sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Italo Calvino . A OVELHA NEGRA

SEXTA-FEIRA, 31 DE AGOSTO DE 2018


A propósito… “Havia um país onde todos eram ladrões.”

A OVELHA NEGRA

Havia um país onde todos eram ladrões. À noite, cada habitante saía com a gazua e a lanterna, e ia roubar a casa de um vizinho. Regressava de madrugada, carregado, e encontrava a sua casa vazia.
E assim todos viviam em concórdia e sem se lastimarem, pois um roubava o outro, e este, um terceiro, e assim por diante, até que se chegava ao último que roubava o primeiro. O comércio naquele país só era praticado como trapaça, tanto por quem vendia como por quem comprava. O governo era uma associação de delinquentes vivendo à custa dos súbditos, e os súbditos por sua vez só se preocupavam em fraudar o governo. Assim a vida prosseguia sem tropeços, e não havia nem ricos nem pobres.

Não se sabe como aconteceu, mas neste país havia um homem honesto. À noite, em vez de sair com o saco e a lanterna, ficava em casa a fumar e ler romances. Vinham os ladrões, viam a luz acesa e não entravam.

Essa situação durou pouco: pois foi preciso fazê-lo compreender que, se queria viver sem fazer nada, não era razão para impedir que os outros não trabalhassem, pois cada noite que ele ficava em casa era uma família que não comia no dia seguinte.

Diante desses argumentos, o homem honesto não se podia opor. E começou também a sair de noite para voltar de madrugada, mas não andava a roubar. Era honesto, não havia nada a fazer. Ia até à ponte ver a água a correr. Voltava a casa e encontrava-a vazia.

Em menos de uma semana o homem honesto encontrava-se sem um tostão, sem comida e sem nada em casa. Mas até aí tudo bem, porque era culpa sua; o problema estava em que o seu comportamento criava grande confusão. Porque se ele se deixava roubar e não roubava, havia sempre alguém que voltando para casa de madrugada, encontrava a casa intacta: a casa que o homem honesto devia ter roubado.

Deste modo, os que não eram roubados ficavam mais ricos que os outros e passaram a não querer roubar. E, além disso, os que vinham para roubar a casa do homem honesto encontravam-na sempre vazia; ficando cada vez mais pobres.

Entretanto, os que enriqueceram habituaram-se, eles também, a ir de noite até a ponte, para ver a água passar. Isso aumentou ainda mais a confusão, pois muitos outros ficaram ricos e muitos outros empobreceram.

Ora, os ricos perceberam que, indo de noite até à ponte, mais tarde ficariam pobres. E pensaram: “paguemos aos pobres para irem roubar para nós”. Fizeram contratos, estabeleceram-se salários, percentagens e, naturalmente, continuaram a ser ladrões procurando enganarem-se uns aos outros, mas como sempre acontece, os ricos tornavam-se cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres.

Havia ricos tão ricos que já não precisavam de roubar nem de mandar roubar para continuarem a ser ricos. Mas, se deixassem de roubar, ficariam pobres porque os pobres os roubariam. Então pagaram aos pobres entre os mais pobres, para defenderem os seus bens dos outros pobres, e assim instituíram a polícia e construíram as prisões.

Deste modo, poucos anos depois do aparecimento do homem honesto, não se falava de roubar ou de ser roubado, mas somente de ricos e pobres. E, no entanto, continuavam todos a serem ladrões.

Honesto, tinha havido aquele, mas que morreu de fome.
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A Ovelha Negra é um conto de Ítalo Calvino, extraído do livro Um general na biblioteca.l na biblioteca. 


http://aspalavrassaoarmas.blogspot.com/2018/08/a-proposito-havia-ais-onde-todos.html

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Fernando Pessoa - No comboio descendente


José Afonso - "No comboio descendente" do disco "Eu vou ser como a toupeira" (1972)


* Fernando Pessoa


No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada —
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...
No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela —
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...
No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não —
No comboio descendente
De Palmela a Portimão...



s.d.
Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido e prefaciado por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1965. (6ª ed., 1973).  - 117.



http://arquivopessoa.net/textos/4240






sábado, 25 de agosto de 2018

Jorge Amado Quando e o que servir em velório de defunto

* Jorge Amado

«QUANDO E O QUE SERVIR EM VELÓRIO DE DEFUNTO
(Resposta de Dona Flor a pergunta de uma aluna)

Nem por ser desordenado dia de lamentação, tristeza e choro, nem por isso se deve deixar o velório correr em brancas nuvens. Se a Dona da casa, em soluços e em desmaio, fora de si, envolta em dor, ou morta no caixão, se ela não puder, um parente ou pessoa amiga se encarrega então de atender à sentinela pois não se vai largar no alvéu, sem de comer nem de beber, os coitados noite adentro solidários; por vezes sendo inverno e frio.

Para que uma sentinela se anime e realmente honre o defunto a presidi-la e lhe faça leve a primeira e confusa noite de sua morte, é necessário atendê-la com solicitude, cuidando-lhe da moral e do apetite.

Quando e o quê oferecer?

Pois a noite inteira, do começo ao fim. Café é indispensável e o tempo todo, café pequeno, é claro. Café completo, com leite, pão, manteiga, queijo, uns biscoitinhos, alguns bolos de aipim ou carimã, fatias de cuscuz com ovos estrelados, isso, só de manhã e para quem atravessou ali a madrugada.

O melhor é manter a água na chaleira para não faltar café; sempre está chegando gente. Bolachas e biscoitos acompanham o cafezinho; uma vez por outra uma bandeja com salgados, podendo ser sanduíches de queijo, presunto, mortadela, coisas simples pois de consumição já basta e sobra com o defunto.

Se o velório, porém, for de categoria, dessas sentinelas de dinheiro a rodo, então se uma xícara de chocolate à meia noite, grosso e quente, ou uma canja gorda de galinha. E, para completar, bolinhos de bacalhau, frigideira, croquetes em geral, doces variados, frutas secas.

Para beber, em sendo casa rica, além do café, pode haver cerveja ou vinho, um copo e tão somente para acompanhar a canja e a frigideira. Jamais champanha, não se considera de bom-tom.Seja velório rico, seja pobre, exige-se, porém, constante e necessária, a boa cachacinha; tudo pode faltar, mesmo café, só ela é indispensável; sem seu conforto não há velório que se preze. Velório sem cachaça é desconsideração ao falecido, significa indiferença e desamor.»


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O romance Dona Flor e Seus Dois Maridos, publicado em 1966 por Jorge Amadoé um retrato rico da vida de Salvador da Bahia, do seu quotidiano, fé e sabores.

https://nabodegablog.wordpress.com/tag/dona-flor-e-seus-dois-maridos/

GRAVURA - Dona Flor e o cochilo de Teodoro, de Murilo Ribeiro para Leilão de Arte Contra a Fome (2017)
Obras de 13 artistas, como Justino Marinho, Chico Mazzoni, Menelaw Sete, Roney George, J. Cunha e Murilo Ribeiro, serão leiloadas, hoje, em evento para convidados, na Casa do Sol, estúdio de Verão da Rede Bahia. O Leilão de Arte contra a Fome terá renda revertida integralmente para a Campanha Carnaval Sem Fome.
http://www2.correio24horas.com.br/detalhe/coluna-vip/noticia/vip-13-artistas-participam-de-leilao-com-renda-revertida-para-campanha-carnaval-sem-fome/?cHash=1e9bde775462aaa66d59e757d1d14f7f

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Alexandre O´Neill - Alexandre O´Neill


As caricaturas de antónio na nova estação do metro no aeroporto de lisboa 



Idiotia e Felicidade

Como pode ser-se idiota e, ao mesmo tempo, feliz, pergunta-me um leitor? Pois explico já. A idiotia e a felicidade são ideias muito vagas, difíceis de cingir em conceitos de circulação universal, digamos. Mas, pensando melhor, acho que certa idiotia é susceptível de conferir ao idiota seu proprietário (ou seu prisioneiro) uma espécie de segurança em si próprio que o levará, em determinados momentos, julgo eu, a uma beatitude muito próxima do que se pode chamar estado de felicidade.Assim sendo, não vejo incompatibilidade entre o ser-se idiota e o ser-se feliz. Bem sei que há várias maneiras de se chegar a idiota. Uma delas foi experimentada comigo. Uma parente minha queria por força reconverter-me ao Catolicismo e, deste modo, passava a vida a dizer-me: «Alexandre, não penses. Se começas a pensar estragas tudo. A crença em Deus, se, em vez de pensares, reaprenderes a rezar, vem por si. É uma graça, sabias? Vá, reza comigo.» E ensinava-me orações que eu, muitas vezes de mãos postas, repetia aplicadamente. Acabei por não me casar com ela.

Não quero dizer, com isto, que não acredite na chamada (creio eu) revelação. Se revelação não existisse, como poderia um poeta do tomo de Paul Claudel entrar um dia em Notre-Dame e sentir-se, naquele preciso momento, convertido irresistivelmente ao Cristo e à irradiação da sua verdade e da sua beleza? E não pode afirmar-se que o grande poeta fosse um idiota.

Agora a minha parente era-o, de certeza, e queria fazer de mim outro idiota. Não por desejar reconverter-me, mas por aconselhar-me, como meio, o de eu não pensar, o de eu principalmente não pensar. Se tivesse casado com ela (que não era filha da minha lavadeira) talvez tivesse sido feliz - não se sabe - idiota e feliz. Assim, fiquei longos anos idiota e infeliz, infeliz por ser idiota e saber que o era e que não podia deixar de o ser. Ora, um idiota que é infeliz por saber que é idiota já pode estar a caminho de deixar de o ser. É uma possibilidade. É a tal luz no fundo do túnel, como se disse tantas vezes a propósito da situação económica deste idiota de país.

Não se espante, por conseguinte, o leitor de que um qualquer idiota possa, ao mesmo tempo, ser feliz. É, até, assaz corrente. Há idiotas que se consideram inteligentíssimos, o que é uma forma muito comum de idiotia, e extraem dessa certeza alguma felicidade, aquela maneira de felicidade que consiste em uma pessoa se julgar muito superior às que a rodeiam.

O leitor gostaria de ser ministro ou secretário de Estado? Pois fique sabendo que há quem goste, embora - será justo dizê-lo - também há quem o seja a contra-gosto, por dever partidário ou patriótico.

Os idiotas, de modo geral, não fazem um mal por aí além, mas, se detêm poder e chegam a ser felizes em demasia podem tornar-se perigosos. É que um idiota, ainda por cima feliz, ainda por cima como poder, é, quase sempre, um perigo.

Oremos.

Oremos para que o idiota só muito raramente se sinta feliz. Também, coitado, há-de ter, volta e meia, que sentir-se qualquer coisa.

Alexandre O'Neill, in Uma Coisa em Forma de Assim
Cartoon - António

http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/2018/08/21081986-o-dia-em-que-alexandre-oneill.html
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https://pt.slideshare.net/historiar/as-caricaturas-de-antnio-na-nova-estao-do-metro-no-aeroporto-de-lisboa-v

José Afonso : Utopia



rui borges - Publicado a 05/02/2011


 * José Afonso

Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo, mas irmão
Capital da alegria

Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio

Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso, a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?

Zeca Afonso : Utopia
Letra e música: Zeca Afonso
In: "Como se fora seu filho", 1983

http://natura.di.uminho.pt/~jj/musica/html/zecafonso-utopia.html

domingo, 19 de agosto de 2018

Garcia Lorca - A MERCEDES EN SU VUELO



* Frederico Garcia Lorca


¡Una viola de luz yerta y helada
eres ya por las rocas de la altura.
Una voz sin garganta, voz oscura
que suena en todo sin sonar en nada.

Tu pensamiento es nieve resbalada
en la gloria sin fin de la blancura.
Tu perfil es perenne quemadura,
tu corazón paloma desatada.

Canta ya por el aire sin cadena
la matinal fragante melodía,
monte de luz y llaga de azucena.

Que nosotros aquí de noche y día
haremos en la esquina de la pena
una guirnalda de melancolía.


Poetas Andaluces, A Mercedes en su vuelo, Lorca

http://www.poetasandaluces.com/poema/1950/
http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/2018/08/lorca-e-os-ciganos.html

sábado, 18 de agosto de 2018

VASCO GONÇALVES EM ALMADA



* Vasco Gonçalves


VASCO GONÇALVES EM ALMADA  (18/8/75)

Muita coisa teria para vos dizer e, em particular, toda esta rica experiência que ganhei nas últimas semanas, com as vicissitudes da constituição deste V Governo Provisório, análise da situação, etc. Porquê? Porque eu penso que a política deve ser feita defronte de vocês e não nas costas de todos. Mas eu contarei, em breve, ao povo português, para que saiba bem, para que seja bem lúcido, as diversas peripécias por que passámos, nós, os portugueses, a revolução, nas últimas semanas. Eu contarei isso em tempo oportuno e em breve.
Alinhavei, contudo, algumas palavras que, sob certos aspectos, considero muito importante focar agora. Isto não é um trabalho literário. Toda a gente sabe que eu não sou um literato, nem interessa que haja aqui literatos. O que interessa é que haja homens transparentes que digam a verdade ao povo na linguagem que ele entende.
Atravessa o nosso País uma crise grave, política, económica e social. Crise de autoridade, igualmente. Membro do Directório não farei o meu ponto sobre o que se passa no seio das nossas Forças Armadas. Não o farei por razões técnico-militares, de dignidade e, sobretudo, porque sou membro do Movimento das Forças Armadas e é como tal que aqui estou. Sou membro das Forças Armadas e essa tem sido a maior honra que eu tive na minha vida. Trata-se de uma questão de moral, já que, para mim, moral e política vão de par, não se podem dissociar. É verdade que, procedendo assim, estou a singularizar-me, a destoar na festa provinciana que leva certos políticos a exibirem publicamente as mazelas para suscitarem simpatias e apoios e a confiarem mesmo aos mais diversos órgãos da Informação estrangeiros os seus hipotéticos pavores, os seus medos apocalípticos e, de um modo geral, por mais que os disfarcem em tiradas de fervor democrático, os seus ressentimentozinhos de ambiciosos frustrados.
Enfim, essa gente é como é e eu sou membro do Movimento das Forças Armadas. Não satisfeitos com a total liberdade de que desfrutam no País, tais indivíduos, ao verem que o tempo trabalha contra os seus interesses de politiqueiros ávidos de poder, transformaram-se, sem vergonha, nos principais fornecedores das oficinas reaccionárias que, em Portugal e no estrangeiro, porfiam em lançar descrédito sobre o nosso empreendimento patriótico, a que deitámos ombros desde o 25 de Abril para que cada português seja livre e feliz.
É verdade que em toda a nossa história houve sempre portugueses que, por espírito mesquinho de classe, estiveram de cócoras diante do estrangeiro, prontos a sacrificarem os interesses da Pátria em interesses não nacionais. Todos nós conhecemos o nome de tais homens e execramo-los. Durante séculos e séculos, como bicho dentro da maçã, o partido castelhano corrompeu-os e desfigurou o País até o levar ao opróbrio de 1580. Mais perto de nós foram os integralistas, ora de imitação francesa, ora seguindo os moldes dos figurinos germanófilo e nazi que se entregaram à mesma tarefa. Hoje erguem-se vozes a cantar loas à Europa, não à Europa dos trabalhadores, claro, mas à Europa dos monopólios e das sociedades capitalistas.

Ontem houve quem servisse Castela contra a arraia-miúda, hoje há quem deseje colocar as classes laboriosas portuguesas na situação de fogueiros da fornalha da Europa capitalista. Desprovida de sensibilidade popular, essa gente que não tem, sequer, a fibração nacional de escolher melhor os seus confidentes e os seus cúmplices. Fala a torto e a direito, espalha boatos, implora a intervenção estrangeira nos assuntos pátrios e tudo isso, pretendem eles, porque a nossa revolução está em perigo às mãos do «gonçalvismo». Essa gente é o que é e eu sou membro do Movimento das Forças Armadas. Não respondo, pois, aos seus ataques pessoais. Digo, porém, efectivamente, que a nossa revolução estará em perigo - e de morte - enquanto eles teimarem em dividir as classes laboriosas, em intimidar a pequena e a média burguesia, em dividir o Movimento das Forças Armadas, em destroçar a aliança Povo-MFA e também a fornecer a órgãos de Informação adversos ao nosso processo revolucionário, as lucubrações delirantes e malévolas do seu espírito pequeno-burguês.
Sim, são eles que põem a Pátria em perigo, eles que semeiam as discórdias, suscitam leis fascistas que arrebanham e cobrem todos aqueles que, com culpas no cartório, tentam, desesperadamente, raivosamente, travar uma verdadeira batalha. Cá dentro não hesitam em aliar-se com o que há de pior na sociedade portuguesa. Lá fora, roçam-se aos pés de quem não admite que um pequeno povo como o nosso tenha a pretensão de ter uma política própria.
É facto que, após 48 anos de fascismo, o comportamento deste género de indivíduos não nos surpreende, já que são o produto acabado de um regime que privou sucessivas gerações de qualquer educação cívica e patriótica. Enfim, repito, essa gente é como é e é porque ela é como é que cada cidadão português, verdadeiramente empenhado no nosso processo revolucionário, tem o dever absoluto de dar mostras das mais altas qualidades morais. Política e moral são inseparáveis. Não se pode encher a boca com democracia, socialismo e liberdade e ao mesmo tempo ter acções salpicadas de tinta salazarista, com tudo o que isto significa de falta de carácter, de grosseria e de arrogância. Isso nada tem a ver com o modo de vida que queremos estabelecer e ver desabrochar em Portugal. Isso nada tem a ver com o socialismo. O socialismo que queremos consiste também na possibilidade de cada cidadão ser um homem de qualidade, de ser um homem de lisura, um homem limpo, um homem Integro, um homem transparente.
Só é livre aquele que respeita e enaltece o que há de grande e de belo e de humano nos outros homens. Apelar para os baixos sentimentos, para os pavores ancestrais, para a ignorância, ardilosamente implantada na população, pelo fascismo, é ser-se antidemocrata, é dar provas de desprezo pelo seu semelhante, pelo seu compatriota a quem foi vedado o acesso à mais elementar manifestação cultural. É, numa palavra, um procedimento de cariz fascista, já que foi abusando da ignorância do povo português que o salazarismo e o caetanismo se mantiveram, autoritariamente, no Poder por tão largos anos. É, pois, de lamentar que homens com quem a revolução deveria contar, que tinham o dever de se encontrar lado a lado com os outros revolucionários, civis e militares, não hesitem em estabelecer alianças de facto com os inimigos que ontem combateram, só com o propósito de quererem impedir que as classes trabalhadoras tomem o seu destino nas suas próprias mãos, esquecendo, até, que, em última análise, e por mais provas de arrependimento que vierem a dar, não se esquivarão, mais dia, menos dia, à sanha dos inimigos do povo português.
Mantendo-me fiel ao princípio de deixar que sejam os outros a cometer as más acções e, também, porque sei que, através da minha pessoa, é o Movimento das Forças Armadas que eles pretendem atingir, não responderei, jamais, aos autores dos insultos de que sou alvo. A cada um a sua moral.
No dia em que se escrever a história destes últimos quinze meses e se trouxer a lume as traças e as manhas de alguns dos seus autores e figurantes, uns cujos nomes andam nas gazetas nacionais e estrangeiras, como paladinos da revolução e da liberdade, outros conspirando nos corredores e nos cantos da sombra, haverá decerto quem fique surpreendido. No entanto, para a grande maioria do nosso povo, a quem não se pode enganar eternamente, a boa-fé, as revelações que se fizerem não serão mais do que a confirmação daquilo que ele já há muito suspeita.
A campanha desencadeada, denunciando a falsa liberdade de Informação ou, na melhor das hipóteses, a sua manipulação sistemática por elementos partidários, tem um objectivo muito preciso e corresponde a uma táctica conhecida: retirar credibilidade aos órgãos de Informação sem que haja necessidade de passar pelas provas de o demonstrar. Ao fim de muito martelar nessa tecla, toda a gente acaba por acreditar nesse simplismo resumido na expressão: os órgãos de Informação estão nas mãos dos comunistas. Aliada a essa campanha há outra complementar e que consiste em fazer crer que, precisamente por isso, ou seja, que precisamente por controlada pelos comunistas, em conluio com o Governo - em conluio comigo -, essa Informação é falsa, não merecendo o menor crédito. Altos responsáveis chegaram a afirmar que tinham necessidade de recorrer aos órgãos estrangeiros para saber o que se passava em Portugal. Mas, em nítida contradição com estas declarações, esses mesmos responsáveis, talvez por distracção, afirmaram, após curta ausência do nosso País, não possuírem elementos para apreciar a situação, pois não tinham tido acesso aos jornais portugueses durante o tempo que tinham estado no estrangeiro. Tais pequenas distracções passam, porém, despercebidas à maioria menos atenta e o Governo nunca pretendeu polemizar entrando na denúncia directa e constante de todas as contradições e manobras tácticas que a ele são movidas pelos seus detractores. Há que reconhecer que esse foi um erro do Governo: permanecer quieto e indiferente à calúnia sem sequer defender-se na esperança, um pouco idealista, de que só a verdade é revolucionária. Isso não significa que mudemos, agora, de opinião. Mas achamos que, para além do carácter revolucionário da verdade, não podemos ignorar que a mentira é uma das grandes armas da contra-revolução, tendo o nosso Governo que combatê-la, incansavelmente. Sabemos como tem sido, ultimamente, explorado esse estratagema, o estratagema do boato, da calúnia, da notícia infundamentada.
A princípio, esses jornais manejavam tais armas com subtileza, através da insinuação, das alusões, da manipulação velada. Actualmente a táctica aparece aberta e desbragadamente. A linguagem sumptuosa, o culto do esgar grosseiro, o recurso irresponsável ao boato e mesmo à mentira, mostram à evidência que a libertinagem impera em certa Imprensa da forma mais impune e irresponsável, atropelando, constantemente, a Lei de Imprensa, talvez pela certeza que depositam na inoperância da nossa máquina judicial para a fazer cumprir.
Certa Imprensa portuguesa roça hoje quase pela obscenidade, o que faz temer que ela venha a tornar-se perigosamente fascista a muito breve prazo. Os métodos são, pelo menos, muito semelhantes. O argumento sereno provoca o insulto dirigido. À política fundamentada, substitui-se o fantasma ridicularizador. A divina verdade, a intimidação psicológica, técnicas estas, muito do agrado das estratégias que apelam mais para os instintos do que para a razão. Sim, em rigor não podemos dizer que haja liberdade de Informação em Portugal, mas o importante a acentuar é que essa falta de liberdade que lamentamos, não é a mesma falta de liberdade que os nossos detractores apontam. A falsa liberdade que deploramos é um mau uso que se faz das liberdades que conquistámos com o 25 de Abril e que rapidamente se transformaram em permissividade irresponsável e em libertinagem, porque, não podemos esquecer, a liberdade não é, de forma alguma, o direito fácil. Aprende-se, praticando-a, mas é preciso que haja consciência e que ela constitua um longo percurso e que não basta tirar os açaimos para que ela surja em toda a sua inteireza e responsabilidade. Entenda-se que a, liberdade não deverá ser definida em termos apenas negativos, ou seja: como ausência de restrição. A liberdade é isso, mas não é só isso. Se fosse só isso, rapidamente degeneraria em obediência aos impulsos mais imediatos. A ausência de restrições é uma condição de liberdade, mas, mais do que isso, há que definir a liberdade em termos positivos, e essa definição passa pela responsabilidade. Ora uma liberdade que exija como contrapartida, a responsabilidade, é o que não existe actualmente entre nós. E é essa situação que se procura manter, com a tal táctica, de insistir na acusação de que a Informação não é livre. Numa palavra: afirma-se que a Imprensa não é livre para lhe tirar dignidade e, simultaneamente, para garantir a libertinagem irresponsável dos «chartéus» da Informação que, objectivamente, servem o fascismo. A táctica é subtil e tem dado os seus frutos.
Atravessamos, pois, uma crise grave, mas já atravessámos outras. As várias crises por que foi passando o processo revolucionário e que tiveram no 28 de Setembro e no 11 de Março a sua expressão mais aguda, foram acabando com a conjuntura favorável que existia no dia 25 de Abril de 74. Ao longo do tempo as posições foram-se tornando mais claras, os campos de luta mais abertos, as opções mais urgentes e mais difíceis e a revolução encontra-se no momento decisivo quando, depois de se ter definido como socialista pôs claramente a questão central de qualquer revolução socialista: a do acesso progressivo ao poder pelos trabalhadores.
Na verdade, o projecto de ligação Povo-MFA, aprovado pela Assembleia Plenária do Movimento das Forças Armadas, mais não é, do que a aprovação, a legalização do caminho para o acesso progressivo dos trabalhadores ao poder.
Chegou, enfim, a hora da verdade da revolução portuguesa. A partir deste momento não fica mais campo para os socialistas de palavras, para os falsos socialistas. É bom que todos estejam conscientes desta questão e façam um esforço no sentido de verem, para além das campanhas de intoxicação e de ataque que ultimamente têm chegado a algumas organizações e figuras entre as quais eu me encontro. A questão é entre aqueles que querem exercer o Poder no sentido de ajudarem os outros a tomar o seu destino nas suas próprias mãos e aqueles que, pretendendo exercer o Poder em nome do povo querem perpetuar a sua exploração. A questão coloca-se entre os que são socialistas nos actos e os que são socialistas nas palavras. A questão não é, pois, de oposição entre Vasco Gonçalves e Fulano ou Vasco Gonçalves e Sicrano. Não se trata, pois, de um problema de individualidades. A questão, repito, não é esta. A questão é mais profunda, só se pode pôr no campo da luta de classes, no campo da opção de classe, pondo as coisas claramente.
Há quem pertencendo, originariamente, à burguesia, esteja disposto a pôr em causa, dentro dos seus privilégios, os privilégios da classe a que pertence, e pôr-se ao serviço das classes trabalhadoras. E há aqueles que, embora reclamando-se do marxismo, das classes trabalhadoras e do socialismo, só o fazem para não perderem os seus privilégios e para salvar os privilégios da classe e das camadas sociais a que pertencem. A pequena e certas camadas da média burguesia não devem temer o acesso progressivo dos trabalhadores ao Poder, através da via da transição para o socialismo, no decorrer da qual poderão exercer a sua actividade, e aí serão progressivamente estabelecidas as razões da solução socialista.
No sistema de capitalismo monopolista de Estado em que se viveu, a pequena burguesia era, sistematicamente, expropriada e proletarizada pelo capital monopolista. A sua sobrevivência era uma questão de tempo. Quantos pequenos comerciantes, industriais e agricultores não foram arruinados e forçados a meterem-se ao caminho da emigração.
As perspectivas que se abrem hoje à pequena burguesia e a sectores da média burguesia são outras: as de, por uma via pacífica, ascenderem progressivamente à sociedade sem classes. Mas só gozarão exactamente dos mesmos direitos do resto da população.
Na fase intermédia de transição, como aliado da vanguarda constituída pelos trabalhadores e pelo Movimento das Forças Armadas, terão um papel importante a desempenhar na construção da nova sociedade. Assim o queiram compreender.
É perante este panorama que o V Governo Provisório foi formado e entrou em funções. E foi perante um golpe de baixa política, o «documento dos nove», que iniciou a sua acção. Mas é preciso ver porque se chama a isto um golpe de baixa política: porque esse documento foi metido precisamente nas vésperas do novo Governo tomar posse, para se evitar que esse Governo tomasse posse. Não é que não deva haver liberdade de discussão sobre política. Com toda essa liberdade, eu sou o primeiro a concordar. A crítica e a autocrítica devem-se exercer amplamente. Mas, agora, meter documentos com determinadas finalidades quando o País está em crise, isso é que não pode ser.
Referi-me à acção do Governo. A acção que, até agora, se pode pautar exemplar, pois, apesar do mar encapelado em que se tem de mover, trabalha entusiasticamente e cheio de fervor patriótico e procurando cumprir honradamente a missão em que foi investido por Sua Excelência o Presidente da República.
Devo aqui afirmar que vós tendes um Governo feito de patriotas, de grandes lutadores, de autênticos revolucionários, um Governo coeso como nunca houve depois do 25 de Abril. Este Governo é formado por homens de coragem, por homens que não estiveram a perguntar pelos programas, pelas linhas, pelas metas, homens que estiveram prontos a dirigir a sua Pátria no momento de crise.
E desejo aqui salientar em nome de todos, essa pessoa austera que é o professor Teixeira Ribeiro, esse homem insigne que não hesitou em vir para o Governo, precisamente, no momento mais grave que atravessamos depois do 25 de Abril. Desejo dizer-vos, também, que, neste momento, não temos a oposição dentro do próprio Governo. É um Governo sem compromissos partidários, o que não quer dizer que os seus homens sejam apolíticos. Não, a política deles é eminentemente nacional e revolucionária. Nunca me senti tão ligado a um Governo como este e sobre este Governo empenho toda a minha honra.
Dizem-nos que este Governo tem poucas possibilidades, tem muito pouca base de apoio, tem uma base de apoio muito restrita. Devo dizer-vos aqui o seguinte: não há nenhuma revolução, numa determinada fase da sua história, que não tenha tido uma base de apoio restrita. Pois é precisamente neste momento que é preciso um Governo forte e com autoridade.
Mas é claro que para a actuação do Governo é necessária a existência de um poder forte e neste momento esse poder e autoridade só as Forças Armadas o podem dar. Sem a satisfação desta condição, o V Governo Provisório não funcionará e também não funcionará qualquer outro Governo - chamem-lhe Provisório ou de Salvação Nacional, tenha como primeiro-ministro quem tiver.
Chegou o momento em que os revolucionários, estejam onde estiverem, têm de assumir as suas responsabilidades perante o povo e as classes trabalhadoras do nosso País.
A onda de agitação e violência que grassa no País tem de acabar!
As autoridades militares têm o dever de honra de actuar firmemente, para que a História mais tarde não venha a considerá-las cúmplices das forças reaccionárias e antipatrióticas: dos fascistas, dos caceteiros, dos caciques, de certos membros do clero que desprestigiam a missão evangélica da Igreja.
Só garantindo a ordem se pode salvaguardar a integridade física dos cidadãos, a propriedade individual, os mais elementares direitos que foram restituídos a cada um de nós no 25 de Abril.
Onde estão as liberdades e garantias individuais fundamentais que nos propusemos restituir ao Povo Português?
Onde estão a liberdade de associação, de reunião, etc., quando permitimos que sedes de partidos políticos, organizações cívicas sejam assaltadas impunemente, sem os autores desses crimes serem castigados?
Há uma situação muito semelhante entre a implantação do nazismo na Alemanha e a que se vive agora em Portugal. Na Alemanha era o anti-semitismo que explorava os mais baixos sentimentos do povo. Aqui, é anticomunismo que durante decénios foi a arma de agitação de que se serviram os fascistas para manter o povo no obscurantismo e na ignorância.
Não tenhamos ilusões de que, se voltar o fascismo, este será ainda mais feroz (ver o caso do Chile) do que antes do 25 de Abril. Teremos mais ferozes do que antes a PIDE, a Censura, a exploração das classes laboriosas e dos pequenos comerciantes, industriais e agricultores; perderemos a reforma agrária, as nacionalizações, o controle de produção pelos trabalhadores, a liberdade sindical, o direito à greve, o direito de livre associação e reunião, o direito à formação de partidos políticos, o direito à liberdade de expressão e pensamento, etc. Numa palavra, os mais elementares direitos dos cidadãos.
Sim, Portugal vive de novo o perigo do fascismo. A onda de agitação que tem coberto largas zonas do País tem grandes semelhanças com as situações pré-fascistas que se têm vivido na Europa.
É necessário que todos os portugueses democratas, progressistas e patriotas tenham bem consciência dos perigos que atravessamos, e que se unam! Que se unam na defesa das conquistas alcançadas depois do 25 de Abril.
À frente de todos, os trabalhadores - operários, camponeses, pescadores-, na vanguarda do processo de democratização do País e de transição para o socialismo.
A paralisação do trabalho das 11 às 11 e 30 proposta pela Inter-sindical para amanhã é uma acção justa de defesa do nosso povo contra o perigo fascista. Os trabalhadores portugueses devem alertar e mobilizar o País com a sua acção. Unidos, coesos, conscientes dos seus deveres para com os seus compatriotas, essa paralisação não é uma acção de carácter laboral, mas uma acção patriótica destinada a alertar a consciência de todos os portugueses para a defesa das conquistas obtidas depois do 25 de Abril. Repito: as liberdades e garantias individuais; as novas relações de trabalho; a unidade sindical; as nacionalizações; o controlo da produção pelos trabalhadores a Reforma Agrária.
Estais dispostos a perder isto? Ou estais dispostos a lutar por isto?
Os trabalhadores dão um alto exemplo de consciência cívica e de unidade, mostrando ao seu povo o caminho da luta firme, tenaz, quotidiana pela liberdade e pela democracia. Conscientes de que a batalha da produção e da economia não pode se separada dessa acção de massas, nem tão-pouco prejudicado, exorto os trabalhadores a compensar essa meia hora de amanhã, num determinado dia e hora, para que assim demonstrem a sua disciplina revolucionária, o seu civismo e o seu ardor patriótico - o seu amor à liberdade.
Sempre tenho combatido o anticlericalismo. O sr. cardeal-patriarca de Lisboa sabe-o bem pelas conversas que tem tido comigo.
Reconhecemos que temos cometido alguns erros em certas campanhas de dinamização cultural, por exemplo, e a decisão de não entregar a Rádio Renascença ao Patriarcado foi um erro grave.
Contudo os erros que cometemos não justificam de modo nenhum a campanha que determinados membros da Igreja, e dos mais eminentes, têm ultimamente desenvolvido.
Nós pensamos que a Igreja pela sua missão evangélica deve ser uma aliada da Revolução democrática e socialista portuguesa, que só pretende acabar com a exploração do homem pelo homem. Ora isto é um objectivo evangélico.
Como ficarmos calados perante a acção temporal profundamente reaccionária de alguns párocos de aldeia que, dos púlpitos ou em gazetas paroquiais, semeiam o ódio em vez do amor ao próximo.
Quando foi da formação do V Governo Provisório, procurei que dois padres fizessem parte do mesmo. Esses padres aceitaram sem qualquer hesitação, o que revela o seu espírito patriótico e o elevado conceito em que têm a sua acção social - de acordo, aliás, com o Concílio Vaticano n e o espírito da Igreja moderna. Porém, a hierarquia considerou que tal não devia acontecer, e eu, com grande mágoa, abandonei a ideia, a fim de não criar qualquer problema entre o Estado e a Igreja. Do V Governo, no entanto, fazem parte católicos progressistas.
Exorto daqui os católicos progressistas, amigos da sua Pátria e do seu povo, que participem activamente na obra de reconstrução nacional a que deitámos ombros. O País que queremos é um País para todos os portugueses, tanto para os crentes como para os ateus.
Neste preciso momento em que vivemos os maiores ataques até hoje desencadeados pela reacção, temos de receber na nossa Pátria milhares e milhares de portugueses, retornados de Angola. Não se atribua ao 25 de Abril esta difícil situação, mas antes às condições específicas em que aquele território tem sido descolonizado, entre as quais avulta o desejo do MFA de que Angola ascenda à independência livre do neocolonialismo.
Não foi possível às autoridades portuguesas evitar a presente situação em Angola, na qual poderão ter a menor parcela de culpa. As causas profundas desta situação mergulham na guerra colonial e nos interesses em jogo exteriores a Angola, e nas próprias condições de desenvolvimento dos movimentos políticos angolanos.
É necessário que haja um amplo movimento de solidariedade nacional encabeçado pelos sindicatos e forças políticas e cívicas progressistas no sentido de absorver esses milhares de compatriotas que se prevê que retornem. O patriotismo e a solidariedade devem dar-se os braços com estes homens e mulheres que na sua maioria também foram vítimas do fascismo. É absolutamente necessário para a defesa da Revolução portuguesa que esses nossos compatriotas sejam integrados na nossa sociedade de pleno direito como irmãos e que não sejam olhados como antigos exploradores de pretos. É verdade que alguns o eram, mas o traço dominante desses portugueses é o de seres humanos que perderam a maior parte dos seus haveres e do produto do seu trabalho.
Paira, por assim dizer, uma epidemia em Portugal: a dos planos. Essa planite aguda, essa mania dos planos que desacredita a verdadeira planificação, faz parte - não nos enganemos - da ideologia pequeno-burguesa que substitui o acto pelo verbo afiambrado com o fim de impedir a caminhada do povo para o futuro.
Isto não significa que não deva haver planos; não se pode caminhar na via de transição para o socialismo sem um plano que, basicamente, caracterize a mudança das relações de produção, ao mesmo tempo que o desenvolvimento económico e social.
De resto, quando foi aberta a crise do IV Governo, esse plano estava justamente a ser estudado, tendo o seu calendário de elaboração sido aprovado por esse IV Governo...
As alterações estruturais da nossa economia ou seja alterações nas relações de produção e a progressão da Intervenção do Estado, a necessidade de estabilizar a economia, de evitar a sua estagnação e recuo em face da quebra da iniciativa privada e da deliberada sabotagem por parte do capital monopolista e latifundiário e, por outro lado, o movimento das massas trabalhadoras no sentido de se libertarem da exploração capitalista.
Assim o tão falado ritmo do avanço do processo revolucionário no sector económico é marcado pela própria reacção contra o processo e pela tomada de consciência política dos trabalhadores.
O desenvolvimento da intervenção do Estado na economia surge como uma necessidade histórica para a solução dos problemas económicos nacionais; a eliminação dos monopólios e latifúndios, as sucessivas nacionalizações e o início da Reforma Agrária, que abrem caminho à fase de transição para o socialismo, aparecem como um imperativo nacional, como o único meio para estabilizar e permitir o desenvolvimento da economia e libertar os trabalhadores das relações de produção a que estavam submetidos.
Como já por várias vezes afirmei, isto não significa a eliminação da iniciativa privada, cujo concurso também é necessário para a consolidação da economia. Por isso mesmo se fala de uma via de transição para o socialismo durante a qual coexistirão o sector público e o sector privado, sendo este progressivamente absorvido pelo sector público de acordo com condições que muito brevemente serão estabelecidas e que garantirão os legítimos interesses dos capitais privados que patrioticamente se colocarem ao serviço da Revolução.
Compreende-se a perturbação existente entre os pequenos e médios comerciantes, agricultores e industriais, em face das opiniões divergentes sobre o futuro da iniciativa privada, formuladas por varias correntes de opinião a que os meios de comunicação social oferecem por vezes relevo desproporcionado com a importância dessas correntes.
Os governos anteriores e o V Governo Provisório nunca deixaram, porém, de afirmar a importância de manter e de fomentar a iniciativa privada, cujo campo de actuação e estruturas estatais de orientação e coordenação serão claramente estabelecidas pelo Governo.
Só na medida em que dispusermos de um Estado democrático e forte poderemos impor ritmo à Revolução. Mais uma vez, portanto, se põe a questão do exercício de uma autoridade democrática que faça cumprir as leis democráticas e que dê condições ao governo que permitam clarificar a situação económica, as relações laborais, etc.
Na campanha de intoxicação da opinião pública a que assistimos fala-se muito de que os lugares-chave da administração central e local estão ocupados por individualidades do PC, do MDP e de outros partidos políticos de esquerda em detrimento do PS, do PPD e do CDS. Ora o que se passa na realidade desmente de maneira absoluta as atoardas de tal campanha, B conhecido como logo a seguir ao 25 de Abril, muitas autarquias locais passaram a ser geridas por pessoas daqueles partidos de esquerda incluindo elementos do PS que se encontravam ainda ligados aos outros partidos antifascistas no seio do Movimento Democrático Português. Isto passou-se devido ao facto de nestes partidos se encontrarem os indivíduos militantes mais aptos para ocuparem naquele momento aqueles lugares e ser necessário substituir rapidamente as direcções fascistas. O mesmo não podia passar-se ao nível da administração central onde só algumas individualidades mais comprometidas com o regime anterior foram afastadas.
Poderá dizer-se que nos lugares de dirigentes deixados vagos pelo saneamento e nos lugares novos que foram criados, foram colocados só individualidades dos partidos referidos? Bastará olharmos para a composição desses quadros dirigentes nos diversos ministérios para verificarmos que neles se encontram individualidades das mais diversas tendências políticas. O mesmo se passa nos quadros dirigentes das empresas públicas e nacionalizadas.
Tudo tem sido dito, tudo está a ser feito para travar e deter o nosso processo de marcha em frente por um Portugal mais próspero e mais feliz, por uma Pátria mãe de todos os portugueses e mais extremosa com aqueles que a constroem dia a dia com o suor do seu trabalho, os camponeses, os operários, os pescadores, os pequenos e médios industriais, comerciantes e agricultores. A este processo chamamos nós «Processo Revolucionário de transição para o Socialismo», porque na realidade se trata de revolucionar um modo de vida baseado na exploração de todos os produtores; porque se trata de pôr fim ao despotismo de meia dúzia de ricaços - para que os milhões de trabalhadores sejam enfim prósperos, livres e felizes; porque se trata de criar condições de vida para que mais nenhum português se veja obrigado a expatriar-se a fim de ganhar o sustento dos seus.
Processo, pois, revolucionário de transição para o Socialismo porque só o Socialismo - o autêntico - dará a cada um de nós o pão e as rosas, o sustento e o saber. Não se trata, portanto, de um Socialismo tal como o apregoam aqueles para quem o 25 de Abril deveria tão-somente ser um «render da guarda», uma substituição dos «gerentes fascistas dos monopólios e latifúndios», por uma nova geração de «gerentes democráticos (e se necessário com umas tintas socializantes...) dos mesmos monopólios e latifúndios.
Só o Socialismo, criando novos postos de trabalho, aumentando a riqueza nacional, libertando cada um de nós da exploração alheia, fará com que nunca mais um português abandone mulher e filhos para ir vender a sua força de trabalho longe da terra natal. Por isso e aproveitando a presença na nossa Pátria de milhares de compatriotas que vieram passar um mês de merecidas férias, quero afirmar solenemente que os seus bens, o produto do seu trabalho são sagrados! Exortá-los também a repudiar, tanto em Portugal como nos países onde ganham a vida, os que tentam semear a divisão entre os emigrantes, os que tentam separar os emigrantes da sua Pátria. Compatriotas que ganham a vida lá fora; não deis ouvidos aos boatos, participai activamente na obra de construção da vossa Pátria para que os vossos filhos e netos não sejam obrigados a passar o que tendes passado, a sofrer o que tendes sofrido!
A Revolução - a nossa Revolução - é do Povo Português.
O tempo do paternalismo, dos mandões, dós donos do País, acabou!
Por isso o Povo tem o direito de exigir que o MFA - seu braço armado - defenda a Revolução, sob pena de deixar de ser o MFA.
A Revolução não é de ninguém, é de todos. Por isso, agora que o fascismo - mercê das nossas hesitações, ambiguidades e querelas subalternas - está a levantar cabeça para recuperar o perdido em 25 de Abril, todos os antifascistas, todos os patriotas, todos os democratas, seja qual for o partido político a que pertencem, devem unir-se numa frente de defesa das liberdades democráticas, inabalável e indestrutível!

Viva a unidade no seio das Forças Armadas! 
Viva a unidade entre os partidos progressistas! 
Viva a unidade de todos os trabalhadores! 
Viva a aliança Povo-MFA! 
Viva Portugal!

http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=poderpol32

Álvaro de Campos - Ora porra!


* Álvaro de Campos


Ora porra!
Então a imprensa portuguesa é
que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse.



s. d.
Álvaro de Campos — Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993: 22.

http://aspalavrassaoarmas.blogspot.com/2018/08/trump-acusa-os-media-de-serem-os.html




Today's cartoon is by Steve Nease
https://www.therecord.com/opinion-story/7157094-today-s-cartoon-fake-news/



 The 2017 Collins Word of the Year Is… “Fake News” 
https://www.collinsdictionary.com/zh/woty

Sidónio Muralha - Para vós o meu canto...

*  Sidónio Muralha

Para vós o meu canto, companheiros da vida!
Vós, que tendes os olhos profundos e abertos,
vós, para quem não existe batalha perdida,
nem desmedida amargura,
nem aridez nos desertos;
vós, que modificais um leito dum rio;
- nos dias difíceis sem literatura,
penso em vós: e confio;
penso em mim e confio;
- para vós os meus versos, companheiros da vida!
Se canto os búzios, que falam dos clamores,
das pragas imensas lançadas ao mar
e da fome dos pescadores,
- penso em vós, companheiros,
que trazeis outros búzios para cantar...
Acuso as falas e os gestos inúteis;
aponto as ruas tristes da cidade
a crivo de bocejos as meninas fúteis...
Mas penso em vós e creio em vós, irmãos,
que trazeis ruas com outra claridade
e outro calor no apertar das mãos.
E vou convosco. - Definido e preciso,
erguido ao alto como um grito de guerra,
à espera do Dia de Juízo...
Que o Dia do Juízo
não é no céu... é na Terra!


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

William Butler Yeats - Sailing to Byzantium

* William Butler Yeats

That is no country for old men. The young
In one another's arms, birds in the trees
– Those dying generations – at their song,
The salmon‐falls, the mackerel‐crowded seas,
Fish, flesh, or fowl, commend all summer long
Whatever is begotten, born, and dies.
Caught in that sensual music all neglect
Monuments of unageing intellect.

An aged man is but a paltry thing,
A tattered coat upon a stick, unless
Soul clap its hands and sing, and louder sing
For every tatter in its mortal dress,
Nor is there singing school but studying
Monuments of its own magnificence;
And therefore I have sailed the seas and come
To the holy city of Byzantium.

O sages standing in God's holy fire
As in the gold mosaic of a wall,
Come from the holy fire, perne in a gyre,
And be the singing‐masters of my soul.
Consume my heart away; sick with desire
And fastened to a dying animal
It knows not what it is; and gather me
Into the artifice of eternity.

Once out of nature I shall never take
My bodily form from any natural thing,
But such a form as Grecian goldsmiths make
Of hammered gold and gold enamelling
To keep a drowsy Emperor awake;
Or set upon a golden bough to sing
To lords and ladies of Byzantium
Of what is past, or passing, or to come.

"Sailing to Byzantium" is a poem by William Butler Yeats, first published in the 1928 collection The Tower. It comprises four stanzas in ottava rima, each made up of eight ten-syllable lines. It uses a journey to Byzantium (Constantinople) as a metaphor for a spiritual journey. Yeats explores his thoughts and musings on how immortality, art, and the human spirit may converge. Through the use of various poetic techniques, Yeats's "Sailing to Byzantium" describes the metaphorical journey of a man pursuing his own vision of eternal life as well as his conception of paradise.


 https://en.wikipedia.org/wiki/Sailing_to_Byzantium

Algarve de Sophia por Pedro Sousa Tavares


* Pedro Sousa Tavares


As férias algarvias de Sophia de Mello Breyner relembradas pelo neto, o jornalista Pedro Sousa Tavares

"Há muito que deixei aquela praia
De grandes areais e grandes vagas
Mas sou eu ainda quem na brisa respira
E é por mim que espera cintilando a maré vaza"
Sophia de Mello Breyner Andresen, "Há Muito"

O levante é sempre uma dádiva com os dias contados. Três, seis ou nove, assim o mediam os antigos, quando as contas ainda batiam certas. Pelo meio - na maior parte do tempo, para não mentir - é a nortada, sua némesis, quem dita as regras, levantando areia e guarda-sóis, tornando geladas as noites e, única virtude que se lhe reconhece, expulsando melgas e mosquitos para outras paragens.

Nas noites de nortada, Sophia deixava-se ficar até tarde a cismar no seu "escritório", um mezanino por cima da sala, na casa da Meia Praia, que os netos sempre encararam como o seu santuário privado, ainda que nunca o tivesse reivindicado como tal. Acendia os seus cigarros slim, que invariavelmente esquecia no cinzeiro depois da primeira passa, bebericava o seu chá, que parecia durar para sempre e nunca parar de fumegar e, com a portada de vidro entreaberta, passava horas a ouvir o vento a silvar entre os pinheiros.


Sophia no Algarve
© D.R.

Lembro-me disso porque, tendo-lhe herdado os genes noctívagos, ocupava muitas das mesmas horas imediatamente em baixo do mezanino, sentado na mesa de jantar, levando sucessivas abadas no xadrez do meu tio Xavier até às raras e triunfais ocasiões em que, geralmente apanhando-o já meio a dormir, descortinava um erro que me permitia recompor o meu score para um mais digno 1-10 ou 1-11.

Entre os nossos silêncios de jogadores, e o seu silêncio de poeta, era capaz de jurar que o vento que entrava pela janela lhe falava ao ouvido e que ela, num murmúrio, tão leve que talvez fosse apenas imaginado, lhe respondia.

- Mãe, vá-se deitar -, suplicava às tantas o meu tio, quando nós próprios claudicávamos ao sono.
- Vou já, Xavier.

Muitas vezes nunca ia. Adormecia ali mesmo. Embalada pelo vento.

Nos dias de levante a Meia Praia transformava-se na melhor praia do mundo. O mar, por norma parado como um lago, enchia-se de vida, proporcionando-nos épicas sessões de carreirinhas e obrigando o nadador-salvador a abandonar o seu posto habitual - uma cadeira à sombra, onde, imagino maldosamente, se recompunha, a sono solto, das aventuras noturnas da véspera - para impor a ordem possível entre multidões de crianças e adolescentes eufóricos. A temperatura da água subia, dia após dia, até ir bem para lá dos 20 graus, facto que alguém - já não me lembro quem - atestava cientificamente com um daqueles termómetros em forma de peixe que se usavam nas banheiras dos bebés. E o vento de sul envolvia-nos num abraço, transformando a água que nos escorria pela cara num caldo morno com sabor a sal e algas.

Não era apenas nesses dias que Sophia lá ia. Mas as memórias que guardo dela na Meia Praia estão invariavelmente ligadas ao esplendor dessas manhãs e tardes de levante, que muitas vezes duravam até anoitecer. Talvez por estarem arquivadas na mesma pasta destinada às boas recordações.

Nunca aparecia antes das duas, três horas. Não por se levantar tarde - coisa que raramente fazia, apesar dos longos serões - mas por preferir evitar as horas de maior calor. Havia sempre alguém a oferecer-se para a ir buscar a casa mas, muitas vezes, dispensava a oferta, preferindo fazer a pé o trajeto de meio quilómetro até ao areal. Por vezes apanhava boleias improváveis. Num ano, já bem na casa dos setenta, arranjou uma empregada que guiava uma scooter e passou as férias a deslocar-se para a Meia Praia sentada de lado atrás da condutora, à amazona, com uma alcofa numa mão e uma sombrinha japonesa na outra.


Sophia no areal da praia de Dona Ana, em Lagos
© D.R.

Chegava à praia sempre elegante, com longas túnicas ou vestidos de tecidos leves, chapéu de palha na cabeça. Pousava a alcofa, estendia a esteira, também de palha. Já de fato de banho, ainda segurando a sombrinha, que só largava à beira-mar, avançava decidida até à primeira onda, mergulhando de cabeça. Lembro-me de ver, orgulhoso, o olhar embasbacado de duas turistas inglesas que assistiram a um desses rituais.

Era uma excelente nadadora, de gestos estilizados, como uma atleta olímpica. Lá em casa, cumpria religiosamente as suas sessões de bruços de fim de tarde na piscina ladeada por uma alfarrobeira, em cujos ramos pousava as coisas antes de entrar na água. Vê-la a nadar, de braçada certa e uma respiração cadenciada (que também usava para se acalmar quando alguma coisa a irritava), era um momento tão solene que conseguia a proeza de nos manter a nós, netos, a uma invulgar e respeitosa distância da água.

A alfarrobeira, que adorava, nunca deixou de ser um pesadelo logístico para todos os mestres-de-obras e técnicos de manutenção que passaram pela casa. As suas raízes levantam o chão de tijolo vermelho e já furaram as paredes da piscina duas ou três vezes. As suas folhas e frutos sujam a água e entopem os filtros. Os apelos para a deitarmos abaixo sucederam-se ao longo dos anos. Mas isso sempre esteve fora de questão: aquela árvore, por estranho que esta afirmação possa parecer, também é ela.


 Postal enviado por Jorge de Sena com a morada "Vila Moura"
© D.R.

No elogio que lhe foi feito em 1964 num almoço da Sociedade Portuguesa de Escritores, por ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído ao Livro Sexto, foi destacada a sua capacidade de demonstrar "a dignidade do ser", mesmo quando a sua poesia falava "somente de pedras ou de brisas". Com todo o respeito pelos que então tiveram a coragem de a homenagear, em plena ditadura, a meu ver não perceberam o fundamental. As pedras, as árvores, as brisas, o mar, a terra, não foram "somente" temas da sua poesia mas partes indeléveis da sua essência, da "dignidade do ser" que era. E no Algarve, que descobriu nessa mesma década de 1960, encontrou uma fonte inesgotável de inspiração. Era a sua Grécia entremuros.

Revendo o trajeto de O Caminho da Manhã - poema que, como contou anos mais tarde, começou por ser um conjunto de indicações à sua empregada sobre como ir da Praia da D. Ana ao Mercado de Lagos -, pergunto-me como encaixaria, depois da "estrada que [já não] é de terra amarela", junto às "muralhas antigas da cidade", um recém-construído parque de estacionamento com um aberrante minigolfe temático na cobertura. É um pensamento absurdo. Tão absurdo como imaginar que alguma vez a fealdade de parte da cidade de Atenas a impediria de se deslumbrar com o Pártenon. Sempre se concentrou no essencial. E o essencial - a luz de Lagos, a brancura das suas paredes, fontes do seu "amor pelas coisas visíveis" que é "oração em frente do grande Deus invisível" - perdura.

O levante passou por cá, há dias, embora breve e menos feliz do que noutras ocasiões. Com a notícia da perda de um amigo, pai de um grande amigo, chegaram-nos também nuvens negras de fumo, vindas da serra de Monchique, que ensombraram o sol e tiraram sal aos nossos mergulhos. Enquanto escrevo, a nortada, já de regresso, fustiga as chamas em direção a Silves. Os homens que as combatem parecem precisar de ajuda. Talvez ela possa, mais uma vez, dar uma palavra ao vento.

https://www.dn.pt/1864/interior/no-algarve-de-sophia-9699673.html

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Manuel Augusto Araújo - José Tengarrinha,uma vida de resistências


29 DE JULHO DE 2018

* MANUEL AUGUSTO ARAUJO


O Zé Tengarrinha morreu há um mês. Na altura nada disse com mais essa perca na minha vida, como é sempre o desaparecimento de um amigo. Não disse porque inevitavelmente, movido pela urgência, iria sobrepor e repetir o que sobre o sucesso se ia escrevendo. Conhecia-o razoavelmente até nos tornarmos amigos. Os nossos caminhos cruzavam-se com frequência nas lutas públicas contra o fascismo, pela democracia e liberdade. Tudo mudou quando ficámos vizinhos, no mesmo prédio, no mesmo andar. Um edifício muito particular na rua Penha de França, recuado em relação ao perfil da rua, uma situação que proporcionava e proporciona uma vista deslumbrante a 360º sobre Lisboa. Ficámos mais próximos, a amizade a adubar-se. O que pressupunha ouvindo as suas intervenções públicas, adquiria outra dimensão. O Zé Tengarrinha na intimidade do nosso convívio sem relógios a controlarem-nos, era ainda mais incisivo e claro, sempre naquele tom sereno que o caracterizava. Não abdicava um milímetro na sua argumentação e não abdicava para melhor ouvir os argumentos contrários e rever ou não as suas teses. O que era difícil era não se acabar numa ampla convergência de opiniões.

Com essa nossa proximidade territorial as artes, as letras, a música eram campos de longas derivas em tarde e noites bem regadas. O Zé Tengarrinha tinha cultura vasta e sofisticada. Muita leitura e muitas revelações literárias dele sou devedor. Algumas de todo inesperadas. Ele tinha uma colecção de uns “lençóis” de papel com poemas de fazer chorar as pedras da calçada que antigamente, na minha infância, os acompanhantes dos cegos que tocavam acordeão cantavam com requebros sentimentais que mais acentuavam as desgraças anunciadas. “Poemas” que o Zé Tengarrinha dissecava com humor finíssimo colocando-os no contexto da alienação da poesia popular.

Semanas antes do 25 de Abril bem reconhecíveis e intrusivos ferrabráses da PIDE vigiavam o prédio onde morávamos. Uma vigilância ostensiva, uma evidente manobra de intimidação com fim imprevisível. Não sabíamos por onde andávamos subterraneamente embora o cálculo fosse fácil. Nem sabíamos, nem nos interessava saber se essa actividade eram de ramos da mesma ramada já que o tronco certamente não seria outro. Conjecturámos se aquele cerco vigilante seria para um, para ou outro ou para os dois. Finalmente aquela gente decidiu-se e o Zé Tengarrinha foi preso. Preso pela sexta vez. A 26 de Abril conheceu a liberdade por que sempre tinha lutado e iria continuar a lutar. Apesar do vendaval que foram os anos seguintes ao 25 de Abril, encontrávamo-nos com regularidade, as vertentes dos convívios centravam-se natural e obviamente sobretudo na área política. Adivinhava-se no Zé Tengarrinha uma inquietação subliminar pelo tempo que a actividade política lhe retirava à investigação científica que era de facto a sua paixão, até por ter voltado a ser professor de história na Universidade de Lisboa de que fora afastado pela ditadura.

Pelas curvas da vida perdemo-nos de vista. Quase simultaneamente abandonámos o prédio da rua Penha de França, onde ainda hoje vivem as nossas ex-mulheres. Por vários acasos fomos para fora de Lisboa. Foi conhecendo muito parcial e imprecisamente o seu percurso político, pressupondo as mágoas que teria mas que nunca publicamente expôs. Muitos anos depois contactei-o para que interviesse numa série de colóquios que estava a organizar. Recusou por indisponibilidade de tempo, não se queria desviar dos trabalhos de investigação em que estava empenhado. Não queria afastar-se do seu local de trabalho e do computador onde registava as conclusões que retirava das leituras de documentação e livros que lhe ocupavam o resto das horas do dia. Mesmo assim foi mais de uma hora de feliz conversa que lhe abriram um buraco nesse dia. Estava a trabalhar na História do Movimento Operário em Portugal, deveria ser esse o nome final da investigação que estava a realizar submetendo-se a uma disciplina operária. Pelo que publicou só se poderiam esperar novas perspectivas, novos olhares a iluminar a história e a revisar teorias estabelecidas como já o tinha feito com Nova História da Imprensa Portuguesa, José Estevão: o Homem e a Legislação do Brasil colonial, O início da Ofensiva Operária em Portugal, para referir três notáveis estudos. Muito trabalho deve existir nos seus arquivos que não devia ser negligenciado. Mesmo inacabada essa História do Movimento Operário em Portugal deve ser fundamental para a compreensão dos períodos que teve tempo de estudar e sementes vitais para lhe dar continuidade.

Quando fez oitenta anos, a Helena Pato, organizou uma homenagem. Uma bela jornada de confraternização no que foi o mais que justo reconhecer um homem que marca uma época e é uma das referências intelectuais e políticas do séc. XX em Portugal.

https://pracadobocage.wordpress.com/2018/07/29/jose-tengarrinhauma-vida-de-resistencias/