domingo, 20 de outubro de 2024

Carlos Coutinho - [Lobisomens]

* Carlos Coutinho

  NUNCA fui muito de acreditar em lendas estapafúrdias nem de ter medo de sombras ou de pios de coruja. Vendo um filme na televisão, lembrei-me agora de uma certa noite de sábado, na barbearia do Sr. Manuel Sacristão. Teria eu uns seis anitos, quando lá fui cortar o cabelo, à luz mortiça do candeeiro a petróleo que iluminava os rostos impacientes de meia dúzia de clientes à espera de vez.

Era inverno, o chão da rua tinha uma camada de neve quase de palmo que, depois, no caminho de regresso a casa, eu ia marcando com sulcos arrastados das minhas chancas de solas de pau. Quando cheguei ao Largo do Terreiro, comecei a notar que havia duas filas, paralelas e muito encostadas uma à outra, de outros sulcos, estes em forma de coração e com uma largura de quatro ou cinco centímetros. Podiam ser de cão grande, mas, como eu vinha com os ouvidos cheios de histórias assustadoras de lobos e lobisomens, foram marcas lupinas o que me pareceu ver pela rua acima, na direção da minha casa e do cemitério, lá muito para o alto.

Parei debaixo de um luar pálido e de mau augúrio, achei desmesurada a lua cheia e decidi seguir para o Largo do Cimo da Rua por um caminho alternativo que passa pelo Tapado, onde começa o urtigoso Quelho que desce para o Largo do Itreido. Estaquei ao lado da fonte de pedra para avaliar a situação posta pela fantástica corrida de um peludo lobisomem que passou à minha frente sem para mim olhar. Veio da Carreira Velha e embicou de cabeça oblíqua pela rota do cemitério.

Hoje sei que foi uma alucinação, consequência das histórias ouvidas na barbearia, provavelmente exploradas para me assustarem. Mas eu levei a coisa a sério e, quando me dispunha a voltar para a barbearia, apareceu esbaforido o meu tio Alberto que tinha ficado encarregado de me ir buscar e já não me encontrou. Justificou a sua demora não me lembro como e, quase a chegar a minha casa, disse:

– Estás mais suado que o meu peito numa tarde de verão. Tens febre?

– Não. Tenho fome. Vossemecê atrasou-se muito.

Fez-se um breve silêncio e eu perguntei:

– Alguma vez viu um lobisomem, tio?

– Eu? Nunca! E tu?

– Também não, mas na barbearia só se falava nisso.

Se eu não fosse sobrinho de um irmão da minha mãe, talvez confessasse que havia acreditado em certos pormenores inquietantes daquelas arrastadas conversas mal-intencionadas, mas a verdade é que desatámos ambos a rir, já no quinteiro que havia à frente da minha antiga casa.

Passados estes anos todos e puxado pela televisão para as crenças de antanho, fui à Internet procurar o que haveria sobre o assunto e, então, fiquei a saber que, na lúgubre barbearia que ficava por cima da loja de uma vaca leiteira e ao lado da sapataria do Sr. Lucindo, nada tinha sido inventado e que lobisomem ou licantropo (do grego λυκάνθρωπος: λύκος, lýkos, ‘lobo’ e άνθρωπος, ánthrōpos, ‘humano’) é uma pessoa capaz de se transformar num faminto lobo ou em algo semelhante a um lobo, quase sempre em inquietantes noites de lua cheia.

Tal lenda aparece nas obras de vários autores que contam a história do pugilista arcádio Damarco da Parrásia, herói olímpico, que assumiu a forma de lobo nove anos após um sacrifício a Zeus Liceu, lenda atestada pelo geógrafo Pausânias.

Também Heródoto, nas suas “Histórias”, escreveu que, de acordo com o que os citas acreditavam, os gregos estabelecidos na Cítia lhe contaram serem os Neuri, uma tribo do Nordeste, que eram todos transformados em lobos, uma vez por ano, durante vários dias, voltando seguidamente à forma humana. O historiador teve o cuidado de acrescentar que não estava convencido da veracidade dessa história, mas os moradores locais juravam que ela era verdadeira. Esta lenda também foi narrada por Pomponius Mela.

No século II a.n.e. o geógrafo grego Pausânias contou a história do rei Licaão da Arcádia, que foi transformado em lobo porque sacrificou uma criança no altar de Zeus Liceu. Na versão escrita em latim por Ovídio nas suas “Metamorfoses”, quando Zeus visitou Lacaão, disfarçado de homem comum, o visitado quis testar se ele era realmente um deus. Para tanto, matou um refém molossiano e entregou as entranhas da vítima a Zeus. Enojado, este transformou Licaão em lobo. No entanto, noutros relatos da lenda, como o da Bblioteca de Apolodoro, Zeus atacou-o, bem como aos filhos, com raios e coriscos, como como punição divina.

Esta história também é contada por Plínio, o Velho, que chama a Licaão a Demaenetus, citando Agripas. Segundo Pausânias, este não foi um acontecimento único, já muitos homens foram transformados em lobos durante os sacrifícios a Zeus Liceu. Se eles se abstivessem de comer carne de gente enquanto eram lobos, seriam restaurados com a forma humana nove anos depois, mas, se não se abstivessem, permaneceriam lobos para sempre.

Os primeiros autores cristãos também mencionaram lobisomens. Na obra “Cidade de Deus”, o bispo Agostinho de Hipona (Santo Agostinho) faz um relato semelhante ao encontrado em Plínio, o Velho. Agostinho explica que "é geralmente aceite que, por certos feitiços de bruxa, os homens podem ser transformados em lobos.”

Esta metamorfose fisionómica também foi mencionada no “Capitulatum Episcopi”, atribuído, desde a sua reunião no século IV, ao Concílio da Ancira e tornou-se texto doutrinário da Igreja em relação à magia, bruxas e transformações como as dos lobisomens. Nele está escrito que “quem acredita que qualquer coisa pode ser transformada noutra espécie ou semelhança, exceto pelo próprio Deus é sem dúvida um infiel.”

Há também evidências de uma crença generalizada em lobisomens na Europa medieval. Os lobisomens foram mencionados em códigos de então, como o do Rei Canuto II da Dinamarca, cujas “Ordenações Eclesiásticas” nos informam de que esses códigos visam garantir que “o lobisomem loucamente audacioso não devaste muito, nem morda muitos dos membros do rebanho espiritual.”

Liuprando de Cremona, por sua vez, fala de um boato segundo o qual Bajan, filho de Simeão I da Bulgária, poderia usar magia para se transformar em lobo.

As obras de Agostinho de Hipona tiveram grande influência no desenvolvimento do cristianismo ocidental e foram amplamente lidas pelos clérigos do período medieval que ocasionalmente peroravam sobre lobisomens em suas obras. Exemplos famosos incluem “Werewolves of Ossory”, de Geraldo de Gales, na sua “Topographica Hibernica”, assim como em “Otia Imperiala”, de Gervase de Tilbury, ambos escritos para o público real.

Gervase revela que a crença em tais transformações (ele também menciona mulheres que se transformam em gatos e em cobras) foi difundida por toda a Europa. Usa a frase “que ita dinoscuntur”, ao discutir essas metamorfoses, que significa “é conhecido”". Escreveu na Alemanha e também diz que a transformação de homens em lobos não pode ser facilmente descartada, pois “na Inglaterra, muitas vezes vimos homens transformarem-se em lobos (“Vidimus enim frequenter in Anglia per lunationes homines in lupos mutari”).

As tradições pagãs germânicas associadas a homens-lobos persistiram por mais tempo na Era Viking escandinava. Harald I da Noruega tinha um corpo de Úfhednar, os “homens revestidos de lobo”, que são mencionados em “Vatnsdœla, Haraldskvæði! e na “Saga dos Volsungos”, parecendo-se com algumas lendas de lobisomens.

Os Úlfhednar eram lutadores semelhantes aos berserkers, embora se vestissem com peles de lobo, em vez de peles de urso, e tivessem a reputação de absorver os espíritos desses animais para aumentarem a eficácia na batalha. Úlfhednar e os berserkers estão intimamente associados ao deus nórdico Odin que deu excelente substância a Wagner para as suas óperas.

As crenças escandinavas deste período podem ter-se espalhado pela Rússia de Kiev, dando origem aos contos eslavos de lobisomens. Um príncipe bielorrusso do século XI, Vseslav de Polotsk, foi descrito como um lobisomem, capaz de se deslocar em velocidades sobre-humanas, conforme se pode ler no “Conto da Campanha de Igor”:

“Vseslav, o príncipe, julgou os homens; como príncipe, ele governou cidades; mas à noite ele rondava disfarçado de lobo. De Kiev, rondando, ele alcançou, antes da tripulação dos galos,Tmutorokan. O caminho do Grande Sol, como um lobo rondando, ele cruzou. Para ele, em Polotsk, os sinos tocavam cedo para as matinas em Santa Sofia; mas ele ouviu o toque em Kiev.”

“Ser um lobisomem” era uma acusação comum em julgamentos de bruxas ao longo da história, e apareceu até nos julgamentos de bruxas de Valais, um dos primeiros casos desse tipo, no século XV.

Na “Historia de Gentibus Septentrionalibus”, Olaus Magnus descreve uma assembleia anual de lobisomens perto da fronteira Lituânia-Curlândia. Os participantes, incluindo a nobreza lituana e lobisomens das áreas vizinhas, reniam-se para testarem a sua força, tentando saltar sobre as ruínas de uma muralha de castelo. Aqueles que conseguiam eram considerados fortes, enquanto os participantes mais fracos eram punidos com chicotadas.

Também houve numerosos relatos de ataques de lobisomens – e consequentes julgamentos judiciais – na França do século XVI. Nalguns casos havia provas claras contra os acusados de homicídio e canibalismo, mas nenhuma associação com lobos. Noutros, as pessoas ficaram aterrorizadas com essas criaturas, como no caso de Gilles Garnier em Dole, em 1573, que foi condenado por ser lobisomem.

Um pico de atenção para com à licantropia ocorreu no final do século XVI, como parte da caça às bruxas na Europa. Vários tratados sobre lobisomens foram escritos na França entre 1595 e 1615. Lobisomens foram avistados em 1598 em Anjou e um lobisomem adolescente foi condenado a prisão perpétua em Bordéus em 1603. Henry Boguet escreveu um longo capítulo sobre lobisomens em 1602. No Vaud, lobisomens foram condenados em 1602 e 1624. Um tratado escrito por um pastor de Vaud em 1653 afirma-se, no entanto, que a licantropia é puramente uma ilusão.

Depois disso, o único registo adicional do Vaud data de 1670: é o de um menino que alegou ter, tanto ele como a mãe, a capacidade de se transformarem em lobos, o que não foi levado a sério. No início do século XVII, a bruxaria foi perseguida por Jaime I da Inglaterra, que considerava os “warwoolfes” vítimas de um delírio induzido por “uma superabundância natural de melancolia”.

Depois de 1650, a crença na licantropia desapareceu em grande parte da Europa de língua francesa, como consta da “Enciclopédia", de Diderot, onde os relatos de licantropia não são mais que um “transtorno do cérebro".

A parte da Europa que mostrou interesse mais vigoroso pelos lobisomens depois de 1650 foi o Sacro Império Romano-Germânico. Pelo menos nove obras sobre licantropia foram impressas na Alemanha entre 1649 e 1679. Nos Alpes austríacos e bávaros, a crença em lobisomens persistiu até o século XVIII. Também na nossa vizinha Galiza, em 1853, Manuel Blanco Romasanta foi julgado e condenado como autor de uma série de assassinatos, mas afirmou estar inocente devido à sua condição de “lobishome”.

Isto é corroborado pelo facto de em áreas desprovidas de lobos ocorrerem normalmente diferentes tipos de predadores mitificados: homens-hiena na África, homens-tigre na Índia, bem como homens-puma (‘runa uturuncu’ e homens-jaguar (‘yaguaraté-abá’ ou ‘tigre-capiango’) na América do Sul.

O vampiro também tinha relação com o lobisomem nos países do Leste europeu, particularmente na Bulgária, Sérvia e Eslovênia. Na Sérvia, o lobisomem e o vampiro são conhecidos como vulkodlak. Daí nasceu o famoso Drácula romeno.

Na sua obra, Gerard registrou os relatos das diversas etnias que fazem parte da Transilvânia (alemães, ciganos, húngaros, romenos, entre outros) sobre diversos aspetos da vida na região, bem como as superstições sobre o mau-olhado, espíritos, bruxas, vampiros (dos tipos strigoi, moroi e nosferatu) e lobisomens (representados pelos prikolitch e pelo vârcolacve):

“O primo-irmão do vampiro, o werwolf dos alemães, é encontrado aqui sob o nome de Prikolitsch. Às vezes é um cão e não um lobo, cuja forma um homem assumiu, ou foi obrigado a assumir, como penitência pelos seus pecados.

Numa aldeia ainda se conta — e acredita-se – a história de um homem que, num domingo, voltando para casa com a esposa, sentiu de repente que havia chegado o momento da sua transformação. Entregou-lhe as rédeas da carruagem em que seguiam e correu para o meio dos arbustos, onde, murmurando uma fórmula mística, deu três cambalhotas sobre uma vala.

"Logo depois, a mulher, que esperava em vão pelo marido, foi atacada por um cachorro furioso, que saiu latindo do mato e conseguiu mordê-la com força e rasgar-lhe o vestido. Quando, uma ou duas horas depois, a mulher chegou a casa depois de dar o marido como perdido, ficou surpresa ao vê-lo a vir sorrindo ao seu encontro; mas quando entre os dentes dele ela avistou os pedaços de seu vestido mordidos pelo cachorro, o horror dessa descoberta a fez desmaiar."

Há referências muito antigas ao lobisomem em Portugal. Aparece no “Rifão” de Álvaro de Brito (Cancioneiro Geral):

"Sois danado lobisomem,

Primo d’Isac nafú;

Sois por quem disse Jesus

Preza-me ter feito homem."

(Garcia de Resende, in “Excertos”)

É também mencionado no “Vocabulário Português e Latino”, de Rafael Bluteau, e num soneto de Bocage:

"Profanador do Aónio santuário,

Lobisomem do Pindo, orneia ou brama,

Até findar no Inferno o teu fadário!"

(Bocage, in “Obras Escolhidas”.

No século XIX, Alexandre Herculano escreveu sobre o lobisomem da região da Beira-Baixa:

“Os lubis-homens são aqueles que têm o fado ou sina de se despirem de noite no meio de qualquer caminho, principalmente encruzilhada, darem cinco voltas, espojando-se no chão em lugar onde se espojasse algum animal, e em virtude disso transformarem-se na figura do animal pré-espojado. Esta pobre gente não faz mal a ninguém, e só anda cumprindo a sua sina, no que têm uma cenreira mui galante, porque não passam por caminho ou rua, onde haja luzes, senão dando grandes assopros e assobios para se lhas apaguem, de modo que seria a coisa mais fácil deste mundo apanhar em flagrante um lubis-homem, acendendo luzes por todos os lados por onde ele pudesse sair do sítio em que fosse pressentido. É verdade que nenhum dos que contam semelhantes histórias fez a experiência. (in “Opúsculos”).

Nos seus estudos sobre mitologia popular, o escritor e etnógrafo Alexandre Parafita reconhece que, embora a designação sugira tratar-se de um ser híbrido de homem e lobo, muitas das crenças sobre esta criatura identificam-na na figura tanto de lobo, como cavalo, burro ou bode, consistindo o seu fadário em ir despir-se à meia-noite numa encruzilhada, espojando-se no chão, onde um animal já antes fizera o mesmo, após o que se transforma nesse animal para ir “correr fado”.

Camilo escreve nos “Mistérios de Lisboa”:

“A porta em que bateu o padre Diniz comunicava para a sala em que estavam duas criadas da duquesa, cabeceando com sono, depois que se fartaram de anotar as excentricidades de sua ama, que, a acreditá-las, há cinco anos que cumpria fado, espécie de Loba-mulher, ou Lobis-homem fêmea, se os há, como nós sinceramente acreditamos.”

Pronto, por hoje basta. Já estou a ficar com fome, como quando saí da barbearia do Sr. Manuel Sacristão, naquela noite enluarada de lobisomens.


2024 10 20

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sábado, 19 de outubro de 2024

Bruno Amaral de Carvalho - Beirute, capital da resistência




Bruno Amaral de Carvalho [*]
 
Uma cidade é feita de muitas contradições, das suas luzes e sombras, dos seus cheiros e sons e, sobretudo, das histórias de quem nela vive. Das costureiras aos artesãos, dos taxistas às cozinheiras. O Líbano é, hoje como no passado, um lugar assediado pelas bombas israelitas, onde mulheres e homens enfrentam a invasão com a dignidade de quem entende estar do lado certo da história. Beirute, uma vez mais, é a capital da resistência.

Esta mulher que está sentada no chão, de negro da cabeça aos pés, na marginal de Beirute, não tem praticamente nada. Não tem nome porque não se quer identificar nem que se lhe mostre o rosto. Um chapéu de sol, um colchão individual de espuma e a roupa que tem no corpo foi tudo o que conseguiu trazer na noite em que Israel começou a bombardear o seu bairro, nos subúrbios a sul de Beirute. Já passou uma semana desde que fugiu de casa com a família. A princípio, lavavam-se num dos muitos hoteis e condomínios de luxo com vista para o Mediterrâneo. Agora, nem isso podem fazer, diz, porque os proprietários se fartaram. Como esta família, há milhares de famílias por todas as partes. No areal da praia, no passeio marítimo, nos separadores e rotundas, em jardins, escolas, em varandas de casas sobrelotadas.

O governo libanês afirma que há, neste momento, um milhão de refugiados, números nunca vistos num país que já foi invadido por Israel quatro vezes, que viveu uma guerra civil e que tinha, até há bem pouco tempo, no seu território, cerca de dois milhões de refugiados palestinianos e sírios. Milhares de libaneses fogem agora para a Síria e para o Iraque. Os ricos fogem de iate para Chipre, numa prova irrefutável de que, como sempre, as tragédias são vividas de forma diferente consoante a classe social a que se pertence. Contudo, Beirute não esquece os seus e, por todo o lado, em cada esquina, é possível ver quem descarregue colchões, garrafões de água e outro tipo de víveres essenciais. E em vários pontos da cidade, organizações políticas recorrem à força para rebentar as portas fechadas de hotéis e edifícios desabitados para abrigar os refugiados, como aconteceu no bairro de Hamra, numa das primeiras madrugadas a seguir aos primeiros bombardeamentos. Num ato de revolta, gritando contra Israel, cerca de meia centena de jovens arrancaram o portão de um prédio vazio e a seguir conduziram várias famílias para o seu interior.

Dahieh, o coração da resistência

Esta mulher que está sentada no chão sem praticamente nada não é de um bairro qualquer. É de Dahieh, e Dahieh é uma espécie de nome maldito para Israel. Todas as noites, sem exceção, a população que vive no bastião do Hezbollah é castigada por apoiar a resistência. Foi aqui que no dia 27 de setembro a aviação israelita lançou 80 bombas com quase uma tonelada de explosivos sobre o quartel-general da organização xiita para matar Hassan Nasrallah e outras figuras importantes. De lágrimas nos olhos, diz ainda não acreditar que morreu. “Precisamos do Hezbollah para nos defender”. Durante quase um dia, o país parou em suspenso. Apoiantes e inimigos, todos esperavam saber da sorte de Nasrallah. Por volta das 14 horas do dia seguinte, gritos e lágrimas tomaram conta das ruas. E mulheres vestidas de negro como esta choraram a morte do seu herói.

O histórico secretário-geral do Hezbollah negociava uma trégua quando foi assassinado por Israel, o mesmo que acontecera ao líder do Hamas, Ismail Haniyeh, no Irão. Então, os Estados Unidos haviam prometido a Teerão que Telavive aceitaria o cessar-fogo se não respondesse ao atentado. Com a cumplicidade dos Estados Unidos, não só isso não aconteceu, como Israel estendeu a sua guerra ao Líbano e intensificou os ataques na Síria e no Iémen.

Caminhar pelo bairro de Dahieh é percorrer ruas completamente destruídas, ver automóveis esmagados e crateras onde antes havia prédios. É um cenário desolador. Sobre uma montanha de destroços, alguém pôs o retrato de Hassan Nasrallah. “Fuck Israel, we will win!”, gritam vários jovens quando se apercebem de que há jornalistas na zona. À Voz do Operário, um militante do Hezbollah que aceita falar sob anonimato recorda o papel do até agora líder da organização. “Era enorme. Tiveram de usar uma tonelada de explosivos para o matar. Prevaleceremos e venceremos”, afirma.

Há, neste momento, por parte de Israel, uma campanha de assassinatos de dirigentes das principais organizações da resistência libanesa e palestiniana. No bairro de Kola, em Beirute, a aviação israelita destruiu três andares de um prédio para matar três destacados militantes da Frente Popular para a Libertação da Palestina, a histórica organização comunista que combate ao lado do Hamas e outras forças da resistência contra as forças de Israel em Gaza e na Cisjordânia.

A violência do ataque atirou varandas de ferro para o outro lado da rua. Ali, num descampado debaixo de um viaduto, centenas de documentos, livros e cartazes jaziam inertes como prova de fogo. Um documento de saudação à libertação de Lula da Silva da prisão, um cartaz com Fidel Castro a discursar em Havana e o retrato de Lénine eram alguns dos objetos que se podiam encontrar no local. No dia seguinte ao ataque, milhares de palestinianos e libaneses acompanharam o funeral que percorreu os vários campos de refugiados.

Israel ataca hospitais e centros de saúde

O Hospital Rafik Hariri fica ao lado do campo de refugiados palestinianos Mar Elias e demasiado perto de Dahieh. É o maior centro hospitalar de Beirute, com espaço para 550 pacientes. Todos os dias chegam aqui mulheres e homens vítimas das bombas de Israel. Neste momento, 80% da capacidade ocupada corresponde a feridos de guerra. “Até ao momento, temos reduzido ao máximo casos que podem ser adiados. Queremos todas as camas para as vítimas da guerra”, explica Jihad Sade, o diretor hospitalar, no seu gabinete. Com a experiência de quem já viveu várias invasões israelitas, descreve os trabalhadores que dirige como muito preparados para tratar o tipo de feridas mais comuns neste cenário de conflito.

Com o número de mortes provocadas por Israel desde 8 de outubro de 2023 a chegar aos 2 mil, incluindo 127 crianças, Jihad Sade diz que é imprevisível o comportamento de Telavive em relação aos equipamentos de saúde. Em Bachoura, um bairro central de Beirute, Israel atacou um centro de saúde durante a noite e matou nove profissionais de saúde. Como em Gaza, as forças israelitas não têm linhas vermelhas e ao fecho desta edição tinham morto já 73 destes trabalhadores em diferentes partes do país.

De acordo com este médico, a guerra vai acabar quando houver respeito entre todos. “Dêem direitos [aos palestinianos]. A força é temporária e o conflito não vai acabar se não respeitarem os direitos [dos palestinianos].

07/Outubro/2024

[*] Jornalista.

O original encontra-se em vozoperario.pt/jornal/2024/10/07/beirute-capital-da-resistencia/

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Carlos Matos Gomes - O julgamento de Ricardo Salgado — Big Show BES

* Carlos Matos Gomes


O julgamento de Ricardo (Espirito Santo) Salgado é um espetáculo de farsa politica com a cobertura de legalidade proporcionada pelo sistema judicial e encenado pela comunicação social.

A justiça do Estado sacode as pulgas do tapete para assegurar o regime de capitalismo de papel e especulação. Os políticos do regime fazem de macacos cegos surdos e mudos. A indústria do espetáculo aproveita o espetáculo grátis e aumenta as audiências. O povo aplaude e compra os produtos anunciados nos intervalos. No entanto está em causa o julgamento do sistema financeiro que é o fundamento do capitalismo, seja ele gerido por democracias liberais ou ditaduras. Um sistema implantado no final do século XVII pela família Rothschild.

Deixem-me emitir e controlar o dinheiro de uma nação e não me importarei com quem redige as leis.

Mayer Amschel (Bauer) Rothschild, o fundador da família

Todo aquele que controla o volume de dinheiro de qualquer país é o senhor absoluto de toda a indústria e comércio, e quando percebemos que a totalidade do sistema é facilmente controlada, de uma forma ou de outra, por um punhado de gente poderosa no topo, não precisaremos que nos expliquem como se originam os períodos de inflação e depressão.

James Garfield, presidente dos Estados Unidos, 1881(assassinado)

Por detrás deste espetáculo do julgamento de Ricardo Salgado encontra-se a relação de dupla dependência entre a política e a finança anunciada no final do século XVII por Mayer Amschel (Bauer) Rothschild, o fundador da família que criou o sistema bancário que da Europa, através do Banco de Inglaterra, expandiu para os Estados Unidos, onde se associou à família Rockefeller e que está na base do FED, a Reserva Federal Americana. O sistema que os Espirito Santo e os outros banqueiros utilizaram e utilizam para obter lucros assenta no que pomposamente se designa por fractional reserve lending, (FRL) ou “empréstimo baseado numa reserva fracionada”, ou “empréstimo sem cobertura ou base real”. Embora de enunciado complexo, a prática é muito simples;significa emprestar mais dinheiro do que está em caixa e transformou-se na maior fraude legal de todos os tempos.

O sistema bancário de reserva fracionada é o que vigora em todos os países do mundo, no qual os bancos que recebem depósitos do público mantêm apenas parte de seus passivos de depósito em ativos líquidos como reserva, geralmente emprestando o restante aos tomadores. As reservas bancárias são mantidas como dinheiro no banco, ou como saldos na conta do banco no banco central.

A família Espirito Santo foi a que primeiro e mais intensamente interpretou estes princípios em Portugal e os impôs ao poder político, desde o fundador da família ter evoluído de dono de uma casa de câmbios até os seus filhos surgirem como os banqueiros do regime de Salazar e desempenharem um papel político de primeira grandeza no Portugal do Estado Novo durante o período crucial da Segunda Guerra Mundial, colaborando na manutenção do difícil equilíbrio entre os aliados ingleses e a Alemanha nazi.

Os Espirito Santo, a quem a imprensa da época chamava “os Rockefeller de Portugal”, ofereceram refúgio às realezas fugidas da guerra, entre eles os condes de Paris, com os seus dez filhos, os condes de Barcelona, o rei Humberto de Itália, e o mais significativo de todos, o Duque de Windsor que acabara de abdicar do trono em Inglaterra, apesar de essa presença ser delicada para o regime de Salazar por prejudicar a sua pretensa neutralidade e de também não ser do agrado Churchill dadas as simpatias pro germânicas do duque ex.rei.

Ricardo Espirito Santo, o herdeiro do fundador, culto e muito amigo de artistas, tinha as costas quentes, era casado Maria Pinto de Morais Sarmento y Cohen, filha de un banqueiro de Gibraltar, Abraham Cohen, britânico de origem judaica, e sobrinha do barão de Sendal e através deste casamento os Espirito Santo conheceram e fizeram amizade com toda a realeza exiliada em Cascais e com as suas redes de influência.

O Banco Espirito Santo era, de todos os bancos portugueses, o mais internacionalizado e o que tinha mais fortes ligações ao Estado. A sua nacionalização em 1975 não quebrou a influência da família na política portuguesa, nem quebrou a ligação da família ao mundo da grande banca internacional. Pertenci à Assembleia do MFA do dia 11 de março de 1975 que aprovou a nacionalização da banca. Consciente da importância da banca na definição do poder político. Sofri as consequências dessa opção no 25 de Novembro de 25 de 1975, assumindo-as como naturais da parte dos que optaram pelo regime de “mercado” e pelos seus financiadores.

O 25 de Novembro de 1975 e o seu programa de integração de Portugal na ordem política e económica vigente na Europa Ocidental, implicava as privatizações indispensáveis à recuperação do poder das velhas oligarquias e da ascensão das novas, exigia a criação de novos bancos, caso do BCP e do BPI e aconselhava o regresso da marca mais prestigiada internacionalmente, a que garantia a credibilidade do novo regime. Mário Soares percebeu a importância do regresso de um nome tão prestigiado e com tão boas relações no mundo da finança internacional e promoveu o regresso da família Espirito Santo a Portugal, o que foi conseguido através dos bons ofícios de Francois Miterrand com a associação ao Crédit Agricole.

Há razões nunca explicadas por detrás da “resolução do BES” e as principais não são aquelas que se encontram no julgamento espetáculo. Com todo o respeito pelos lesados do BES, que viram sumir as suas economias e exprimem o seu protesto contra a figura de Ricardo Salgado, há que explicar se foi o Estado Português que propôs a resolução do BES à Comissão Europeia, ou se foi dela a imposição dessa medida jamais utilizada. Não havia alternativa? Não havia o exemplo do Lehman Brothers, da seguradora AIG, não foi encontrada recentemente uma outra solução para a União dos Bancos Suíços?

O BES era o único banco privado com “nacionalidade portuguesa”, embora associado ao Crédit Agricole francês. Todos os outros bancos que resultaram da reprivatização tinham passado para o controlo da banca espanhola, de capitais ingleses, americanos, alemães. Todo o sistema bancário português tem a sede em Espanha, em Madrid ou Barcelona. O sistema bancário português está hoje integrado no sistema mundial através de Espanha, o chamado “mercado ibérico”.

O BES tinha, por tradição, o papel de banco do regime, fora o banco que assegurou a transferência do ouro alemão que pagou o tungsténio, o volfrâmio, durante a Segunda Guerra, por exemplo. Nos anos anteriores à resolução era o BES que estava a financiar a implantação de grandes companhias portuguesas no Brasil e em Angola, dois mercados emergentes e muito cobiçados pela finança internacional, em particular a inglesa e a francesa. Era o BES que financiava a implantação da TELECOM no Brasil, uma ação importante de presença num grande mercado em expansão no continente sul-americano, e era o BES que estava a financiar através de uma filial, o BESA, o apoio a empresas portuguesas no mercado de Angola, outro espaço cobiçado pela banca internacional.

O BES intervinha na diversificação dos mercados de grandes empresas portuguesas em mercados importantes em concorrência com os grandes bancos europeus que têm, como é evidente, um peso de lobbying incomparavelmente superior junto de Bruxelas e dos seus financeiros. Era um concorrente a eliminar e assim foi.

Todo o negócio bancário se baseia na usura, toda a utilização do capital para obter lucro é abusiva, isto porque o lucro é obtido com a venda de um produto que não tem base material, que existe apenas porque as autoridades de um dado estado garantem que o banqueiro, o moneychanger, é de confiança e honrará o compromisso de pagar os juros aos depositantes.

O BES sob a administração de Ricardo Salgado vendeu mais dinheiro do que aquele que podia remunerar aos juros acordados. E fê-lo coberto pela reputação de confiança que lhe era e foi publicamente demonstrada pelas mais altas figuras do Estado, o presidente da República, Cavaco Silva, tido por eminente professor de Finanças, pelo primeiro-ministro Passos Coelho, pela ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, recentemente nomeada pelo atual governo comissária europeia, pelo governador do Banco de Portugal, a entidade reguladora, Carlos Costa, pelos mais conceituados comentadores políticos com acesso aos mais poderosos meios de comunicação, caso de Marcelo Rebelo de Sousa. Todos serviram de fiadores de Ricardo Salgado! Todos e todos os ministros que assinaram a ata do Conselho de Ministros que decretou a “resolução” do BES deviam responder em tribunal e serem corresponsabilizados pelos prejuízos.

O BES foi também a instituição escolhida pelo ministério da Defesa dirigido por Paulo Portas para conduzir as operações financeira de leasing que esteve e está na base do fornecimento dos helicópteros EH 101 e dos submarinos da classe Tridente, que pertencem formalmente a uma empresa e não ao Estado Português. Um banco da maior confiança do Estado e dos seus governos, de que nenhum agente político desconfiou, antes pelo contrário afiançou.

O que aconteceu ao BES, ou no BES, foi, em termos simples um excesso do abuso de confiança dentro de um sistema, o bancário, que assenta num contínuo abuso da confiança instituído pelos Estados que obrigam os cidadãos a confiar nos usurários (os banksters) para terem acesso aos bens essenciais, desde a habitação ao transporte, à alimentação, à educação, ao lazer. Quem estabelece o valor dos bens são, em última instância, os banqueiros que em Washington e na Wall Street de Nova Iorque impõem o valor do dólar como moeda de troca universal. São eles que estabelecem a inflação que gera lucros aos banqueiros e prejuízos aos clientes. São eles que desencadeiam crises e guerras para manipular o valor do dinheiro.

Agora, no Big Show BES, tudo se vai resumir a artigos dos vários códigos diante de um tribunal que interpretará factos contabilísticos, considerando-os crime ou não à luz dos seus preceitos, quando a questão era e é de política e os políticos estão todos eles a fazerem-se de mortos. Ou praticaram o rito judaico do Kaparot, realizado nas vésperas do Yom Kippur, uma expiação simbólica dos pecados, em que milhares de galos e galinhas são degolados em Israel e o sangue derramado pelas cabeças. Um ritual de arrependimento e perdão.

Numa entrevista ao Público, Vitor Bento, o administrador do BES na data da sua resolução e é hoje o presidente da Associação Portuguesa de Bancos, garante que o que aconteceu ao BES não aconteceria hoje e que o sistema bancário português está mais controlado e merece confiança. É uma afirmação paliativa, como garantir que não vai ocorrer um terramoto.

O sistema financeiro mundial baseado no dólar está em equilíbrio periclitante. As guerras na Ucrânia e no Médio Oriente têm como causa a manutenção do dólar enquanto moeda de troca universal, o que implica força para o impor e é essa força que está a ser desafiada nessas guerras e é do resultado delas que depende a solidez do sistema bancário da área do dólar, que está a sofrer a concorrência das moedas dos BRICS.

O julgamento de Ricardo Salgado conduz à triste conclusão de que no capitalismo os cofres dos bancos contêm papel que tem o valor que a Reserva Federal dos Estados Unidos lhe atribuir e que os Estados nacionais atestam com a assinatura do governador do banco nacional. Nenhum cidadão sabe o que significam os algarismos do seu extrato bancário.

Alguém decidiu que as “obrigações” emitidas pelo BES eram papel sem valor e eram, mas resta a pergunta, porque elas, porque aquelas? Porque ninguém do BCE em Franckfurt ao Banco de Portugal em Lisboa viu o que se estava a passar no BES? Essas perguntas jamais serão colocadas em tribunal.

O espetáculo no Campo da Justiça, centrado na figura de um vencido que gera sentimentos de vingança a vários níveis, a do poderoso arrastado para o cadafalso, também esconde a vileza das ratazanas políticas que continuam a representar o seu número de macacos cegos, surdos e mudos. 

Já agora, não há lesados no caso BPN, dos amigos de Cavaco Silva, nem do BANIF da Madeira.

2024 10 17

https://cmatosgomes46.medium.com/o-julgamento-de-ricardo-salgado-big-show-bes-7861cc357d4f

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Miguel Esteves Cardoso - Ler às pilhas é o melhor

* Miguel Esteves Cardoso

Ler em pilhas é a melhor maneira de ler. As pilhas não podem ter mais de 8 livros cada uma, para não dificultar muito a extracção. Isto sabendo que apetece sempre mais ler o livro que está por baixo.

16 de Outubro de 2024

Não consigo entrar num estúdio de rádio sem pensar em livros. Aquela mesa oval, enorme, vazia, limpíssima, com um buraco no meio, dá-me vontade de ler.

Imagino-me no buraco, em cima de uma cadeira com rodas, a circular por dentro da mesa, cheia de pilhas e mais pilhas de livros novinhos em folha, todos a competir pela minha atenção


É assim que está a minha sala de estar neste momento, com pilhas de livros por toda a parte, mas sempre à mão dos sofás onde me sento.


Ainda não foram arrumados – o que, em língua livreira, significa esquecidos, sepultados, comprimidos uns contra os outros para nunca mais poderem dançar.

 
Ler em pilhas é a melhor maneira de ler. As pilhas não podem ter mais de oito livros cada uma, para não dificultar muito a extracção. Isto sabendo que apetece sempre mais ler o livro que está por baixo deles todos.


Mas é espantosa a quantidade de pilhas que se pode ter à volta de um sofá – sobretudo com a cumplicidade de umas mesinhas e de uns jornais velhos dobrados, para não serem contaminadas pelo chão.

Na leitura – se é que quer mesmo competir com a Internet – o que conta é o acesso. Isso de uma pessoa levantar-se estraga tudo. Quem consulta paga multa. E então quando não se encontra o raio do livro e é preciso percorrer as prateleiras com o mandado de busca nas mãos vazias.

O ser humano lida bem com o número oito. É só uma meia dúzia mais dois: o ideal para uma pilha temática. O segredo é saber fazer as pilhas, segundo os autores, ou as urgências, ou os apetecimentos mais frequentes.

Depois, há a disposição das pilhas: a pilha mais perto de si tem de ser um pódio – e todos os dias tem de ser reavaliada, para ver quem merece lá ficar.


Em cada pilha, o livro de cima é o único que tem o direito de mostrar a capa. Tem de ser muito bem escolhido, porque é esse – a preguiça é tramada – em que mais vezes irá pegar.

Claro que as pilhas são temporárias. São umas férias de Verão, antes de ir para o Inverno das estantes.

Colunista

https://www.publico.pt/2024/10/16/opiniao

Carlos Coutinho - [As clarissas em Portugal]



* Carlos Coutinho

2024 10 16

JULGO que poucos serão os conhecedores de que as clarissas são as autoencurraladas monjas da Ordem de Santa Clara., organização católica romana que dispôs de um enorme poder económico e político-militar, instalada que foi num imponente convento edificado às suas ordens na foz de um rio desprovido de asas, o Ave, em Vila do Conde, terra do poeta presencista que ao vai “por aí”, José Régio e que era colecionador de crucifixos, além de irmão de um notável pintor, Júlio, que também escrevia versos.

   Muito menos ainda serão os que sabem ter a Ordem de Santa Clara, meio século após ter chegado a Portugal, abriu em Lamego, Alto Douro, em 1254, o seu primeiro convento, sob a jurisdição dos franciscanos, que gostavam de “escadas a subir para o céu”, tendo alegadamente surgido de um sonho que Teresa Martins e Afonso Sanches, filho bastardo de D. Dinis, em que um “fumo odorífero” brotava do interior da terra. Aliás, segundo o cronista franciscano Manuel da Esperança, na sua “Corte da Glória”, tal foi um fenómeno recorrente em Portugal, em diferentes séculos e lugares, tendo o também franciscano e cronista frei Fernando da Soledade deixado escrito que uma mulher de “aprovada virtude” sonhou igualmente, no século XVI, com os mesmos odores no mesmo lugar, o que levou  mais tarde a rainha D. Leonor, a das misericórdias, a  ter a mesma “visão” aromática e a mandar construir em Lisboa o Convento da Madre de Deus que agora, para desgosto de muitos turistas, tem as portas sempre encerradas, não vá o Diabo tecê-las.

      De acordo com a sua carta de fundação, o ascetário de Vila do Conde destinava-se a jovens fidalgas descendentes de famílias nobres caídas em ruina. O regime era de clausura absoluta e, em contraste com o riquíssimo património do mosteiro, “tudo era muito pobre”, garante frei Fernando da Soledade: as freiras andavam descalças e vestiam apenas uma túnica de sarja ou um silício  de tecido grosseiro; nas celas tinham como cama alguns ramos de carqueja e cobertas pobres; consumiam dietas frugais de peixe e vinho, água e pão.

   Francamente, para mim, andar sem cuecas ainda vá lá - já tenho visto gente assim -, mas dormir em cima de uns agrestes ramos de carqueja, só as brasas com que se cozia o pão e o arroz do forno na minha casa da infância.

   Havia, no entanto, fartura por ali. Pescava-se no rio Ave trutas, sáveis e lampreias e no porto de mar as embarcações dos pescadores locais prodigalizavam peixe todo o ano. As searas tinham abundância de trigo, milho e centeio, árvores de fruto e boas hortaliças. Duas vezes por mês, havia feira franca no largo principal e a pacatez estabelecida era apenas quebrada uma vez por ano, durante a grande Feira de Santo Amar, que durava três dias e era montada no terreiro da capela homónima. 

   A vila, segundo a investigadora Maria José Oliveira, era pequena, mas bem dotada de autoridades locais – tinha alcaide e três vereadores, juízes de fora, dos órfãos da alfândega, escrivães e tabeliães, procurador do concelho e almoxarife, instituições públicas – (câmara, tribunal, casa da misericórdia, hospital e cadeia). Nenhuma notabilidade, porém, conseguia competir com o poder das freiras de Santa Clara, proprietárias de um vasto conjunto de herdades, coutos, lugares e vilas que mantiveram ferreamente os seus bens, rendas, padroados e aforações durante mais de cinco séculos. Em alguns momentos, esse poder foi disputado e guerreado com corregedorias, provisores e cúpulas eclesiásticas. 

   Em 1511, por exemplo, o bispo de Ceuta excomungou-as, depois de elas se terem barricado no convento, trancando portas e encerrando as igrejas, como protesto contra reformas decretadas pela Igreja Curiosamente, diz a investigadora, o mesmo método foi replicado no ano passado num convento de Burgos, Espanha, por freiras também da Ordem de Santa Clara). 

   Por vezes, irrompiam motins e rebeliões internas, com as clarissas a exigirem mudanças na cúpula conventual, alegando inquietações e injustiças, como regista abundante documentação do século XVI, quando o mosteiro deixou de ter o senhorio de Vila do Conde, mas a sua influência a diminuiu: a abadessa continuava com o privilégio de nomear diretamente as autoridades administrativas da terra: mantinha, terras, rendas, direitos reais, dízimos, tributos sobre o peixe, o pão e o sal; e eram donatárias da barca de passagem do rio Ave que lhes garantia opulentas receitas. 

   Quem diria…

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sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Manuel Loff - Um ano de completa impunidade

 * Manuel Loff  

Até ontem, os países NATO, um após o outro, exortavam Israel a não invadir o Líbano e enviavam a este país aviões... para recolher o seu pessoal diplomático e os cidadãos que queiram e, num país onde um milhão de pessoas (uma em cada cinco) tiveram de fugir de casa, consigam sair. Mas não enviaram aviões de combate para reforçar as Forças Armadas libanesas contra o invasor israelita, como fizeram com a Ucrânia. O que vale para a Ucrânia não vale para o Líbano. Num ano inteiro não valeu para Gaza, a Cisjordânia, territórios invadidos não há dois, mas há 67 anos. Num ano morreram incomparavelmente mais civis em Gaza do que em mais de dois anos e meio na Ucrânia — e Biden e Von der Leyen pedem aos países árabes a mesma desescalada e diplomacia cujo oposto praticam intensamente há anos na Ucrânia.

É insólito este medo de uma guerra generalizada na boca de quem governa deste lado do mundo. Ontem mesmo, Biden deu as ordens necessárias para comprometer (mais ainda) os EUA nas guerras de agressão israelitas. Depois de terem justificado a chuva de mísseis sobre Beirute como uma merecida punição do Hezbollah, os EUA substituíram-se aos israelitas na interceção dos mísseis iranianos para proteger Netanyahu e os genocidas que o acompanham. E disponibilizam para a guerra os 43 mil soldados que, por vezes contra a vontade dos respetivos governos, têm na região. E assim se procura “evitar a guerra”...

A discussão da dualidade de critérios não é apenas moral. Ela tem implicações diretas nas vidas de milhões de pessoas. A dualidade mata. Em Gaza, na Cisjordânia, Israel comporta-se como um dos ocupantes mais sinistros da história, perpetrando represálias sobre a população civil em termos que reproduzem as represálias nazis sobre as populações dos países ocupados na II Guerra Mundial, ou as dos norte-americanos no Vietname, dos franceses na Argélia. Neste momento, com o fluxo imparável de material bélico ocidental, Israel dispara (e mata) em todas as direções: Irão, Síria, Iémen, e agora, sobretudo o Líbano. Por enquanto ordena deslocações de populações; depois passará diretamente às deportações, seguindo o exemplo de Gaza. Bombardeia cidades e campos de refugiados – dos milhões de palestinianos que na Nakba de 1948 expulsaram das suas casas, dos sírios que procuraram fugir da guerra que o Estado Islâmico e as guerrilhas que a Turquia (membro da NATO) e os EUA armaram em 2011.

Os EUA e Israel são há muito aquilo que no glossário imperial se tem chamado “Estados párias”: sequestros em prisões ilegais, tortura sistemática, assassinatos contrariando qualquer forma de direito, nacional ou internacional. Israel é o Estado do planeta que mais resoluções da ONU incumpre, o seu chefe de governo tem um mandado de captura internacional, ataca estruturas e instalações das agências da ONU e assassina os seus funcionários (e médicos, e jornalistas, e crianças...). E, contudo, aí estão os governos UE a proibir por “antissemitas” manifestações de solidariedade com as vítimas palestinianas e exigindo boicote e sanções a Israel.

Somos um mundo de impunidade e de desigualdade, lembrou há dias Guterres, onde muitos governos “podem invadir outro país, devastar sociedades inteiras ou ignorar totalmente o bem-estar do seu próprio povo” e passar por cima de “decisões dos tribunais internacionais”. Não vale a pena é imaginar que a impunidade imperial dos nossos dias é nova. O que é nova é a coerência desta “necropolítica”, deste exercício do poder de “ditar quem pode e não pode viver” como “expressão máxima de soberania” (Achille Mbembe), com esta narrativa tipicamente fascista e colonial que nos fazem das guerras expansionistas de Israel. Não somente tratando os povos árabes da região como “animais humanos”, mas contando tudo nos mesmos termos socialmilitaristas com que no Brasil se narra a entrada da polícia militar numa favela ou como na imprensa nazi se falava da “bestialidade” dos ciganos, dos judeus e dos eslavos que “ameaçavam a existência da Alemanha”.

As guerras israelitas, a sua necropolítica genocida, as décadas de ocupação impune, aplaudida, justificada, dizem tudo do que é hoje o Ocidente. A nossa posição perante elas diz tudo de cada um de nós.


2 de Outubro de 2020

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Carlos Coutinho - artigo de opinião

 * Carlos Coutinho

2024 10 03

ASSIM se vê a força da TV, isto é, a força das imagens que ontem fez um milagre na página 8 do “Público”, escarrapachando a opinião de dois historiadores, personalidades muito informadas, mas simétricas, que sentiram necessidade de convergir publicamente, já que as guerras nos estão a sair a todos muito caras e ninguém sabe como elas vão acabar. Ao fim da tarde, já noite em Beirute, vimos os clarões róseos e brancos do fogo no centro de Beirute, em direto, instantes depois de mais um bombardeamento ao centro da capital libanesa.

   Eis o que escreve o académico e ex-ministro da Administração Interna, num governo do PS, Nuno Severiano Teixeira”:

   “O Médio Oriente está a ferro e fogo. Gaza está arrasada e o Líbano em convulsão. Israel ébrio de vitórias táticas e o Irão condicionado por um dilema estratégico- Os Estados Unidos apelam à paz e Netaniahu faz a guerra. Sob a vertigem do dos acontecimentos e a ameaça de um conflito em larga escala, é difícil ver claro. Mas há duas perguntas fundamentais: como é que tudo começou? E como é que vai acabar?

   “Começou há mais de um século. É um conflito que atravessou várias fases e diferentes configurações. Entre as duas guerras, ainda sob o mandato britânico da Sociedade das Nações, assumiu a forma de uma guerra civil. Nos anos 30, os palestinianos revoltaram-se contra a instalação de judeus em Israel e contra os britânicos que a facilitaram.

   “Depois da fundação do Estado de Israel, entre 1948 e 1973, o conflito assume a forma de um conflito clássico interestatal. Os palestinianos desapareceram da equação e as grandes resoluções do Conselho de Segurança da ONU nem sequer os mencionam. O conflito é entre exércitos regulares de Israel e dos estados árabes. É tempo da chamada ‘guerra israelo-árabe’. E das grandes vitórias israelitas: 1948, 1956 e, sobretudo, a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e do Yom Kippur, em 1973. A partir de então, o conflito muda uma vez mais de configuração e aproxima-se de uma guerra assimétrica entre as forças palestinianas e o Estado de Israel. Este processo é acompanhado por uma ampla dinâmica: de desarabização do conflito e apropriação palestiniana da sua causa. Desde os acordos de paz de Camp David, em1978, que, primeiro o Egito, depois os outros estados árabes se vão afastando do conflito. Em 1993, nos acordos de Oslo, são os próprios palestinianos, através da OLP, que assinam, a paz com Israel.
 
  “Em casa, enquanto Israel vai consolidando o seu poderio militar, os palestinianos vão alimentando a sua revolta nas sucessivas intifadas 1987-1993, e 2000-2005. Uma coisa é certa: a desarabização do conflito e reapropriação palestiniana é acompanhada pelo desenvolvimento da guerra assimétrica. E é a retirada dos estados árabes que permite a entrada do Irão. Em 1988, depois da guerra Irão-Iraque, o Irão decide substituir os estados árabes no apoio à causa palestiniana e construir uma rede de influência regional de atores não esttais, explorando, precisamente, a guerra assimétrica: o Hamas, ;o Hezbollah; a Jihad Islâmica e os houtis. 

   “Agora, como é que tudo isto voa acabar?”

   O professor da Nova não sabe e eu também não. Sei que, capciosamente o Nuno Severiano finge desconhecer que Israel financiou o Hamas, porque era a forma de atacar por dento a OLP. Arafat acabou por morrer envenenado E Telavive até já tem ogivas nucleares… Adiante.

   Eis agora o que escreve o académico o ex-deputado do PCP Manuel Loff:

   “Até ontem, os países da NATO, um após outro, exortavam Israel a não invadir o Líbano e enviavam a este país aviões… para recolher o seu pessoal diplomático eos cidadãos que queiram e, num país onde um milhão de pessoas (uma em cada cinco) tiveram de fugir de casa, se conseguiam sair. Mas não enviaram aviões de combate para reforçar as Forças Armadas libanesas contra o invasor israelita, como fizeram com a Ucrânia. O que vale para a Ucrânia não vale. Num ano inteiro não valeu para Gaza, a Cisjordânia, territórios invadidos não há dois mas há 67 anos. Num ano morreram incomparavelmente mais civis em Gaza do que em mais de dois anos e meio na Ucrânia – e Biden e Von der Leyen pedem aos países árabes a mesma desescalada e diplomacia cujo oposto praticam intensamente há anos na Ucrânia. 

   “É insólito este medo de uma guerra generalizada na boca de quem governa deste lado do mundo. Ontem mesmo, Biden deu as ordens necessárias para comprometer (mais inda) os EUA nas guerras de agressão israelitas. Depois de terem justificado a chuva de mísseis sobre Beirute como uma merecida punição do Hezbollah, os EUA substituíram-se aos israelitas na interceção dos mísseis iranianos para proteger Netanyahu e os genocidas que o acompanham. E disponibilizam para a guerra os c43 mil soldados que, por vezes contra a vontade dos respetivos governos, têm na região. E assim se procura ‘evitar a guerra’.

   “A discussão da dualidade de critérios não é apenas moral. Ela tem implicações diretas nas vidas de milhões de pessoas. A dualidade mata. Em Gaza, na Cisjordânia, Israel comporta-se como um dos ocupantes mais sinistros da história, perpetrando represálias sobre população a população civil em termos que reproduzem as represálias nazis sobre as populações dos países ocupados na II Guerra Mundial, ou as dos norte-americanos no Vietname, dos franceses na Argélia. Neste momento, com o fluxo imparável de material bélico ocidental, Israel dispara (e mata) em todas as direções: Irão, Síria, I énen e agora, sobretudo o Líbano. Por enquanto ordena deslocações de populações; depois passará diretamente às deportações, seguindo o exemplo de Gaza. Bombardeia cidades ed campos de refugiados - dois milhões de palestinianos que na Nakba de 1948 expulsaram das suas casas, dos sírios que procuraram fugir da guerra que o Estado Islâmico e as guerrilhas que a Turquia (membro da NATO) e os EUA armaram em 2011.
   “Os EUA e Israel são há muito aquilo que no glossário imperial se tem chamado ‘Estados párias’: sequestros em prisões ilegais, tortura sistemática, assassinatos contrariando qualquer forma de direito nacional ou internacional. Israel é o Estado do planeta que mais resoluções da ONU incumpre, o seu chefe de governo tem um mandado de captura internacional, ataca estruturas e instalações das agências da ONU e assassina os seus funcionários (e médicos e jornalistas. E crianças…). E, contudo, aí estão os governos da EU a proibir por ‘antissemitas’ manifestações de solidariedade com as vítimas palestinianas e exigindo boicote e sanções a Israel. (…) As guerras israelitas, a sua necropolítica genocida, as décadas de ocupação impune, aplaudida, justificada, dizem tudo o que é hoje o Ocidente. A nossa posição perante elas diz tudo de cada um de nós.”

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Carlos Coutinho - [o Povo eleito por Deus]




* Carlos Coutinho

2024 10 03 
 
BARACK Obama é um providencial norte-americano cedo sentiu a necessidade de o demonstrar isso mesmo, a todo o momento, já que não é branco e, ainda por cima, nasceu em Honolulu, no Havai. 

   Caso contrário, nem candidato poderia ser e, se o fosse, estava sujeito a um fim semelhante ao de Luther King. E, se por qualquer confusão dentro do eleitorado, fosse para a Casa Branca, o que o podia esperar era um fim semelhante ao dos irmãos Kennedy.  Daí que uma das suas mais significativas cautelas enquanto presidente fosse uma arenga hipernacionalista na Academia de West Point, em 2014, enaltecendo o ”excecionalismo  americano” segundo o qual “os EUA têm direito de governar o mundo”, direito adquirido com a Guerra Fria.  

   Na sua versão, explicitada aos futuros oficiais das forças armadas do Tio Sam, “os EUA são e continuarão a ser a única nação indispensável”, que levou, anos depois, um coronel português notável enquanto escritor e historiador, Carlos Matos Gomes, a considerar (in Medium.com) que, na Palestina ocupada, essa política é uma continuada guerra de extermínio”, um “lento genocídio” que alimenta o projeto de Israel num estado judaico , um estado racialmente puro, só para os judeus, os arianos da região. 

   Como eu não podia estar mais de acordo, também não vejo diferenças na política norte-americana praticada no Médio Oriente e noutras partes de mundo, com ou sem a NATO servi-la.

A verdade, porém, é que o moreninho Barack, cristão protestante como tantos caçadores de índios de origem europeia, nem sempre se comportou como o mais nacionalista dos norte-americanos e até se dotou de um vice-presidente católico romano, Joe Biden, bem conhecido pela teia de interesses em que se meteu, sobretudo na Ucrânia, tal como Hunter, seu filho, encarregando-os de coordenar a política da Casa Branca para essas partes do planeta mergulhadas em guerras longas. 

   Confortado com esta realidade, o primeiro ministro Netanyahu, com a justiça à perna por vigarices várias e exibindo o seu desprezo pela ONU, a pontos de agora até declarar o seu secretário-geral, António Guterres, “persona non grata”, proibindo-o de entrar em Israel, e marimbando-se para o Direito Internacional, afirmou na cerimónia de posse do seu novo governo que “o povo de Israel tem o direito exclusivo e incondicional a todas partes das terras de Israel”  - incluindo os Montes Golã (da Síria), bem como a Judeia e a Samaria (territórios da Cisjordânia palestiniana) – e garantiu que continuaria a instalar colonatos e terra palestiniana.

   Também ao apresentar publicamente o último relatório submetido ao Conselho dos Direitos Humanos da ONU, reunido em Genebra, a relatora especial da ONU Francesca Albanese acusou Israel de haver “transformado os territórios palestinianos ocupados numa prisão a céu aberto, na qual os seus habitantes são permanentemente confinados, vigiados e punidos (…), considerados culpados de crimes não provados”, num processo de “encarceramento em massa”, além de submetidos a “bloqueios, muros, infraestruturas segregadas, postos de controlo e colonatos que cercam as suas cidades e vilas, centenas de autorizações burocráticas e uma teia de vigilância digital que empurram cada vez mais os palestinianos para uma continuidade carcerária, através de enclaves controlados”.

   O que eles aprenderam com Hitler…  E como gosram de o imitar!

   Talvez seja de recordar que os EUA de Obama estão na Europa, na América Latina, no Médio Oriente e na Ásia com bases militares que servem para impor as suas “regras”, sendo que os dois partidos alternantes no poder dependem dos fundos provenientes da indústria bélica para financiarem as suas campanas eleitorais. 

   E são pressionados pelos fabricantes de armamento, sabendo Obama, tal como os seus antecessores e sucessores, que desafiar o a economia de gurra permanente significa ser-se rotulado de antipatriota.
   Manda o tal “complexo militar industrial” e o resto são cantigas. 

Contou o monstruoso e insigne Brzezinski, um governante americano ex-polaco, que os EUA investiram cinco a seis milhões de dólares a empurrar a URSS para o Afeganistão, revelando que o grande democrata James Carter assinou a primeira diretiva para ajuda secreta aos oponentes do governo de esquerda do Afeganistão, organizando, armando, doutrinando e financiado os talibãs e outros grupos terroristas formados em diversos países. 

   O resultado foi mais de um milhão de mortos e o hediondo retrocesso civilizacional a que estamos a assistir. Neste momento as mulheres já são proibidas de aprender a ler e escrever.

   O prof. Daniel Bessener (Universidade da Washington) estudou os feitos mais marcantes do “século americano” e apurou que os EUA, durante a Guerra Fria, os EUA impuseram “modificações de regime no Irão, Guatemala, República Democrática do Congo, Guiana Britânica, Vietname do Sul, Bolívia, Brasil, Panamá, Indonésia, Síria e Chile, matando Lumumba e Allende.  

   Gabriel  Rockhill, por sua vez, afirma que os EUA são o único país que, nos tempos recentes, “se esforçou para derrubar mais de 50 governos estrangeiros; estabeleceu uma agência de inteligência que matou pelo menos 6 milhões de pessoas nos primeiros 40 anos a sua existência; desenvolveu uma draconiana rede policial-vigilante para destruir quaisquer movimentos políticos domésticos que desafiassem o deu domínio; construiu um sistema de encarceramento em massa que tem detida uma percentagem da população maior do que qualquer outro país do mundo e que está inserido numa rede global de prisões secretas e regime de tortura.”

   O historiador Paul Thomas Chamberlain calcula que pelo menos 20 milhões de indivíduos morreram em conflitos da Guerra Fria, o equivalente a 1 200 de mortes por dia, durante 45 anos”, cita o prof. António Avelãs Nunes em “Este É o Tempo dos Monstros”

Acho que cega de estatísticas v e notícias de necrotério. 

   Fiquemos por aqui.

“O Massacre dos Inocentes”, segundo Rubens. Ordenado por quem? Por Herodes, um rei judeu ao serviço do Império Romano. Hoje, o que era mais certo era que ele se chamasse Netanyahu, visto que é o Sacro Império Romano-Americano que o atual mostrengo judeu está a servir. Embora nem sempre pareça…

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terça-feira, 24 de setembro de 2024

João Vasconcelos-Costa -- SEMÂNTICA?

 * João Vasconcelos-Costa

2024 09 24
 
Num grupo de amigos que ainda teimam em refletir sobre coisas antigas e esquecidas, falava-se deste ciclo comemorativo do cinquentenário do 25 de Abril. Há meses, foi celebrado o dia memorável, o que, na minha idade, me faz dizer que valeu a pena viver na nuvem de tempo que passou também por essa data. Mas o processo foi complexo e envolveu outras datas que não podemos esquecer, até para o mais importante: tirar lições para hoje e amanhã.
Já passou entretanto uma efeméride muito importante: 27 de julho, um dia de fel e vinagre para Spínola, obrigado a vir perante as câmaras anunciar a lei da descolonização e o reconhecimento por Portugal do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, incluindo a aceitação da independência das colónias.
Daqui a quatro dias, o 28 de Setembro (o dia em que regressei a Portugal, depois de um ano de estadia na Suíça e em que muitos soldados simpáticos, nas barricadas, tiveram pena de mim e me dispensaram da revista ao carro, atulhado de bagagem). Foi a data da primeira tentativa de regresso ao salazar-fascismo, cavalgada por Spínola. Não me consta que vá ter comemoração oficial, mas a Associação 25 de Abril vai fazer uma sessão evocativa.
Para o ano, o 11 de Março, as eleições de 25 de abril para a Constituinte, as independências das colónias e, finalmente, a data mais controversa, o 25 de Novembro.
Não é um simples acontecimento do passado. Ainda estão vivos muitos dos que, empenhados a fundo no processo revolucionário, vieram a sofrer, com prisão ou graves prejuízos de carreira, as consequências desse acontecimento. Mas, ao mesmo tempo, também já se passou tempo para fechar feridas, refazer entendimentos ancorados em Abril, reconhecer – mesmo os vencedores do dia – que se falhou em coisas essenciais, a manutenção da unidade no MFA e na sua ligação ao movimento popular e que (sem discutir a honestidade das motivações e dos princípios democráticos convencionais do campo vencedor) houve cedências muito graves e perigosas a forças reacionárias e a ingerências estrangeiras, bem como na resistência ao revanchismo da hierarquia em relação aos militares revolucionários.
E não são só os militares, os que no campo da esquerda militar (esquerda não esquerdista) sofreram as consequências, que provaram o sabor amargo da derrota. A minha geração civil também se dividiu. Muitos consideram o 25 de Novembro como positivo. Não ponho no mesmo saco os reacionários saudosistas do fascismo e aqueles que discordavam de um processo que ia contra as suas posições antifascistas muito moderadas, que não eram as minhas mas que respeito – o sentimento democrático mas espartilhado pela conceção formal, liberal, da democracia, a justiça social mas no quadro do sistema capitalista. Para mim, que tenho uma visão revolucionária da História, foi um dia amargo, que interrompeu um processo aliciante. Mas também, devo admiti-lo, um processo histórico (no sentido de incontrolável à escala humana) com muito do que costumo chamar o "sindroma chileno", as perversões perigosas derivadas do esquerdismo, do sectarismo, do voluntarismo irrealista. Como talvez tenha acontecido com muitos revolucionários no Terror ou depois de Outubro, por vezes perguntava-me se, na sociedade que se construiria naquela via, eu que não escondia as minhas críticas ao que considerava como erros perigosos (e, à Talleyrand, um erro é pior do que um crime) não viria a ser preso político ou, noutros tempos, guilhotinado?
O que é hoje importante é enquadrar esse acontecimento num processo global, para extrair ensinamentos, porventura ainda importantes para a situação atual.
Isto tem a ver com o título desta nota. Na tal conversa, veio à tona, por natural lapso de língua, a expressão "comemorar (ou celebrar) o 25 de Novembro". Retorqui que não devíamos dizer isso, mas sim "evocar", um termo neutro, situado no domínio cognitivo, sem a carga emotiva de "comemorar". Creio que pode ter ficado a ideia de esta minha observação ser um preciosismo, uma mera questão semântica.
Como até Eanes disse uma vez, as datas divisivas não se comemoram. Já basta o que se tem visto e se vai ver ainda mais, até daqui a dois meses, como tentativa reacionária para oficializar, até a nível parlamentar, a celebração do 25 de Novembro, quase que a par do 25 de Abril.
Aproveitemos a data para refletir serenamente e pensar, lembrando a metáfora pitoresca de Cunhal, que, no processo histórico, há sempre curvas muito apertadas no caminho. O verão de 1975 e o que se lhe sucedeu até 25 de Novembro foi um caso desses, assim como hoje, não só em Portugal, vivemos tempos escuros de contradição, perigo, perplexidade e até, sem que isto seja delírio catastrofista, a ameaça de uma tragédia final, de guerra nuclear.
Muitos anos depois do 25 de Novembro, os militares souberam reencontrar-se e relembrarem o essencial do que os unia, e isto sem cedências de convicções, de parte a parte. A Associação 25 de Abril é hoje um símbolo dessa unidade no essencial, que ainda não tem equivalente na área civil, política e social. Pela lei da vida, este importante símbolo, corre o risco de falecimento, tanto quanto os seus membros ativos. Um papel mais ativo da A25A neste ciclo de comemorações e evocações pode contribuir para a passagem de testemunho para as gerações seguintes. Já estamos a viver tempos que justificam a formalização de um movimento antifascista. Passa por entendimentos institucionais, entre partidos, mas também pela ação da sociedade civil. Que não se desperdice um instrumento já existente e com enorme valor simbólico, a A25A. Eu sou sócio. E tu?

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domingo, 22 de setembro de 2024

José Gameiro - Os pais não são amigos dos filhos

* José Gameiro

Psiquiatra e piloto

Seria impensável há poucas gerações que os filhos comentassem opções amorosas ou de outro tipo, dos pais
 
19 setembro 2024 

Otítulo pode parecer chocante, para os que pensam que o papel e a responsabilidade dos pais é serem solidários, compreensivos, educadores, cuidadores dos seus filhos. Sem dúvida que quase todos somos, fazemos tudo por eles, sofremos quando eles sofrem, apoiamos quando mais ninguém é capaz de o fazer.

Mas a relação dos pais com os filhos tem evoluído. Na infância nada de muito substancial terá mudado, a mais significativa alteração é a muito maior responsabilização dos homens. Os estereótipos clássicos, figura afetuosa e figura de autoridade, tendem a esbater-se, de uma forma em que os dois papéis se confundem e são solidários entre si.

O papel da família enquanto fonte de modelos relacionais, de transmissão de valores, até de endogamia social, tem vindo a sofrer uma notável mudança, em que outros atores podem ser de grande importância. Quantas vezes queremos falar com os filhos sobre questões mais sensíveis, como a questão sexual, e ouvimos, já sei tudo. Relações sexuais, cuidados a ter, preservativos, pílula do dia seguinte e outras tretas, como eles, por vezes, nos dizem.

Posso estar a ser injusto ou exagerado, mas instalou-se, nalgumas famílias, um novo paradigma. Os pais e os filhos são amigos. Esta relação pressupõe que são iguais, falam de igual para igual, tentando que desapareça, não a autoridade, que naturalmente na vida adulta dos filhos já quase não existe, mas que seja uma relação em que nos aceitamos uns aos outros, tal como os amigos fazem, sem críticas, sem remoques, com total abertura de todas as confidências.

Seria impensável há poucas gerações que os filhos comentassem opções amorosas ou de outro tipo, dos pais. Atualmente, qualquer comentário sobre um genro ou uma nora, feito discretamente, a casa vem abaixo. A própria relação dos avós com os netos é frequentemente condicionada e vigiada. No entanto, os filhos permitem-se opinar sobre estilos de vida e outras formas de estar dos pais, como se estivessem numa roda de amigos e dissessem, mas tu és parvo ou quê?

Há pais que vão atrás disto. Engolem sapos, em nome da paz familiar, encostando-se cada vez mais às tábuas, desculpem-me a imagem tauromáquica. Os que o fazem, ou decidem que passaram a ser amigos dos filhos, ou foram obrigados a prescindir de um valor secular, a responsabilidade, até à morte, de mostrarem os valores que têm, mesmo que aceitem que tudo mudou e nada era como dantes. É esta confusão entre culturas geracionais e desrespeito por uma autoridade, sempre discutível, mas necessária, que tem feito com que, por vezes, vemos famílias em que não conseguimos reconhecer os laços de sangue. Exagerado, com certeza.  

Quando num casal acontece um divórcio e a constituição de uma nova relação, o receio de alguns dos futuros “nubentes” acerca da reação dos filhos pode ser assustadora, como se os filhos tivessem qualquer direito de opinar sobre as escolhas amorosas dos pais. Se numa roda de amigos, podemos dizer, eh pá, vais viver com essa gaja ou com esse gajo, que disparate, fazer o mesmo em relação aos pais é considerar que o à vontade, à vontadinha, como agora se diz, é completo.

Podem pensar e bem, que isto é conversa de velho. Mas não é só. Confundir filhos adultos, com direito à sua vida e as suas opções, com amigos, pode ser mais prático e calmo do que manter a hierarquia, mas não se esqueçam que eles são nossos filhos e que, em situações limite, não nos querem como amigos, querem-nos como pais.

https://expresso.pt/opiniao/2024-09-19-os-pais-nao-sao-amigos-dos-filhos-2b013641

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

1832 – Publicação de «Da Guerra», de Clausewitz




O ge­neral prus­siano Carl von Clau­sewitz (1780-1831), para muitos «o mais pro­e­mi­nente es­tra­te­gista mi­litar e po­lí­tico da guerra li­mi­tada nos tempos mo­dernos», é uma fi­gura con­tro­versa que des­pertou o in­te­resse de per­so­na­li­dades tão dis­tintas como Lé­nine, Mao, Ei­se­nhower ou Henry Kis­singer. A sua obra-prima, Da Guerra (Vom Kriege, em alemão), es­tu­dada à época pelos mi­li­tares prus­si­anos, con­tinua a constar do pro­grama das aca­de­mias mi­li­tares dos EUA. Es­crito entre 1816 e 1830, o tra­tado sobre guerra e es­tra­tégia mi­litar ainda pro­voca po­lé­mica, sendo visto por uns como a favor da “guerra total”, e por ou­tros como en­si­nando a su­bor­dinar a guerra à po­lí­tica e aos con­flitos so­ciais. Equi­pa­rado a Tu­cí­dides, o ge­neral e his­to­ri­ador ate­ni­ense autor da ví­vida obra sobre a Guerra do Pe­lo­po­neso, Clau­sewitz tanto é apon­tado como a maior re­fe­rência his­tó­rica do pen­sa­mento es­tra­té­gico como acu­sado de ter aberto a porta às guerras to­tais do sé­culo XX. «A guerra é a mera con­ti­nu­ação da po­lí­tica por ou­tros meios», uma das frases mais fa­mosas do nosso tempo, é da sua au­toria. Ins­pi­rado no pen­sa­mento de Ma­qui­avel, Mon­tes­quieu, Kant e Fi­chte, Clau­sewitz ba­seia a sua obra, se­gundo al­guns ana­listas, num mé­todo se­me­lhante à di­a­léc­tica ló­gica de Hegel e Marx.

https://www.avante.pt/pt/2651/memoria/176998/1832-%E2%80%93-Publica%C3%A7%C3%A3o-de-%C2%ABDa-Guerra%C2%BB-de-Clausewitz.htm