quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Carlos Drummond de Andrade - Receita de Ano Novo

 * Carlos Drummond de Andrade




Mário Quintana - Poema de Ano Novo

* Mário Quintana

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
- Ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança…
E em torno dela indagará o povo:
- Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
- O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA…
()

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

António Bagão Félix - Revisitar Torga entre um ano e o seguinte

***



30 de Dezembro de 2015, 15:00

Por


Revisitar Torga entre um ano e o seguinte

Até hoje, a humanidade ainda não criou nenhuma associação de angustiados. Nem podia.
Porque, no fundo, a angústia é íntima percepção da radical incomunicabilidade.
(Miguel Torga, 1907–1995)



Hoje, no que resta de 2015, volto a Miguel Torga. Num regresso à sua pena apurada nos anos oitenta. Nestas vésperas de Ano Novo, submergido na primazia da puerilidade e dos desejos por atacado, prefiro deixar-me envolver pela limpidez da razão e pela translucidez do olhar sobre o mundo de Torga. E, em jeito de paradoxo epistemológico, sossego o meu espírito através do seu desassossego. O autor dos “Diários” era uma alma poliédrica, simultaneamente rejubilante e amarga. De um pungente e inquietante sentido da terra, ora a descarnar a alma, reflectida e demoradamente, ora em itinerário de implacável e amargurada questionação através do seu cinzel granítico.

Torga sempre fez da autenticidade — esse bem notoriamente escasso e em vias de desaparecer — o seu fundamento para comunicar e para valorizar a eticidade da sua inegociável liberdade ontológica. Com sofrimento: “Sim, fui infeliz porque tive a sina de ser autêntico”. Ou, através de um aparente paradoxismo, “infelizmente sou uma desconsolação humana. Só presto para ser livre”.
Retiro do Diário XIV (1982–1986) o transbordante actualismo da sua palavra. Citando-o e deixando a quem ler este texto espaço para uma reflexão sobre a excelência, intemporalidade e profundidade do nosso escritor mais Nobel do que muitos laureados.
Sobre o tempo da vida (e a vida no tempo), escreve que “o futuro é concebido como uma síntese dialéctica da tradição e da invenção” para se definir como “sim, sou um nó de contradições: mas que seria de mim se o desatasse? Se, em vez de uma unidade na diversidade, fosse uma diversidade sem unidade?”.
A propósito do património da memória, sobre que reflecte com sadia obsessão, escreve que “ter memória é construir imediatamente um celeiro” para, de seguida, afirmar que “a memória é a faculdade mais precária que temos. E, no entanto, é só nela que o pretérito joga o seu futuro”. Com fundamentada ironia fala-nos, também, da falência memorial — hoje tão presente — para nos dizer que“o esquecimento é o único espaço onde os sucessos se eternizam”.
 À questão do envelhecimento, hoje glosado com a adjectivação tecnocrática de “activo”, Torga prefere a seriedade da lucidez: “a velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez” ou, ainda,“ficamos velhos e na boca  o gosto de ser mudos”. Lucidez que ele alia permanentemente à ideia construtiva e regeneradora da dúvida porque “o meu drama foi viver a vida a duvidar sempre de mim”, com “medo do abismo aberto pela nossa própria lucidez”.
 Sobre o questionamento iluminado por uma incorruptível seriedade intelectual, lega-nos o seu pensamento sobre o labirinto misterioso da transcendência:“Deus: o pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de o negar, mas nunca a força de o esquecer”, para concluir que “no fundo, é do meu velho problema religioso que se trata. Nunca lhe dei uma solução capaz. Em vez de ser um crente adulto confiado, sou um temente infantil desconfiado”. E deixa-nos (deixa-me, enquanto crente) um aviso: “também no mundo do sagrado há rotina e cansaço”. Por isso, Francisco é hoje um protagonista da esperança renovadora.
 Neste breve percurso torguiano, ao mesmo tempo que deparamos com as agora omnipresentes técnicas de “marketing” na profusão de autores, livros e livrinhos, não resisto a citar algumas asserções sobre o próprio acto criador da escrita (“escrevo para que me leiam; não gosto, porém, de me ver lido”). Reflecte ele, em dois dos seus mais expressivos e belos pensamentos: “Um escritor, se é autêntico, se é fiel ao temperamento, varia de caneta mas não varia de tinta. Em novo ou em velho escreve com o próprio sangue. E resigno-me à ideia de ver o meu hemograma em cada página que me sai das mãos.” Ou de uma forma ainda mais teluriana, “eu sou um homem de impressões digitais, das mãos aos pés. O sulco do arado é tão impressivo para mim como o traço da caneta. Leio tanto numa lavrada alentejana como num livro”. Por outro lado, a sua frontalidade, não isenta de acidez, reflecte-se ao dizer que “A entronização dos escritores, agora, faz-se pela negativa. Quanto menos legíveis, melhor”.
 Seja-me permitido terminar este post com uma outra confissão de Miguel Torga: “Quando não trabalho sinto-me em pecado mortal”. Como eu o compreendo!

http://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2015/12/30/revisitar-torga-entre-um-ano-e-o-seguinte/

Nuno Gomes dos Santos - Mudar de vida

 
  • Nuno Gomes dos Santos 

Mudar de vida
Mudar de vida

O novo ano, que nos bate à porta, apresenta-se-nos menos cerrado, apontando a um maior respeito por quem trabalha, lançando um fogacho de esperança a quem envelhece, diminuindo um pouco a má sorte de quem empobreceu com o espanto nos olhos que não vêem porque se passa, num virar de esquina, de «remediado» a pobre, se a vida, tendo quase sempre sido madrasta, ia sobrevivendo num patamar de sorriso, amarelo que fosse, antes do esgar de termos pena de nós.

Todo este arrazoado vem a propósito dos votos que se vêm fazendo, ano após ano, Dezembro após Dezembro, de uma forma mecânica, assim como quem diz que são coisas que temos que dizer, não forçosamente situações que esperançamos, o melhor é dizermos que esperamos, que desejamos, mesmo sabendo que nada de bom espera por nós, mesmo convencidos de que os nosso desejos esbarram com o imperativo de um destino imposto e inacreditável, mas traçado a régua e esquadro por quem de nós não se cuida, por quem nos obriga a ser menos, a viver na sub-cave da dignidade mínima a que todos temos direito.

Mas olha aí uma luzinha no fundo do túnel; mas vislumbra um recorte, curto, seja, mas plausível, de melhorarmos os dias; mas que coisa foi esta de acontecer, doendo-nos a direita, termos uma pequena, mas possível, alegria de esquerda

Fui ao baú das músicas que me têm vindo a alimentar, de formas diversas, o percurso dos meus dias. Ouvi de novo, «Mudar de Vida», do Paredes; fui até ao António Variações relembrar as palavras que cantou: «olha que a vida não é, nem deve ser, como um castigo que tu terás de viver», ou: «estás sempre a tempo de mudar»; re-ouvi o Zé Mário Branco a trazer Camões para a ribalta dos nossos tempos, ora bem, porque é verdade que «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades»; recordei Pete Seeger, o Bob Dylan dos primórdios, o Jorge Palma a pedir o seu dinheiro de volta, o Samuel cantigueiro, o Zé Barata-Moura anti-caridadezinha e por aí fora.

Vai daí, outras cantigas voltaram a este fim de ano e poisaram na memória que me (nos) alimenta o futuro. Todas falam de «paz, pão, saúde, habitação», ou referem que «somos filhos da madrugada», que «há sempre alguém que resiste», ou proclamam «dêem uma oportunidade à paz» («give peace a chance»). Sérgio Godinho dos tempos aguerridos, Zeca Afonso de sempre, Manuel Alegre através do voz e do talento do Adriano, Lennon, para além da canção citada, a prendar-nos com «Imagine», a propor-nos um mundo que seja «uma irmandade fraterna de pessoas» («a brotherhood of man»).

Ora aí está o novo ano a fazer-me renascer alguma esperança. Cantando, está bem de ver, não porque quem cante seus males espante, mas talvez porque a cantar é que a gente se entende. Às vezes. E se pudermos erguer, em uníssono, algumas «vozes ao alto», não há-de ser má a colheita.

Estaremos, ainda, longe dos tempos de «maré alta». Mas, de facto, «a Liberdade está a passar por aqui». Atentos («cuidado com as imitações»), o melhor é cultivá-la. Coisa que muito bem podemos fazer, se assim o quisermos ou porque assim o queremos. Ao fim e ao cabo, mais tarde ou mais cedo, custe o que custar a quem custar, «o povo é (ou há-de ser) quem mais ordena».

Este novo ano é bem vindo. E se o conselho da cantiga da Rita do «Kilas, o Mau da Fita», é «põe-te em guarda!», diremos que em guarda estamos, mas de olhos postos na «saudade do futuro».

http://avante.pt/pt/2196/argumentos/138458/

Domingos Lobo O vidro das palavras rebeldes Viagem breve pela poesia e prosa de Maria Eugénia Cunhal

  • Domingos Lobo 

O vidro das palavras rebeldes
Viagem breve pela poesia e prosa
de Maria Eugénia Cunhal

A arte narrativa de Maria Eugénia Cunhal, tal como a sua poesia, entronca num dado que nos parece fundamental: o de ser uma escrita que assumidamente se constrói a partir de um olhar solidário e inquieto, partindo do eu individual para onós colectivo. Há na escrita da autora, sobretudo no livro de contos Relva Verde para Cláudio, um atentíssimo olhar sobre o mundo que nos rodeia; sobre as casas, os lugares, os objectos, as condições sociais das gentes que habitam esse universo referencial. Elementos discursivos, modos, forma, conteúdos, que poderíamos acantonar, por comodidade teórica, no mais conseguido do nosso neo-realismo, aquele que conjuga, segundo a teorização de Mando Martins, a Arte literária com o compromisso social, mas que a inventiva de Eugénia Cunhal arrisca por caminhos nem sempre moldados aos códigos fenomenológicos do movimento, mas passíveis de integração nas suas coordenadas fundamentais.

Lenine nos textos Sobre Literatura e Arte refere e defende a ideia da função elevada que a literatura deve ter nas sociedades progressistas. Para tanto, além do valor estético das obras, necessário se torna que o objecto literário se assuma como «protesto contra a injustiça social», nela transparecendo, com clareza, «uma imagem exacta das relações sociais»1.

Logo nos primeiros dois contos do livro Relva Verde Para Cláudio, a autora encena as determinantes que constituem o corpo orgânico da sua escrita: a denúncia das injustiças sociais, a análise arguta e dialéctica das relações entre os humilhados e aqueles que detêm o poder e a fortuna sem, no entanto, reduzir o fulcro central da diegese a um discurso moralista ou de panfletária assunção. Antes se constrói, conto a conto, através de um sereno labor de contar, com a agilidade lexical que lhe descobrimos nos poemas de As Mãos e os Gestos, com pleno domínio dos tempos e da construção metafórica, com parcimónia de processos no poético que percorre os sensíveis interiores desta fala.

A clarividente preocupação pelo social está patente nesse olhar em plongé, trespassado de ternura, em redor dos rostos que pontuam Relva Verde para Cláudio: no rosto do menino que desenha casas, tectos com chaminés e tudo; na senhora que chupa rebuçados até não sobrar nada de doce nos papéis que os envolvem, alheia ao desejo espelhado nos olhos do menino sujo; na menina que salta para o outro lado sem saber que afinal existe um fosso invisível, feito de preconceitos e convencimentos, a impedir-lhe brincar com o «menino de olhos verdes». O olhar dúctil e atento do poeta a viajar pelo microcosmo que habitamos, mesmo que esse universo se circunscreva ao espaço de um cacilheiro em viagem breve entre as duas margens do Tejo.

A escrita de Maria Eugénia Cunhal penetra os territórios das nossas inquietações: descobre rostos, sentimentos, situações, subterrâneos dramas e transmite-nos esse mundo com a simplicidade e a perspicácia de quem fixa a vida no momento exacto e nos dá a ver o oculto, o obscuro coração das sombras para que, colectivamente, nos sintamos socialmente responsáveis; para que nos possamos indignar com as injustiças que esse olhar denuncia.

No conto Ladeira, a autora debruça-se sobre a vida de uma operária que regressa a casa ao fim do seu ciclo de préstimo, quando a mais-valia do seu labor deixou de compensar o patrão. Foi substituída na função por outra operária mais nova e ágil, mais rentável. É o ciclo rapace e desumano do capitalismo a inscrever-se nos sulcos fundos da pele gasta de uma mulher que um dia, como todos nós, teve sonhos, risos e sol a entrar pela janela estreita da casa onde, derrotada e vazia de vida e do sentido dela, regressa para o nada, o vazio, ou para gastar, sem saber como, o tempo que agora lhe vai sobrar.

A escrita em Relva Verde para Cláudio é, na sua aparente simplificação oficinal, inovadora, participando dos modos estruturais do discurso neo-realista. Escrita de uma singular beleza, contida e unívoca no plano político, que neste livro é a um tempo posição ética, estética e moral. Maria Eugénia Cunhal atinge, nestes textos, a plena maturidade de escrita, a conjunção dos seus signos envolventes, capacidade de ligação afectiva com o leitor, de o tornar cúmplice desse profético olhar sobre o real: expressão de inquietude e contestação. O que, salvaguardando diferenças temporais e realidades sociais e geográficas, Lénine entendia dever ser a função social, útil, da Literatura. 

Dar um Sentido ao Dia 
O que é de imediato percepcionável na escrita de Maria Eugénia Cunhal, é a alegria de viver, de sentir, de sentidos, que nela transparece; uma alegria tocante e solar, carregada de vontade de futuro, plenamente inscrita nos versos de Silêncio de Vidro.

Na poesia de Eugénia Cunhal (Silêncio de Vidro, de 1962, reeditado em 2005, e As Mãos e os Gestos, de 2000) há, sobretudo, o ímpeto da fala, a urgência de dizer o amor e a alegria de o dizer: a solidariedade com os outros, um modo, quase no limite do pulsar do verbo, de sair dos ossos, emergir do nosso próprio, estreito espaço para chegar ao outro, mesmo quando o poeta intui, como Philip Roth, que ninguém sabe nada de si mesmo, que a escrita é o espelho poliédrico em que permanentemente nos buscamos.

A poética da autora de Escrita de Esferográfica (2008), é feliz porque o amor, apesar dos pesares, acontece (existe em entrega, em absoluta e em recusa, também), mas é igualmente empenhada, crítica, inventariando o real quotidiano. Se existem diferentes modos de dizer entre Silêncio de Vidro e As Mãos e Os Gestos, é apenas de maturidade, dado que a iniciática e circular abordagem dos afectos, se mantém e é comum a ambos. Há nestes dois livros uma visão do mundo e da essência existencial que os torna referenciáveis de um tempo e de um jeito de entender a vida, os amigos, os perigos de estar vivo. Em ambos a poesia flui sem enigmas, é límpida ressonância das palavras, entrecortada por uma musicalidade quase cantável, mesmo nas modulações inquietas e nos estremecimentos das injustiças que denuncia.

A poesia de Maria Eugénia Cunhal situa-se, no discurso interior e na ossatura vocabular, perto de associações semânticas e formais da geração de Poesia 61, embora na raiz matricial lhe descubramos poemas herdeiros do nosso melhor neo-realismo: Capitão, aqui estou.// Comigo a bagagem:/No saco de marujo trago um naco de pão/Dentro do peito a ânsia da viagem.

Uma escrita original e fecunda, assumindo vertentes que humanizam a palavra e colocam o homem, de novo, no cerne do discurso poético, dando «um sentido ao dia». Ou seja, à Vida. 

Nota: Esta evocação da obra literária de Maria Eugénia Cunhal, não deve ser entendida como um gesto circunstancial, que sempre recusei, mas como acto de linear justiça, dado o singular espaço que essa obra, pelo seu rigor formal, o humano que reflecte, a expressiva sensibilidade que a constrói deverá, de pleno direito, ocupar na literatura portuguesa.

Para que o silêncio não amordace, uma vez mais, as palavras rebeldes. 

1 Literatura, política, ideologia, de Claude Prévost – Moraes Editores

http://avante.pt/pt/2196/argumentos/138460/


segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Águas de Março por Elis Regina



É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, o nó da madeira
Caingá candeia, é o Matita-Pereira

É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira

É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto um desgosto, é um pouco sozinho

É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando, é uma conta, é um conto
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manha, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama

É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto do toco, é um pouco sozinho
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho

Pau, pedra, fim do caminho
Resto de toco, pouco sozinho
Pau, pedra, fim do caminho
Resto de toco, pouco sozinho

Pedra, caminho
Pouco sozinho
Pedra, caminho
Pouco sozinho
Pedra, caminho
É o toco...


Link: http://www.vagalume.com.br/elis-regina/aguas-de-marco.html#ixzz3ve0QpQwe

poesia de Anrique da Mota


* Anrique da Mota

Gram trabalho é viver

Pois nam s' escusa perder
a vida com grande afronta
lançando bem esta conta
gran trabalho é viver

és vida tam estimada
quanto são breves teus dias
que sendo por sempre dada
quanto és agora amada
tam desamada serias.
e pois nunca dás prazer
que nam venha com afronta
lançando bem esta conta
gram trabalho é viver

Outra grosa em vilancete

quem nesta vida cuidar
pode bem certo saber
qu'é gram trabalho viver

quem cuidar nesta mudança
q'este triste mundo faz
achará que nele jaz
a maior desconfiança.
e pois nunca dá bonança
sem temor de se perder
gram trabalho é viver

cada um em seu estado
meta bem a mão no seo
achará segundo creo
muito amor muito cuidado.
e pois ante de ganhado
este bem s'há-de perder
gram trabalho é viver

estes bens de tanta briga
com fadiga são havidos
com fadigas possuídos
e leixados com fadiga.
e pois este mal sojiga
no ganhar e no poder
gram trabalho é viver

logo m'eu contentaria
se nesta vida presente
alguém vivesse contente
ou descansado um só dia.
mas porqu'isto qu'eu queria
nunca foi nem há de ser
gram trabalho é viver

ANRIQUE DE MOTA
in "Obras de Anrique de Mota"
Edição de Osório Mateus
Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999

http://static.publico.pt/poema/default.asp?data=2000-04-24

domingo, 27 de dezembro de 2015

Manuel António Pina - O ANO EM QUE O CALENDÁRIO AVARIOU

* Manuel António Pina

Foi numa noite de Natal.

Estávamos em maio mas não fazia mal,
tinha havido uma avaria no calendário
e naquele ano saiu tudo ao contrário:
o Natal em maio, a primavera em novembro,
o 1.º de abril a 22 de setembro.

Eu que tenho mais de 100 anos não
me lembro de ter feito tanto calor como em dezembro.

Houve semanas com cinco dias, outras inteiras,
uma em julho teve 16 segundas-feiras!

Até houve a semana dos nove dias.

Muitas promessas foram naquele ano cumpridas!

Foi um ano tão maluco,
tão completamente bissexto,
que para muitos serviu de pretexto
para trocar as voltas ao calendário
e festejar todos os dias o aniversário.

Naquele ano espantoso
cada um podia ter à vontade
as suas manias
porque todos os dias
eram todos os dias.

Eu que não sou menos que os demais,

naquele ano tive vinte natais

António Manuel Couto Viana - Natal cada Natal

* António Manuel Couto Viana  

Quando na mais sublime dor, 
A mulher dá à luz, 
Há sempre um Anjo Anunciador 
A murmurar-lhe ao coração — Jesus! 

Cada criança é o Céu que vem 
Pra nos remir do pecado 
E as palhas d’oiro de Belém 
Espalham-se no berço, como um Sol espelhado 

Por sobre o lar presepial , o brilho 
Da estrela abre o convite dos portais: 
— Vinde adorar a floração do filho 
No alvoroço da raiz dos pais. 

Reinaldo Serrano - Dickens, obviamente



Dickens, obviamente

REINALDO SERRANO  

7 de fevereiro de 1812, 9 de junho de 1870; as duas datas assinalam o princípio e o fim da vida que foi a vida de Charles John Huffam Dickens, considerado por muitos, a par do inevitável Shakespeare, o maior autor de sempre de língua inglesa. Quem assina esta crónica igualmente o subscreve, fascinado que foi, que é e será pela obra extraordinária de alguém que contribuiu de forma decisiva para a nobre arte da narrativa literária.

Querem exemplos? Ok: “The Pickwic Papers” (“Os Cadernos de Pickwick”), “Oliver Twist”, “Nicholas Nickleby”, “David Copperfield”, “Hard Times” (“Tempos Difíceis”), “Great Expectations” (“Grandes Esperanças”), “The Old Curiosity Shop” (“A Loja de Antiguidades”). A lista seria ainda mais exaustiva mas não menos nobre numa obra essencialmente publicada “a prestações”, ou seja, em folhetins de periodicidade semanal ou mensal, sobretudo jornais, numa Londres emergente da Revolução Industrial. Não por acaso, os romances de Dickens refletem inúmeros retratos da condição social (ou da falta dela) da época, explorando e criticando a dura estratificação de uma sociedade que trata os pobres como infra-humanos e reverencia os ricos como se estes proviessem do próprio Céu. Claro que nos dias de hoje é fácil classificar o universo dickensiano como excessivamente melodramático mas, à luz da sua época, não será mais que um retrato fiel (ainda que algo poético) de um tempo complexo, duro e difícil.

Fora da lista acima elencada deixei propositadamente “A Christmas Carol” (“Um Conto de Natal” ou “Cântico de Natal”), eventualmente o mais conhecido romance de Charles Dickens, e seguramente o mais adaptado para diversas plataformas: cinema, televisão, teatro, banda desenhada e cinema de animação. Detenhamo-nos neste último por alguns instantes para lembrar (ou dar a conhecer) uma versão particularmente feliz do mais célebre dos contos; data de 2009 e foi realizada pelo experiente e mui popular Robert Zemeckis. Feita para a Disney, a versão em desenho animado computorizado conta com um elenco de luxo: Jim Carrey (que dá voz a múltiplas personagens), Gary Oldman, Colin Firth, Cary Elwes e Bob Hoskins, entre outros, “ilustram” de maneira mais que cabal as personagens saídas da pena de Charles Dickens no distante ano de 1843.

A animação é fabulosa, a bonecada retrata a fisionomia dos próprios atores que lhes dão vida, e a realização (auxiliada pela eficácia da tecnologia ao seu serviço) garante cerca de hora e meia de entretenimento ao mais alto nível. Além do mais, aqui se saúda a notável fidelização ao texto original, seja na narrativa, seja nos diálogos, seja até na caracterização das personagens (sobretudo os fantamas dos diferentes natais), bastante fiéis às descrições e ilustrações da obra original. Transversal à odiosa mas útil expressão de “miúdos e graúdos”, esta versão animada de “A Christmas Carol” promete e assegura um ótimo serão familiar.

Para os mais conservadores e para os eventualmente mais curiosos de objetos cinéfilos, cumpro o dever de informar que há uma outra versão deste Conto de Natal que, vá lá perceber-se porquê, não tem o merecido destaque de entre as muitas versões disponíveis. Realizada em 1951 pelo norte-irlandês Brian Desmond Hurst, a longa-metragem tem nos desempenhos sóbrios e seguros de Sir Alastair Sim (no papel de Ebenezer Scrooge) e demais elenco um dos seus grandes trunfos. A reconstituição de época, a cenografia e a fotografia são outros valores a merecer destaque, além da proximidade pura ao texto original de Dickens. O facto de ser a preto e branco beneficia em muito a atmosfera, real e fantasmagórica, desta obra de redenção, a que o próprio Charles Dickens classificava como romance sentimental.

Por nele falar, nada como lê-lo de fio a pavio e mergulhar com gosto no universo de um ator que criou uma escrita muito própria e apropriada a todos os tipos de público. Inerente à época que atravessamos, “Um Conto de Natal” é, muito apropriadamente, uma excelente porta de entrada para o mundo londrino de Dickens, recheado de personagens adoráveis e odiosas, de histórias em que o acaso ou as circunstâncias da vida têm muito mais força que quaisquer teorias sobre lutas de classes ou paradoxos resultantes da praxis política.

Uma última palavra para referir a muito recente edição (já deste mês de dezembro) de um outro importante romance de Dickens: “O Amigo Comum” (“Our Mutual Friend”) é o último romance do autor (1865) e um dos mais complexos deste mestre do realismo inglês, nele se refletindo a perfídia do materialismo em detrimento dos valores morais, que o autor ressalva em cada uma das suas obras. Estreado há pouco nos escaparates é, quem sabe?, uma excelente sugestão para um presente de Natal. Feliz, como se querem os dias...

http://expresso.sapo.pt/sociedade/2015-12-27-Dickens-obviamente

sábado, 26 de dezembro de 2015

Alberto da Cunha Melo - Natal

25 de dezembro de 2015 - 12h46 
Alberto da Cunha Melo: Natal
  
Neste dia de Natal, o Portal Vermelho publica abaixo uma poesia do escritor pernambucano Alberto da Cunha Melo. 


Por Alberto da Cunha Melo

Longe do Olimpo, um deus nascia
roxo, a gritar, como os humanos,
um deus sem flâmulas nascia,
para os perdidos e os insanos;

era um deusinho de brinquedo
nada tinha do deus heleno

o deus menino sobre o feno, 
no quintal do Império Romano,
era o deus do povo com medo,

um deus sem sorte, palestino,
e sem teto, desde menino.


http://www.vermelho.org.br/noticia/274481-11

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

The Doors - Who do you love now?

Feliz Natal

Who do you love now?
Who do you love?
Who do you love, child?
I said, “Who, baby, who do you love?”
Night is dark, the sky was blue
Down the alley the ice wagon flew
Hit a bump, somebody screamed
Should’a heard just what I seen
Do you love him, babe?
Do you love her, yeah
Do you love me, babe?
Do you love it, yeah, yeah
The Doors, Who do you love, 1970.
http://aventar.eu/2015/12/24/feliz-natal-6/

João Mendes - Neste Natal

Neste Natal injectamos milhares de milhões de euros no Banif. Quem diria que uma saída limpa poderia ser tão cara?
Neste Natal morreu o David. A austeridade também mata e o David foi mais uma das suas vítimas. Que nunca se deixe cair um banco mas haja responsabilidade que o acesso à saúde é um privilégio e não devemos ser piegas.
Neste Natal existem refugiados enregelados por essa Europa fora. A Europa da liberdade e da tolerância. A Europa que vende as armas que se usam na guerra que obrigou a maioria destas pessoas a fugir. A Europa que agora desconfia que sejam todos terroristas. A Europa que bombardeou as suas escolas, hospitais e locais de culto. A Europa que recebeu e recebe, com honras de Estado, todos os ditadores, os que deixaram de ser bem-vindos e os que ainda o são.
Neste Natal quero desejar a todos os leitores e aventadores um Feliz Natal. Abracem os vossos, sejam felizes mas não se esqueçam que o tempo corre contra nós. E nada disto tem que ser assim. Existe pão de sobra para todos.
http://aventar.eu/2015/12/24/neste-natal/

António Abreu - Porque hoje é Natal

* António Abreu


Se hoje é Natal,
porque o não é para todos?

Porque esses não tiveram sucesso,
nem abriram portas de oportunidade,
porque não queriam trabalhar,
nem criaram um negócio para exportação.

Não tiveram ambição, coitados.

Não trabalharam, é certo sem direitos,
para que quando ambos foram despedidos,
e se viraram contra nós, vossos patrões,
que nunca vos desprotegeu
isso ter constituído grande injustiça? 

Sois ingratos, coitados

Porque quiseram viver de subsídios?
Viciaram-se nisso, coitados.
Preferiram ou não minar a sustentabilidade
da segurança social
a que não tinham direito
por não terem descontado
e um sistema de saúde
que também lhes não era devido?

Foi assim, foi, coitados.

Porque não quiseram ser empreendedores,
candidatando-se a deputados
e fazer aí a ascensão social,
e em gabinetes, em lugares de governo, 
que lhes viabilizaria um cargo de gestor.
e reformas de sucesso?

Sabe-se lá, coitados.

Porque não quiseram
fazer uso da liberdade de ensino
para ter os filhos em colégios religiosos,
com garantia de bons diplomas
em universidades maçónicas?

Não quiseram não, os coitados

 Não, não fiquem assim,
aceitem a nossa solidariedade,
Num pão e num copo de vinho
que vos realçam as virtudes
e vos aproximam do Divino.

Não aceitam?
Paciência, coitados.


Vamos pensar em vós
na Consoada de logo nas Seicheles
para estarmos longe do vosso olhar,
que recusa a súplica, 
comeremos lagosta, suada de vos fugir,
não deixaremos de pensar em vós, ingratos,
para vos desejar paz e amor.

Assim será, coitados.


http://antreus-dois.blogspot.pt/2015/12/porque-hoje-e-natal.html