ao ano anterior, 776 pessoas (mas de 78 não conseguimos dados). Queríamos perceber como a hegemonia da burguesia sobre a economia e a reprodução social seleciona os governantes. E, para isso, observámos a sua trajetória pessoal, tendo registado que, se bem que uma parte deles tivesse chegado ao Governo vinda do Parlamento ou de funções públicas e sem ligação empresarial anterior, o facto mais notável era a passagem posterior para as chefias de empresas. Assim, se só 89 chegaram ao Governo vindos de administrações, quase metade dos governantes emigrou para o topo de empresas da finança (248) e imobiliário (95). Naturalmente, trata-se de cargos estratégicos: 170 desses governantes foram para grandes grupos económicos, 107 para os que gerem parcerias público-privado. Nestes casos, a casta foi formada pela cooptação económica que consolidou um novo estatuto social. O seu circuito fundamental tem sido partido-Governo-empresas.

OS OUTROS CAMINHOS PARA ROMA

Chegar ao topo destas empresas, seja como facilitador com o partido, seja para abrir uma nova carreira, não é de somenos. Quando, há anos, propus no Parlamento uma lei que determinava que os pagamentos aos administradores de empresas cotadas fossem publicados no relatório anual, e era difícil recusar que esta informação era um direito dos acionistas e do público, o presidente de um grande banco, cuja administração se fazia pagar um prémio de 10% dos resultados líquidos, veio indignar-se e garantir que, se a lei fosse aprovada, haveria uma revolta social. Para os beneficiados, com ou sem revolta, a promoção vale a pena.

No entanto, a formação de ligações de casta também segue outros caminhos. Há a corrupção e, se alguns casos têm sido investigados, ainda teremos de esperar pelo dia em que um qualquer Rui Mateus conte as ligações angolanas de financiamentos de alguns partidos e outras tropelias. O processo sobre os pagamentos do BES a Manuel Pinho arrasta-se em tribunal, bem como outros. Há ainda os vínculos do finan­ciamento declarado: em 2021, o IL recebeu dinheiro do CEO da EDP, que os Champalimauds e Mellos pagaram ao Chega e que o PS continua a receber donativos da gente fiel da Mota Engil.

As redes de compromisso são as mesmas que levaram tantos ex-governantes a ocupar posição nas empresas das PPP. Por isso a defesa extravagante dos vistos gold, dos benefícios a não-residentes, de que a EDP não pague imposto pela venda de barragens, tudo merece ser visto à luz da casta que ocupa e ocupará estes lugares.

Alexandra Reis não inventou nada. Reclamou para si a regra que protege os gestores, se forem despedidos recebem tudo (há mesmo quem chame a isto meritocracia?). Passou da TAP para a NAV e desta para o Governo, tendo sido escolhida pela experiência brevíssima nestas empresas, aliás mal sucedida numa delas. Disso benefi­ciou, achando que começaria uma carreira política sem que alguém questionasse o privilégio daquele pagamento. Nisso cometeu o erro de exibir a arrogância da casta. Mas a regra não mudou nem mudará, pois não? Pois esperemos pelo próximo casinho.


30.12.2022

https://expresso.pt/opiniao/2022-12-30-Casos-e-casinhos-ou-como-ser-governado-por-uma-casta-7abd5012


sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Daniel Oliveira - Estava fadado

SEMANÁRIO#2618 - 30/12/22

* DANIEL OLIVEIRA


A demissão de Alexandra Reis tornou-se inevitável desde que saiu o comunicado da TAP. Já era evidente que a presidente da empresa a tinha querido fora do Conselho de Administração, convidando-a a rescindir. O que resulta do comunicado foi que a TAP optou por negociar a rescisão para não seguir o Estatuto do Gestor Público. Depois do esclarecimento, Medina não podia fazer outra coisa. Como iria uma secretária de Estado do Tesouro que custou meio milhão ao Estado explicar que, apesar dos excedentes orçamentais, não há dinheiro para travar a degradação de serviços públicos? A demissão de Hugo Mendes tornou-se inevitável quando se percebeu que autorizou uma solução que lhe foi vendida como a melhor. A ex-administradora teria sempre de ser pressio­nada para devolver o que não lhe era devido depois de ir para a NAV. E a administração da TAP nunca mais poderá conti­nuar a dizer que os trabalhadores em greve põem em perigo uma empresa salva com dinheiros públicos depois de ter estourado meio milhão para se ver livre de uma administradora. Quanto a Pedro Nuno Santos, mesmo que não soubesse do acordo final, nunca deixariam de dizer que tinha de saber. Atirar a culpa para o “porteiro” seria feio. As legítimas dúvidas legais e a revolta popular com esta indemnização não o abandonariam.

Em circunstâncias normais, Pedro Nuno Santos sairia chamuscado mas não precisaria de se demitir. Não se pode ser responsável pelo que se sabe mais tarde. Só que a TAP não é um dossiê como os outros, o ambiente social não é o normal e governar sabendo que não se tem a solidariedade do primeiro-ministro é insustentável. Ainda mais num Governo que está tão distante das suas convicções políticas. Pedro Nuno Santos estava fadado a sair deste Governo. Assim, sai assumindo a responsabilidade política do que acontece no seu ministério. Nem todos podem ser Costa, que, com onze governantes demitidos em nove meses, nunca assume as responsabilidades do que sabe, do que não sabe e do que prefere não saber.

O natural impacto desta demissão deixa um debate por fazer. Ao contrário do que diz a voz popular, não é preciso ter cartão partidário para subir depressa na vida. E Alexandra Reis foi exemplo disso. Sem passado político, chega à administração pela mão de Humberto Pedrosa e dá nas vistas como gestora pela tenacidade com que participou na reestruturação da TAP, reduzindo com eficácia salários e pessoal. Foi por causa dessa qualidade exterminadora, e não por ter cartão do PS, que foi parar ao Governo. A política deve abrir-se à sociedade civil. É um dos mantras impensados que mais se repete. Se a ideia é que a política deve estar mais próxima do povo, subscrevo o ideal democrático. Mas não é bem isso. É a ideia de que a política suja se purificará abrindo uma janela para uma “sociedade civil” onde se respira competência e virtude. E quem fala de “sociedade civil” não está a pensar em sindicatos, associações ou ONG. Está a pensar, na melhor das hipóteses, na academia e, mais frequentemente, nas empresas. Porque é lá que o mercado já selecionou “os melhores”.

Pedro Nuno Santos estava fadado a sair deste Governo. Sai assumindo a responsabilidade política do que acontece no seu ministério. Nem todos podem ser Costa, que, com onze governantes demitidos em nove meses, nunca assume as responsabilidades do que sabe, do que não sabe e do que prefere não saber

A tecnocracia trata a democracia como um processo de recrutamento dos “melhores”, e não como uma forma de representação de alternativas políticas. E quando passou a ir buscar “os melhores” às empresas, transferiu, quer na lógica de direção do Estado, quer na cultura dos decisores, a eficácia empresarial para as políticas públicas. O que quer dizer que quem consegue reduzir drasticamente a massa salarial e despedir com rapidez dará, em princípio, uma boa secretária de Estado do Tesouro.

Se as empresas públicas devem ser geridas como as privadas, a ideia de serviço público faz pouco sentido. Se os gestores, públicos ou privados, coabitam no mesmo mercado concorrencial, partilham, para além de salários semelhantes, a convicção de que fazem parte de um clube restrito, onde lhes está garantido um regime de proteção especial, como acontece hoje em quase todas as grandes empresas. Alexandra Reis (e a TAP) limitou-se a seguir o critério da casta a que ela julga pertencer e onde o Governo a foi buscar. Uma casta à qual não se aplicam as leis laborais que os gestores querem para os trabalhadores, mas o regime de exceção que garantem para si mesmos. A flexibilidade é para os outros. Porque, vale sempre a pena recordar, eles são “os melhores”.

O Presidente da República teve razão quando disse que meio milhão de indemnização faz impressão ao português comum. Não porque o português comum seja impressionável, mas porque é impressionante a diferença de critérios para a indemnização de um trabalhador ao fim de uma vida numa empresa e de um gestor que por lá passa dois anos a despedir pessoas. Na torre de marfim onde vive, esta casta convenceu-nos de que, por serem “os melhores”, merece o privilégio único da segurança. Habituámo-nos a isto nas empresas. Ainda nos incomoda na política. Só quando lá chegam suspeitamos do seu mérito e revoltamo-nos com as falhas éticas do seu passado. Tivesse Alexandra Reis seguido a sua vida e ninguém saberia. Pedro Nuno Santos, esse, acabaria por sair. Talvez por razões melhores.

 

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quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Annie Lacroix-Riz: “Há um contexto histórico que explica o encurralamento da Rússia”

Annie Lacroix-Riz: 

03.06.22

Annie Lacroix-Riz escreveu vários livros sobre as duas guerras mundiais e as dominações políticas e económicas. Nesta entrevista, analisa a situação na Ucrânia à luz da história dos imperialismos do início do século XX e da sua perduração. Com efeito, o que nos é dito, vezes sem conta, nos meios de comunicação social, não nos permite compreender o conflito e, por conseguinte, impossibilita-nos de procurar uma solução para a paz. Nesta entrevista, Annie Lacroix-Riz oferece um olhar para além do que é aparente, o qual é extremamente útil para entender os acontecimentos e a história recente da região. 

Professora Emérita de História Contemporânea da Universidade Paris VII-Denis Diderot, Annie Lacroix-Riz escreveu vários livros sobre as duas guerras mundiais e as dominações políticas e económicas. Nesta entrevista, analisa a situação na Ucrânia à luz da história dos imperialismos do início do século XX e da sua perduração. Com efeito, o que nos é dito, vezes sem conta, nos meios de comunicação social, não nos permite compreender o conflito e, por conseguinte, impossibilita-nos de procurar uma solução para a paz. Nesta entrevista, Annie Lacroix-Riz oferece um olhar para além do que é aparente, o qual é extremamente útil para entender os acontecimentos e a história recente da região.



Nos meios de comunicação social, fica-se com a impressão de que a guerra na Ucrânia aconteceu a partir do nada. O que nos pode dizer sobre o contexto histórico desta guerra?

Em primeiro lugar, os elementos históricos estão praticamente ausentes daquilo que nos é frequentemente descrito como uma "análise" da situação. No entanto, há dois aspetos importantes a ter em conta nos acontecimentos atuais. Em primeiro lugar, existe uma situação geral, ou seja, uma agressão da NATO contra a Rússia. Depois, há uma espécie de obsessão contra a Rússia – e até contra a China. Esta obsessão não é nova e, portanto, permite relativizar o atual frenesim anti-Putin. A essência da alegada "análise ocidental" assenta na ideia de que Putin é um lunático paranóico e/ou um novo Hitler. Mas o ódio contra a Rússia, assim como o facto de não se suportar que esta possa ter um papel mundial, são tão velhos quanto o imperialismo americano.

 

Como é que explica esta obsessão?

É uma obsessão característica de um imperialismo dominante que foi hegemónico durante, praticamente, todo o século XX. Este imperialismo não quer perder a sua hegemonia, ainda que, na realidade, a esteja a perder. Com efeito, hoje já não estamos na mesma situação em que estávamos na década de 1950, quando os Estados Unidos representavam 50% da produção mundial. A China está a aproximar-se do primeiro lugar, no mundo, e isso não agrada aos Estados Unidos. Nos últimos anos, atingimos um momento particularmente agudo neste confronto, marcado por uma série de ataques surpreendentes.

Neste confronto, a Rússia também é um alvo. Temos a impressão de que haveria uma espécie de rancor contra os bolcheviques, mas é preciso saber que esta Russofobia do imperialismo americano remonta à era czarista, e continuou depois, incluindo após a dissolução da União Soviética. Os compromissos assumidos pelos Estados Unidos de não avançar militarmente na zona ex-soviética foram, desde então, todos violados. De 1991 a fevereiro de 2022, a NATO estabeleceu-se nas fronteiras da Rússia  e a nuclearização da Ucrânia tornou-se numa realidade imediata.

 

Qual é o lugar da Ucrânia nos conflitos entre potências imperialistas?

A Ucrânia é inseparável da história da Rússia, desde o início da Idade Média. A Rússia, com toda a sua riqueza natural, é uma gruta de Ali Baba e a Ucrânia foi a sua mais bela jóia: é uma fonte extraordinária de carvão, de ferro e de tantos outros recursos minerais, e um formidável depósito de trigo e de outros cereais - o que, aliás, atraiu a cobiça de muitos, desde há muito tempo. Para nos mantermos no período imperialista (desde a década de 1880), podemos dizer que foi a Alemanha que, num primeiro momento, se interessou pela Ucrânia. Antes da guerra de 1914, o Reich alemão tinha decidido, a fim de controlar o Império Russo, garantir o controlo dos seus "mercados" mais desenvolvidos: a Ucrânia e os Estados bálticos. Durante o conflito, a Alemanha fez destes Estados e da Ucrânia um verdadeiro reduto militar, a base do seu ataque ao Império Russo. Durante a Primeira Guerra Mundial, se a Alemanha falhou na Frente Ocidental, logo em 1917, o mesmo não se pode dizer da Frente Oriental, a qual foi dominada pela Alemanha até à sua derrota. E, apesar de, desde janeiro de 1918, a recém-soviética Rússia estar a sofrer uma agressão adicional de todas as outras potências imperialistas (14 países invadiram a União Soviética, sem que tenha havido uma declaração de guerra), Berlim conseguiu impor-lhe, em março de 1918, o Tratado de Brest-Litovsk, confiscando-lhe a Ucrânia. A derrota da Alemanha no final da Primeira Guerra Mundial não fez com que a Ucrânia fosse devolvida à União Soviética, dada a guerra travada no seu solo pelos "Aliados", apoiada por todos os elementos anti-bolcheviques, russos e ucranianos.

 

A Ucrânia conheceu, então, uma curta independência...

De 1918 a 1920, houve, de facto, um curto período de "independência" folclórica, tendo como pano de fundo a agressão dos exércitos brancos (pogromistas) de Denikin, e do pogromista Petlyura, oficialmente "independentista" e aliado da Polónia (que pretendia, para si, toda a Ucrânia ocidental). A Ucrânia continuou, então, a ser alvo do Reich, o qual sucedeu ao império austríaco, depois "austro-húngaro" dos Habsburgos (possidentes da Galicia oriental, a oeste da Ucrânia, depois de dividida a Polónia[i]). Esta tutela germânica constituiu, assim, desde o tempo dos Habsburgos, uma base preciosa para o enfraquecimento da Rússia e do Eslavismo Ortodoxo, tendo-se baseado, sobretudo, no Uniatismo[ii], liderado pelo Vaticano.

 

Que papel tinha o Vaticano?

O Uniatismo Católico constituiu o apoio ideológico da conquista germânica, tendo seduzido parte das populações do oeste da Ucrânia, graças à sua aparência formal, muito próxima da Ortodoxia. Este instrumento da conquista austríaca foi tomado em mãos pela Alemanha, na era imperialista: o Vaticano, compreendendo que já não podia contar com o moribundo império católico, submeteu-se, definitivamente, ao poderoso Reich protestante, no início do século XX, incluindo na Ucrânia. No período entre-guerras, a Ucrânia desempenhou, assim, um papel decisivo na aliança entre a Alemanha e o Vaticano, a quem Berlim confiou a espionagem militar, realizada através dos clérigos uniates. Podemos observar, deste modo, como foi organizada a tentativa de conquistar a Ucrânia, consagrada, aliás, na Concordata do Reich de julho de 1933, assinada entre Berlim e o Vaticano. Um dos seus dois artigos secretos estipulava que a Alemanha e o Vaticano seriam aliados na tomada de posse da Ucrânia, que era um dos principais objetivos da guerra da Alemanha, tanto durante a Primeira Guerra Mundial, como durante a Segunda Guerra Mundial. Enquanto a militarização, a ocupação e a exploração económica estariam sob a alçada da Alemanha, a "recristianização" católica seria entregue ao Vaticano.

 

Os Estados Unidos também estavam interessados…

A Ucrânia é, não apenas um elemento importante no quadro mundial, como a porta de entrada para o Cáucaso, rico em petróleo. Os Estados Unidos juntaram-se ao imperialismo alemão para penetrar na Rússia e, em especial, na Ucrânia, após o fim da Primeira Guerra Mundial. Em 1930, todos os imperialismos sonhavam em devorar a rica Ucrânia. No meu livro Aux origines du carcan européen [Sobre as Origens do Colete-de-Forças Europeu], mostrei como Roman Dmovski, um político polaco de extrema-direita, tinha analisado na perfeição, em 1930, "a questão ucraniana". Roman Dmovski escreveu que todos os grandes imperialismos queriam devorar a Ucrânia, sendo que, no topo, dois se atarefavam febrilmente para o conseguir: o alemão e o americano. Este autor disse, também, que, se a Ucrânia fosse arrancada da Rússia, tornar-se-ia num país puramente "consumidor", obrigado a comprar os seus produtos industriais fora. Ela nunca poderia suportar tal perda, acrescentou.

 

Isso não funcionou, pois a Ucrânia continuou no seio da União Soviética. Ainda assim, havia, ou não, um nacionalismo ucraniano?

O nacionalismo ucraniano foi, primeiro, alemão e, depois, americano (ou melhor, ambos), porque não tinha capacidade real de independência: o Reich financiou-o antes de 1914, e nunca mais cessou de o fazer. Na verdade, estas pessoas que diziam querer uma Ucrânia "independente" (como Bandera e os seus seguidores) pertenciam ao inatismo que, no período entre-guerras, e durante toda a Segunda Guerra Mundial, se confunde com o nazismo.

É difícil não fazer a ligação com estes movimentos que hoje encontramos: o batalhão Azov, Pravy Sektor, etc., são os herdeiros diretos que se reivindicam do movimento autonomista ucraniano do período entre-guerras, que viu a criação, em 1929, do movimento banderista. Denominado "Organização dos Ucranianos Nacionalistas" (OUN), foi inteiramente financiado pelo Reich de Weimar e, depois, por Hitler (depois de o "autonomismo" ter sido subsidiado pelo Reich wilhelminiano).

 

Como é que este movimento se desenvolveu?

O movimento de Stepan Bandera, o agora "herói nacional" oficial do Estado ucraniano, e ao qual o batalhão Azov e outros grupos pró-nazis constantemente prestam homenagem, desenvolveu-se a partir de 1929, na Ucrânia polaca e na Ucrânia eslovaca. Não estava, contudo, presente na Ucrânia soviética e ortodoxa. Os "banderistas", como as outras correntes do "nacionalismo ucraniano", eram anti-judeus, anti-russos e, também, violentamente anti-polacos. Atacavam de forma igualmente radical ucranianos não-autonomistas e ucranianos que tinham permanecido próximos da Rússia.

Estas bandas de auxiliares da polícia alemã, já em 1939, na Polónia ocupada, e, depois, a partir de 22 de junho de 1941, na URSS ocupada, formaram um autodenominado “exército de insurreição”, a UPA. Estes 150.000 a 200.000 criminosos de guerra massacraram, indiscriminadamente, centenas de milhares dos seus "inimigos": judeus, ucranianos leais ao regime soviético, russos e polacos, os quais odiavam indistintamente. Tomando, apenas, o exemplo dos polacos, é importante referir que entre 70.000 e 100.000 civis foram mortos pelas milícias banderistas, durante a guerra. O argumento de propaganda popular de que o Estado polaco acolheu calorosamente os "vizinhos" ucranianos, sentimentalmente tão perto, é, à luz desta longa história criminosa (iniciada antes da guerra), grotesco.
Em 1944, quando a União Soviética recuperou o controlo de toda a Ucrânia, incluindo Lvov (em julho), 120.000 destes criminosos de guerra fugiram para a Alemanha. Os Estados Unidos usaram-nos, ao chegar, na primavera de 1945.
Um livro sobre o assunto, disponível online em inglês, Hitlers Shadow, foi publicado por dois historiadores americanos. É ainda mais interessante é o facto de os seus dois autores serem historiadores acreditados pelo Departamento de Estado, com quem trabalham oficialmente sobre a história do extermínio dos judeus: Richard Breitman e Norman J.W. Goda. Estes autores mostram como os Estados Unidos, assim que chegaram à Alemanha, na primavera de 1945, recuperaram todos os criminosos de guerra, alemães ou não. Alguns dos banderistas permaneceram na Alemanha, nas zonas ocidentais, principalmente na zona americana, sobretudo em Munique. Outros banderistas foram recebidos de braços abertos nos Estados Unidos, através da CIA, em detrimento das leis de imigração, enquanto outros permaneceram na Ucrânia Ocidental.

Este último grupo, com dezenas de milhares de homens, travou uma guerra inexpidável contra a União Soviética: entre o verão de 1944 e o início da década de 1950, assassinou 35.000 funcionários civis e militares, com o apoio financeiro alemão e americano, o qual foi particularmente elevado em 1947-1948. Um excelente historiador germano-polaco, Grzegorz Rossolinski-Liebe, demonstrou que o banderismo continua a ser, hoje, um terreno de reprodução pró-nazi inextinguível: os inúmeros herdeiros de Bandera têm igual ódio por polacos, russos, judeus e ucranianos que não são fascistas. Escusado será dizer que este investigador tem tido grandes problemas de censura, desde a Revolução Laranja de 2004, e, sobretudo, na era Maidan, especialmente desde que estudou como, desde 1943, os banderistas fabricaram a lenda de "resistência aos nazis", tal como a vermelhos e judeus. Uma lenda muito útil para que aqueles grupos possam ser incluídos na lista de grupos "democráticos", apoiados por Washington.

 

Quais foram as consequências desta colusão?

Entre os criminosos de guerra calorosamente acolhidos pelos Estados Unidos, os intelectuais tiveram um acolhimento particular. Desde 1948, foram recrutados em grande número por universidades americanas, sobretudo as da Ivy League, incluindo Harvard e Columbia. Nos "Centros de Investigação sobre a Rússia", que proliferam desde 1946-1947, aqueles intelectuais participaram, juntamente com os seus prestigiados colegas americanos, numa frenética guerra ideológica contra a Rússia. É neste contexto que é difundida a lenda do "Holodomor", cujas aventuras pontuaram, desde então, as etapas decisivas da conquista da Ucrânia. Esta "investigação" e este "ensino", implantados há mais de 70 anos, e espalhados massivamente, com a ajuda dos principais meios de comunicação social, ao longo de décadas na Europa americana, literalmente "apodreceram" os conhecimentos "ocidentais" sobre a história da Ucrânia (e, mais amplamente, sobre a da URSS).

Os apoios políticos do Euromaidan, avatar destas inúmeras revoluções coloridas dos últimos vinte anos, formaram a espinha dorsal de 2014, fazendo uma aliança com oligarcas que, desde 1991, monopolizam toda a riqueza da Ucrânia. Note-se que este tipo de saque não é exclusivo da Rússia de Putin, sendo observado em quase todos os países da ex-União Soviética. Na Ucrânia, os oligarcas confiaram nestes elementos herdeiros do banderismo. O Estado ucraniano de Poroshenko e os seus sucessores, desde 2014, confiaram abertamente nestes movimentos nazis que os Estados Unidos alimentaram, incansavelmente, desde 1944-1945.

Os Estados Unidos tinham como programa explícito, codificado em junho de 1948, no âmbito da CIA, a liquidação, pura e simples, não só da zona de influência soviética, mas o próprio Estado soviético. Foi sob a administração democrata que foi posta em prática a política de repulsão ou de "retrocesso", com o objetivo de esmagar o comunismo onde quer que fosse que este se encontrasse instalado (e impedindo-o de se instalar em zonas de influência americana). Como uma série de trabalhos históricos têm demonstrado, incluindo o trabalho de investigadores americanos com uma forte ligação ao aparelho de Estado, e muito antissoviéticos, este programa foi definitivamente implementado pela CIA, desde o seu nascimento, em julho de 1947.

Podemos compreender a sua extensão graças ao texto de fevereiro de 1952 de Armand Bérard, um diplomata francês, em Bona, a quem cito em Aux origines du Carcan européen. Bérard profetizava que a Rússia, tão enfraquecida pela guerra alemã travada contra ela, entre 1941 e 1945 (27 a 30 milhões de mortos, com a URSS da Europa devastada) capitularia sob os golpes dos Estados Unidos e da Alemanha de Adenauer, oficialmente perdoado pelos seus crimes e rearmado até aos dentes. Moscovo acabaria por ceder toda a Europa Central e Oriental, que era a sua "zona de influência" e que tinha sido alvo de "mudanças fundamentais, de natureza democrática, que, desde 1940, ocorreram na Europa de Leste".  Estas são as palavras deste diplomata "ocidental". E a data de 1940 refere-se à então sovietização dos Estados bálticos e de uma parte da Roménia e da Polónia, cada um destes países mais fascista do que o outro.

 

Foi, no entanto, necessário, esperar alguns anos.

Depois de 1945, este tipo de projeto exigia tempo, uma vez que o governo soviético era menos antipático aos olhos do seu povo, assim como dos povos vizinhos, do que a história de propaganda "ocidental" nos quer fazer crer. Mas foi conduzido com uma notável continuidade e enormes meios financeiros. Toda a população foi visada, ainda que tenha sido dada uma especial atenção ao Estado e às elites intelectuais do país, as quais cconstituíam uma questão prioritária, procurando-se separá-las do Estado soviético. O esforço acelerou-se consideravelmente após a vitória dos EUA de 1989, e com uma maior eficiência, num momento em que a Rússia conhecia uma década de decadência total. Recorde-se que, sob Ieltsin, as potências estrangeiras, com os Estados Unidos em primeiro lugar, impuseram a sua lei, a economia russa foi vendida por um nada e entrou em colapso, a população caiu 0,5% por ano (de forma especialmente dramática na Sibéria e no Extremo Oriente), sendo que, em 1994, a esperança de vida da população russa diminui drasticamente (de quase dez anos, para os homens).

Durante estes anos, o trabalho de formiga germano-americano, que Breitman e Goda descreveram para os anos 1945-1990, obviamente que se intensificaram. Certamente, a National Endowment for Democracy (NED), querida a Victoria Nuland, a eminência das administrações Bush e, depois, de todos os seus sucessores democratas, Biden incluído, acaba de apagar do seu site os seus ficheiros de financiamento, até agora públicos (pelo menos, em parte), da secessão da Ucrânia e da sua inserção no aparelho de agressão contra a Rússia. Mas o site do Departamento de Estado não censurou as declarações, de 13 de dezembro de 2013, da Subsecretária de Estado Nuland, a senhora das boas obras de Maidan, tão presente em Kiev em fevereiro de 2014, perante o Congresso: Nuland orgulhosamente declarou que, desde a queda da URSS (1991), os Estados Unidos tinham investido mais de 5 mil milhões de dólares para ajudar a Ucrânia. Tratava-se, naturalmente, de assegurar o controlo definitivo da agricultura e da indústria ucraniana, o objetivo final desta longa cruzada. Mas também trazer este país para a NATO, da qual são membros quase todos os países da antiga zona de influência soviética e várias das antigas repúblicas soviéticas. Isto foi admitido há muitos anos. Isto foi, aliás, claramente reafirmado pela “Carta de Parceria Estratégica EUA-Ucrânia”, assinada em 10 de novembro de 2021 pelo Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, e pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba: o seu conteúdo consta, aliás, da redação da "Resolução de 16 de dezembro de 2021 sobre a situação na fronteira ucraniana e nos territórios da Ucrânia ocupados pela Rússia", orgulhosamente exibida pelo Parlamento Europeu, em Estrasburgo.

A partir de então, tornava-se necessário colocar Moscovo a, pelo menos, 5 minutos das bombas atómicas armazenadas, desde as origens do Pacto Atlântico (por vezes, desde o início dos anos 50), nos países membros da NATO. Bastava exacerbar a disputa da miséria infligida pela Ucrânia de Maidan ao povo de Donbass, em flagrante violação dos acordos de Minsk. Sobre estas misérias e sobre a violação dos acordos de que Paris e Berlim foram "garantes", a propaganda ocidental manteve-se silenciosa de 2014 a fevereiro de 2022.
A conjuntura histórica e os desenvolvimentos desde 1989, seriamente agravados desde 2014, têm encurralado a Rússia. Todos os observadores razoáveis apontam que a Rússia iniciou a guerra contra a Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, uma vez entrincheirada contra a sua vontade. Este passo faz lembrar o que a União Soviética deu no final de 1939.

 

O que quer dizer com isso?

Este é um elemento essencial. No final de 1939, a União Soviética tentou, com sinceridade, negociar com a Finlândia, apresentada pelos arquivos históricos e militares como um aliado puro e simples da Alemanha Nazi. Desde 1935, esta última havia instalado, na Finlândia, uma série de aeródromos militares e de bases para atacar a URSS - que, na realidade, foram cedidas à Alemanha, tendo sido, de facto, usadas,  durante a guerra de agressão alemã à URSS. Moscovo falou, em vão, durante semanas, com a Finlândia, anteriormente parte do Império Russo, mas que em 1918-1919 se havia tornado num país-chave do "cordão sanitário" anti-bolchevique. Os soviéticos pediram-lhe que trocasse parte do seu território, para criar uma zona tampão de defesa sólida em torno de Leningrado, por um território maior (soviético). As discussões falharam, sob pressão da Alemanha e de todos os países "democráticos" que, como um diplomata fascista italiano declarou na altura, sonhavam com uma "Aliança Sagrada" geral contra os soviéticos.

A URSS invadiu a Finlândia em 30 de novembro de 1939. Teve, então, de enfrentar uma propaganda do mesmo tipo daquela que, atualmente, é difundida, assim como sanções (incluindo uma exclusão da Liga das Nações, unanimemente acordada em 14 de dezembro). Tratava-se, no discurso em vigor, de combater o monstro soviético e de proteger a pobre Finlândia, e o Vaticano do pró-nazi Pio XII ficou tão incomodado como o atual papa com os "rios de sangue" ucranianos. A "guerra de Inverno", num país-chave do "cordão sanitário", no qual a população tinha sido "preparada" incansavelmente contra o comunismo e a URSS, durante mais de vinte anos, foi terrível.

Com dificuldade, o Exército Vermelho conseguiu derrotar a Finlândia. Em 12 de março de 1940, o acordo alcançado deu a Helsínquia exatamente o que Moscovo havia proposto em 1939 - o que, sem dúvida, permitiu proteger Leningrado da invasão. É significativo que a atual campanha de propaganda pregue o longo período de neutralidade que a Finlândia no pós-guerra observou, isto, contudo, depois de a Finlândia pró-nazi, como se esperava, ter feito a guerra ao lado da Alemanha.

 

Isto relembra, então, a situação atual da Ucrânia?

Sim, se nos cingirmos a factos históricos, e não nos limitarmos a dizer que estamos perante um monstro louco. Leio, hoje, em petições ou em jornais de referência, que Putin está a incendiar e a incitar um derramamento de sangue numa Europa, até agora, calma e tranquila. Mas não ouvimos estes intelectuais, recrutados maciçamente pela imprensa mainstream, e revoltados contra o "novo Hitler", manifestarem-se contra as centenas de milhares de mortes dos bombardeamentos americanos e europeus no Iraque, na Líbia, no Afeganistão, na Síria. As mesmas pessoas que amaldiçoam Putin acharam magníficos os 78 dias de bombardeamentos contra Belgrado e contra o "novo Hitler", Milosevic. A comparação, refira-se, tem sido aplicada a todos os "inimigos" que o Ocidente forjou, desde a nacionalização de Nasser do Canal do Suez.

Também não me lembro de nenhuma importante indignação destes novos anti-nazis por causa das 500.000 crianças que morreram no Iraque, por falta de comida e de cuidados médicos, como consequência imediata do bloqueio anglo-americano; crianças, aliás, cujo sacrifício "valeu a pena", segundo as declarações recentes da ex-secretária de Estado democrata Madeleine Albright. Porquê esta sistemática aplicação de dois pesos, duas medidas, também usada no que concerne as populações martirizadas de Donbass (e que Putin é acusado de ter instrumentalizado durante oito anos contra a tão simpática Ucrânia)?

Esta guerra, por mais lamentável que seja, foi anunciada há muito tempo, e as razoáveis vozes de militares, diplomatas, académicos, a Oeste, que não têm acesso a nenhum órgão importante dito de "informação", privado ou estatal, são categóricas sobre as responsabilidades exclusivas, e de longa data, dos Estados Unidos, no desencadear de um conflito que eles próprios tornaram inevitável.

 

Na sua opinião, como é que será o futuro?

Não me pronuncio sobre o futuro, pois os historiadores não têm de desempenhar o papel de meteorologistas, especialmente tendo em conta a informação execrável a que, atualmente, têm acesso. Mas posso afirmar que os Estados Unidos são o poder imperialista cujas guerras de agressão acumularam, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, milhões de mortes. Recomendo, aliás, o livro traduzido de William Blum, um antigo funcionário da CIA (estes são os melhores analistas), que estabeleceu uma estrita cronologia dos crimes cometidos pelos Estados Unidos contra uma série de Estados qualificados de "bandidos".

A Rússia nem sempre foi considerada como tal pelo "Ocidente", na época da "Grande Aliança" e do "Tio Joe" (José Estaline). Até às últimas décadas de propaganda unilateral "ocidental" sobre a libertação da Europa – segundo a qual, a libertação teria ocorrido graças, unicamente, ao desembarque americano, em junho de 1944 -, havia sido amplamente reconhecido que só o Exército Vermelho é que tinha conseguido derrotar a Wehrmacht, e a que custo! De acordo com estimativas recentes, os Estados Unidos têm a deplorar, durante a Segunda Guerra Mundial, um total inferior a 300.000 mortes (todas, de militares), nas frentes do Pacífico e da Europa. Nesta entrevista, há pouco, já havia referido o monstruoso número de perdas soviéticas: 10 milhões de baixas militares e 17 a 20 milhões de vítimas civis.
Até agora, a Rússia, soviética ou não, não semeou ruínas em guerras externas. Tem sido objeto de uma ininterrupta agressão das grandes potências imperialistas, desde janeiro de 1918. Não digo isto porque sou uma seguidora de Putin. Todos os documentos de arquivo apontam nesta direção, diplomatas ocidentais e militares são os primeiros a sabê-lo e a admiti-lo, na sua correspondência não destinada a publicação: ou seja, o tipo de documentação que tenho vindo a estudar, há mais de cinquenta anos. Com o meu trabalho, e graças a uma reflexão sobre a conjuntura atual, estou, apenas, a exercer a minha profissão de historiadora..

 

 

1[NT] A Galicia foi uma província do Império Austríaco, formada em 1772, a partir dos territórios polacos anexados durante a primeira divisão da Polónia. Permaneceu austríaca até ao final da Primeira Guerra Mundial.

2[NT] Uniatismo: conjunto de comunidades cristãs, de rito oriental, que reconhecem a autoridade papal ou que se encontram ligadas à Igreja Católica.

 

Fonte:https://www.investigaction.net/fr/annie-lacroix-riz-il-y-a-un-contexte-historique-qui-explique-que-la-russie-etait-acculee/, publicado e acedido em 28.03.22

 

Tradução: AMS