segunda-feira, 30 de outubro de 2017

José Saramago - Arte de Amar

Jose Saramago a Liberdade Do Pensamento"

ARTE DE AMAR
Metidos nesta pele que nos refuta,
Dois somos, o mesmo que inimigos.
Grande coisa, afinal, é o suor 
(Assim já o diziam os antigos):
Sem ele, a vida não seria luta,
Nem o amor amor.
José Saramago

sexta-feira, 27 de outubro de 2017

João Quadros - Moção de emoção

27.10.17

Moção de emoção



«Foram três horas e meia de debate sobre a Moção de Censura de Cristas na Assembleia da República. Foi uma Moção à antiga portuguesa. Penso que o nosso PR gostou. Aliás, a seguir ao chumbo da Moção, o Presidente Marcelo apareceu e disse que achava que a democracia tinha funcionado. Ufa! A democracia funcionou, que alívio, senhor Presidente. Imagina se não tem funcionado? Estava tão nervoso, só de imaginar ver as tropas na rua com o material de Tancos todo sujo de terra. Por acaso, estava com medo que não funcionasse aquando da votação da Moção de Censura, porque o computador da, agora deputada, Constança Urbano de Sousa não ia funcionar e iriam ter de repetir a votação, infinitamente.

Esta era uma Moção de Censura estranha porque acabava por censurar a própria autora. O ponto de partida, os incêndios, as mortes e a ausência de Estado são uma espécie de Crime no Expresso do Oriente. Há o que deu a última facada, mas de ambos os lados, da oposição e actual Governo, todos são culpados. Uma Moção de Censura com este epicentro, se derrubasse o Governo, também devia derrubar Cristas.

Alguns chamaram-lhe Moção de Emoção, feita mais com o coração do que com razão. Outros, Moção de Abutres, com o aproveitamento político de uma tragédia. Eu acho que é uma mistura das duas. Uma coisa típica da Cristas. Só estranhei não ser a Ágata a cantar a Moção. Acho que é injusto acusar a presidente do CDS de aproveitamento político da tragédia dos incêndios, penso que terá, apenas, aproveitado a felicidade de já não haver Passos Coelho. Acabou por ser um debate confuso porque o CDS passou mais tempo a tentar justificar-se do que a pedir justificações ao Governo. A certa altura, dava a sensação de que o CDS estava a tentar convencer-se de que a Moção tinha sido uma boa ideia. Vi a líder do CDS dizer que Costa "tratava assuntos sérios com muita ligeireza". Ou seja, como quem diz, vou sair da praia e assinar o BES de cruz.

Neste assunto, acho que houve aproveitamento político dos três lados do triângulo da geringonça: PR-PS-Oposição (CDS-PSD) e uma espécie de súbito desaparecimento político do BE e PCP. Dos beijos do PR com pouco recato, às cantigas de amigo de Costa e cartas de desamor da ex-ministra, passando pelo tom angelical Miss Eucalipto e acabando com Montenegro a falar de um PM insensível, cada um aproveitou o que podia.

Para terminar, alguns comentadores de direita disseram que o objectivo da Moção não era fazer o Governo cair. Claro. Basta ver as sondagens. Além do mais, provocar eleições nesta altura seria contraproducente, só o que se gastaria em boletins de votos..., lá iam umas centenas de árvores.»  

http://entreasbrumasdamemoria.blogspot.pt/2017/10/mocao-de-emocao.html

quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Nuno Serea - Perto do fogo

TERÇA-FEIRA, 24 DE OUTUBRO DE 2017

Perto do fogo

Seriam quase oito da noite quando o Intercidades da Beira Alta ficou retido em Santa Comba, depois de deixar para trás uma coluna de fumo à saída da Guarda e de ter passado na zona de Seia, onde apesar da escuridão se podiam avistar uns dez focos de incêndio distintos. Dos restantes fogos do país sabia-se pelas notícias, com destaque para os dos distritos de Leiria, Aveiro e Porto. Cerca de quinhentas ignições num só dia, um dia de outono.

Saindo do comboio, do lado direito, viam-se agora três a quatro clarões, aparentemente situados por detrás da cidade. À frente outros dois, mais distantes, sugerindo que o fogo andaria também perto de Mortágua. Do lado esquerdo da estação, a uma distância maior, via-se o clarão do incêndio que - saber-se-ia mais tarde - lavrava na zona de Penacova. O cheiro a fumo era ainda relativamente ténue e difuso, permitindo supor que bastaria esperar duas ou três horas para que o comboio retomasse o seu curso. Apesar da hora, o ar era quente e, de quando em quando, chegava em golfadas. As pessoas foram saindo das composições, preferindo vaguear na plataforma ou aproveitar para avisar alguém do atraso certo que o comboio iria ter, apesar de uma das três redes de telemóvel estar inoperacional e outra funcionar de modo intermitente.

Com o passar do tempo a informação tornou-se cada vez mais escassa, avolumando as dúvidas sobre o momento em que seria possível prosseguir viagem e se a mesma se faria de comboio ou por ligação de autocarro a outra estação mais à frente. Embora preocupadas e perplexas com os vários focos de incêndio (em particular com a linha contínua de fogo que agora se desenhava por detrás de uma Santa Comba às escuras) e a situação absolutamente anómala do país naquele 15 de outubro (inúmeros incêndios ativos, numa noite que parecia de agosto), as pessoas estavam calmas. Quando falha a iluminação pública, afetando a estação e o aglomerado de casas em redor, os clarões aumentam de intensidade, tornando agora mais fácil imaginar a «cegueira» provocada pelas chamas a quem delas estivesse próximo, em combate noturno. Seriam já dez da noite quando se ouve um motor no céu e surgem as luzes de um avião a afastar-se, assinalando que a partir daqui o combate aéreo deixava de ser possível.

O ar foi ficando progressivamente mais denso, com o fumo já bem visível e a chegar por vezes em baforadas, impulsionadas por um vento que mudava constantemente de direção e intensidade. Com esta oscilação errática de um vento quente e seco, alguns dos focos de incêndio pareciam esmorecer por momentos, para depois recrudescer com redobrada força. Apesar da distância, ouvia-se de quando em quando o crepitar do fogo, intercalado por explosões, com uma intensidade maior do que à partida se poderia supor. O ar foi-se tornando cada vez menos respirável, não só pelo aumento do fumo, mas também pelo efeito de saturação. E é então que se tem melhor noção de uma segunda dificuldade do combate direto em circunstâncias como esta: para além das chamas e do calor, impulsionados pelo vento, também o fumo pode tornar impossível a aproximação a um fogo, limitando as possibilidades de o conter. Isso era cada vez mais claro: estava-se perante incêndios praticamente indomáveis, ninguém se surpreendendo no fundo que os bombeiros, distribuídos pelas múltiplas frentes de fogo e insaciavelmente escassos face a estas condições, não tivessem ainda acorrido àquele lugar.

Seriam já duas da manhã quando um dos focos de incêndio se aproxima, após atravessar o IP3 e galgar a vertente arborizada entre o rio e a estação. Muito mais perto, o fogo tornava-se agora verdadeiramente avassalador, ameaçando as primeiras casas. Perante o perigo iminente, verificou-se se ainda estaria alguém dentro delas, tendo sido possível convencer as pessoas (algumas a dormir, não se tendo apercebido do evoluir da situação), a abandoná-las. Passou tudo a desenvolver-se de uma forma demasiado rápida e cada vez mais violenta e incontrolável, tornando inútil qualquer esforço para deter as chamas. Com a aproximação do fogo, começam a cair partículas incandescentes, como se de flocos de neve se tratasse, atiradas pelo vento em todas as direções. Impressionava sobretudo o facto de estas partículas (cascas de árvore, paus e folhas) não se apagarem durante o seu voo incerto, caindo ainda a arder a centenas de metros. A partir daí, a génese de novos focos de incêndio era apenas uma questão de sorte, percebendo-se melhor como surgiram cerca de quinhentas ignições desse dia e porque razão havia tantos focos de incêndio em redor. Pelas três da manhã, chega um autocarro para evacuar as pessoas, já muito assustadas, para o Centro Cultural de Santa Comba, num percurso corajosamente repetido por entre o fumo, bermas a arder e troços de estrada por vezes demasiado estreitos e sinuosos.


Assisti e participei no combate a vários incêndios que deflagravam nas proximidades da minha aldeia, com pontualidade estival (na maior parte dos casos em agosto), há muitos anos atrás. Lembrava-me ainda do calor que se sente quando nos aproximamos das chamas, da irritação causada pelo fumo inalado e da sensação de pisar chão quente. Mas nada, nada se assemelha a estes incêndios e à atmosfera que os alimenta. De facto, sugerir que «nada mudou» (Assunção Cristas), ou que «calor e vento sempre houve» (Hugo Soares), significa não ter ainda percebido nada sobre as alterações que estão a ocorrer (ou, tendo percebido, significa algo bem pior que isso).

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Mário Cesariny - Mário Cesariny

* Mário Cesariny 


cinepovero2009

Mário Cesariny :: You Are Welcome to Elsinore (Entre nós e as palavras o nosso dever falar)




Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte      violar-nos      tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas      portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
   
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida      há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
   
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
   
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

 in «Pena Capital», 1957.


  O título do poema remente para o Hamlet de Shakespeare, quando no Ato II, cena II, Hamlet dá as boas vindas, no castelo de Elsinore, aos velhos amigos Rosencrantz e Guildenstern, convocados pelo Rei sob o pretexto da «loucura» do Príncipe e destinados a ser os seus carrascos (sem eles o saberem) para serem afinal (sem eles suspeitarem) as suas vítimas.

[…] A referida obra do dramaturgo inglês foi aliás foi aliás reiteradamente invocada para assinalar obliquamente a miséria da «prisão» do Portugal salazarista, e baste para isso lembrar o lugar explicitamente nomeado por O’Neill – No Reino da Dinamarca (no diálogo entre Hamlet e os seus amigos/convidados, o príncipe dirá a uma dada altura da conversa que «Dinamarca é uma prisão»). Dinamarca é assim o Portugal onde o Surrealismo português quis materializar o seu sonho de Liberdade, Desejo, Amor e Poesia, e Elsinore a Lisboa que foi o seu território eletivo, a cidade amada/abominada por O’Neill e contrasposta a um Paris «onde o amor encontra os seus caminhos» (o Paris de Nadja por exemplo), a cidade de Palagüin de Carlos Eurico da Costa ou, enfim, a cidade do poema «Crónica» de Fernando Lemos. […]

      O poema, assim, define como poucos o que foi, o que quis ser e o que não pode ser a intervenção surrealista em Portugal, ao mesmo tempo que assinala os limites que à reabilitação da realidade e à nossa própria realização impõem aqueles que fizeram de Elsinore uma prisão, e da Dinamarca toda um território de podridão e de mentira; mas também aponta para a celebração do poder libertador da Palavra, instrumento de evasão da realidade real e de criação duma poética onde melhor nos instalarmos, porque, afinal, como lembrava o próprio Cesariny em 1949 no «Final de um Manifesto»,no círculo da sua ação, todo o verbo cria o que afirma.
          
Perfecto E. Cuadrado Fernández, Século de Ouro. Antologia Crítica da Poesia Portuguesa do Século XX.Organização de Osvaldo Manuel Silvestre e Pedro Serra. Braga/Coimbra/Lisboa, Angelus Novus & Cotovia, 2002.            

http://folhadepoesia.blogspot.pt/2013/07/you-are-welcome-to-elsinore-cesariny.html
***

cinepovero2009

VIDEO_POEMA #04


Mário Cesariny (1923-2006)
"You Are Welcome to Elsinore" in «Pena Capital», 1957.
Poema dito pelo próprio.


Música: Excerto do 3º Andamento da Sinfonia nº 3 de Henrik Górecki («Symfonia Pieśni Żałosnych» - Sinfonia das Canções Tristes).

Clip no fim: Fragmento da sequência final do filme de Michelangelo Antonioni, «Zabriskie Point»

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

impostos com o mundo – das corridas de pombos ao piripiri suave


Muitas dúvidas que as empresas colocam às Finanças sobre ínfimos pormenores das regras fiscais são matéria fértil para criativas crónicas de costumes. Vasculhando as informações vinculativas do fisco, encontra-se uma verdadeira casa das histórias.
PEDRO CRISÓSTOMO (Texto) e 
SIBILA LIND (Ilustração)
 22 de Outubro de 2017, 7:20
Cada caso é um caso e estes, que percorrem o nosso dia-a-dia de forma tão silenciosa, são particularmente curiosos. As pequenas histórias que aqui se vão contar, fica o leitor avisado, podem não provocar o espanto, nem o riso, nem sequer desafiar a lógica (pelo contrário), mas não deixarão de se considerar peculiares.

Alguma vez nos interrogámos por que razão um puré de fruta que compramos no supermercado pode ser tributado com o IVA a 23% e não a 6%, ou por que razão algo tão específico como a casca de pinho lavada e vaporizada é vendida a uma taxa diferente da casca de pinho no estado em que se encontra na árvore?

Para tudo isto há uma explicação fundada na lei e na interpretação das regras fiscais. Mas a complexidade do mundo da fiscalidade é também a das próprias sociedades (ou vice-versa). E não são raras as perguntas que as empresas colocam à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) portuguesa para esclarecer o mais ínfimo pormenor de uma determinada norma.

Espreitámos algumas das respostas que o fisco apresenta nessas informações vinculativas às empresasDe tudo se encontra no Portal das Finanças, onde sobressaem dúvidas em relação ao IVA de produtos alimentares muitos específicos. O cardápio, eminentemente técnico, certamente pode ser fonte de inspiração de nutricionistas, chefs ou até críticos de gastronomia.

Foto
O pombo certo
Esta é uma história que não envolve repasto à mesa; tem a ver com a aplicação do Imposto do Selo. Quem acerta no jackpot do Euromilhões terá de pagar ao Estado 20% de imposto. Mas será que as regras que se aplicam aos prémios dos jogos sociais, ao bingo, às rifas ou ao loto são idênticas para quem sai vencedor de uma competição de pombos-correio? Foi isso que o promotor de um derby de columbofilia quis clarificar, enviando à AT um pedido de informação sobre o assunto.

Recebeu um “não” como resposta. E há algumas singularidades que o justificam. Para chegar àquela conclusão, a AT começou por analisar se o evento em causa se enquadrava no conceito de “jogo” ou nas “modalidades” previstas na tabela geral do Imposto do Selo. Desde logo concluiu que não se enquadrava. É que embora o regulamento do derby se refira ao “concurso” e ao “prémio”, o que está em causa é a “prática de uma modalidade desportiva relacionada com a criação e selecção de pombos-correio para competição”. E como assim é, os prémios são atribuídos “em função da classificação dos participantes, na sequência da confrontação desportiva dos respectivos pombos-correio inscritos”.

Como não dependem de qualquer factor-sorte, mas antes do desempenho do pombo – “dos treinos realizados, da capacidade física e de orientação” –, nada têm a ver com a modalidade dos jogos de fortuna ou azar. Glória aos vencedores: os prémios ficam isentos do Imposto do Selo.

O camarão congelado
Nas informações vinculativas do IVA há imperdíveis casos em que as empresas querem ter a certeza de qual é a taxa que se deve aplicar aos seus produtos. Um operador da indústria pesqueira, vendedor de congelados e refrigerados, pretendia clarificar a regra sobre o camarão que comercializa. E a dúvida prendia-se com a especificidade do negócio: o camarão é produzido em aquicultura e vendido ultracongelado, é comercializado cru, mas adicionado de antioxidantes ou conservantes, para preservar a cor do crustáceo. A empresa defendia que devia ser aplicada a taxa reduzida (6%) prevista para as culturas aquícolas e piscícolas. Mas neste caso a AT explicou que o produto teria de ser tributado à taxa normal (23%).

A explicação é muito técnica, mas de forma simplificada é possível dizer que o fisco justificou a decisão com o facto de os crustáceos, ao contrário do peixe e dos moluscos, não estarem na lista dos produtos com taxa reduzida, nem poderem ser tributados ao valor mais baixo previsto para determinadas actividades de produção agrícola, onde se incluem as culturas aquícolas e piscícolas. Isto porque a empresa, afinal, “não exerce a actividade de produção agrícola, na variante de aquicultura, nem comercializa produtos provenientes de um produtor aquícola que não tenham sido sujeitos a processamento industrial, como exigido para aplicação” da taxa reduzida. Ponto final do fisco.

A mariscada especial
Continuamos à mesa. Uma empresa quis saber se um preparado de mariscada de 800 gramas, sem glúten, podia ser considerado um produto dietético destinado “à nutrição entérica e produtos sem glúten para doentes celíacos”. Teria a vantagem de beneficiar do IVA a 6%. Os serviços do fisco examinaram o produto ao pormenor, descrevendo como está embalado. Há lá mexilhão, amêijoa, camarão, miolo de camarão, mexilhão meia concha, delícias do mar sem glúten, miolo amêijoa, tudo numa cuvete “etiquetada e embalada numa caixa de cartão canelado”. Só que a rotulagem do produto, detectou o fisco, só faz referência a quatro itens – o país de origem, o método de pesca, o nome científico e a chamada “zona de pesca FAO”. E as regras europeias estabelecem mais condições.

Teve a mariscada o mesmo azar do que o camarão. Aplica-se o IVA normal porque não foi possível concluir que o produto cumpre os regulamentos da União Europeia relativos à “prestação de informação ao consumidor sobre a ausência ou a presença reduzida nos géneros alimentícios de ‘glúten’”. Não fosse isso, teria a Mariscada 800 grs outro destino. Foi o que aconteceu com o Preparado para Mariscada sem Glúten 500 grs: o fisco já aprovou a taxa reduzida porque se comprovou que o produto foi sujeito a “um especial processo de preparação que dirime qualquer risco de contaminação ou presença de glúten”.

A casca de pinho
Indo agora à produção florestal, a mesma pergunta se impõe para a casca de pinheiro. Se ela for vendida tal e qual se encontra na árvore, então o IVA é de 6%; se a casca for lavada, vaporizada e calibrada já é tributada à taxa normal (23%), porque se trata de um “subproduto da madeira obtido de forma industrial”. E assim ficou esclarecida a empresa de comércio e serração de madeira, que queria pôr um ponto final num constante problema de facturação com os seus fornecedores. Não existia consenso, consensualizado ficou com a decisão do fisco.

O frango na brasa
Voltemos às refeições. Neste caso, a uma “unidade móvel de produção e venda de frango no churrasco e tiras de costela de porco ‘para fora’ (take away) e de embalagens de batatas fritas que não configuram uma refeição pronta a consumir”. Trinta e quatro palavras para definir o negócio. Eis o dilema: que taxa aplicar ao serviço e à venda das embalagens de batatas.

Aqui, a conclusão parece mais simples: a venda do frango e das tiras, como take away, é tributada com o IVA da restauração, a 13%, porque é isso que a lei prevê. Já as batatas fritas não são nesta circunstância uma refeição pronta a consumir, ficando de fora da lista de bens e serviços da taxa intermédia.

Não é caso único. Quando a meio de 2016 o IVA da restauração baixou parcialmente para os 13% (nos serviços de alimentação, cafetaria e água lisa), foram muitas as dúvidas que se levantaram sobre a abrangência da medida. O que aconteceria com as farturas e os churros vendidos nas roulotes das feiras? A lei prevê o IVA de 13% para as “refeições prontas a consumir, nos regimes de pronto a comer e levar ou com entrega ao domicílio”. Mas não é o caso das farturas se elas forem vendidas “sem meios de apoio adicionais”, porque, entendo o fisco, os produtos em causa “não integram o conceito de refeição”.

Diferente é o que se passa com os cachorros quentes que podem ser consumidos no local, nas mesas e cadeiras da esplanada da roulote. São um alimento preparado pronto a consumir e aqui já se aplica o IVA da restauração.

Os barcos de pesca
A lei prevê que os bens de abastecimento a bordo das embarcações de pesca costeira estejam isentos do IVA, com excepção das provisões de bordo (os produtos a serem consumidos pela tripulação e pelos passageiros). Embora o caso pareça claro, complica-se porque a lei também prevê que fiquem isentos os “serviços de alimentação e bebidas fornecidos pelas entidades patronais aos seus empregados”.

Ora, perante isto, uma empresa pretendia saber se teria ou não de pagar o IVA na compra das provisões (as refeições, a alimentação e as bebidas). Resposta: os valores não poderão ser deduzidos, salvo se a empresa renunciar à outra isenção do serviço de alimentação dos empregados.

As aulas de vela
Vejamos agora o caso de um professor de vela que passa recibos verdes e prevê ganhar este ano mais do que os dez mil euros anuais que lhe garantem a isenção do IVA. Ainda pode ficar livre do imposto pelo facto de dar aulas num clube desportivo, tendo em conta que a lei prevê a isenção quando o serviço prestado é o ensino?

Também neste caso a resposta é “não”. Tudo por causa das especificidades da lei. É que o código, vinca o fisco, prevê que isso aconteça quando as aulas são dadas nas escolas do Sistema Nacional de Educação ou nos estabelecimentos “reconhecidos como tendo fins análogos”. Não era o caso, paga-se o imposto.

O óleo e o azeite
À luz do código do IVA, o azeite é tributado ao IVA reduzido, o mesmo acontecendo com a banha e outras gorduras de porco, mas não com as restantes gorduras e óleos gordos. Significa isto que tanto o azeite virgem extra, como o azeite virgem, e o azeite composto por azeite refinado e azeite virgem são tributados a 6%. Mas de fora fica o azeite de repasse, “obtido a partir da centrifugação do bagaço de azeitona”, não destinado ao consumo humano. E se é isso que a empresa produz, então está a produzir um óleo e não um azeite, sendo tributado com o IVA a 23%. Decisão carimbada.

Voltemos ao puré da fruta, “pronto a comer à colher”. Não é um sumo. Também não é um néctar de fruta. É, como a própria empresa o diz, um produto que pode ser consumido como uma sobremesa ou na confecção de bolos e tartes. Olhando para as características, não se aplica a mesma regra dos néctares de fruta, e por isso é tributado a 23% e não à taxa mínima.

O sal com piripiri
Por fim, eis uma decisão que revela como a intensidade do piripiri no sal pode fazer toda a diferença para determinar um “sim” ou um “não” do fisco. Qual é o IVA aplicado à flor de sal aromatizado, “especificamente aos produtos ‘flor de sal natura com piripiri suave’, ‘flor de sal natura com piripiri médio’, ‘flor de sal natura com piripiri intenso’ e ‘flor de sal natura com alho’”? Como a lei prevê uma taxa reduzida para o sal-gema e o sal marinho, isso também vale nestes casos tão concretos?

Para decidir, o fisco teve em conta a forma como é feita a aromatização dos produtos. O procedimento, argumentou a empresa, é em tudo semelhante ao da “aromatização pelo fumo, já que os ingredientes aromatizantes são incorporados por um processo de absorção, não sendo alterada a característica principal do sal ou da flor de sal”. E na sua essência, concluiu a AT, os produtos continuam a ser flor de sal à qual se adiciona “piripiri com diferentes intensidades e alho”.

Neste caso, chegou à empresa uma boa notícia: desde que as características da flor de sal se mantenham, aplica-se a taxa de 6%, pois o produto entra na categoria de sal-gema.

Com mais ou menos piripiri, fica uma trivialidade para quebrar o gelo à mesa. O fisco decidiu, está decidido.

domingo, 22 de outubro de 2017

José Afonso - a realidade e a utopia


“Não me arrependo de nada do que fiz. Mais: eu sou aquilo que fiz. Embora com reservas acreditava o suficiente no que estava a fazer, e isso é que fica. Quando as pessoas param há como que um pacto implícito com o inimigo, tanto no campo político, como no campo estético e cultural. E, por vezes, o inimigo somos nós próprios, a nossa própria consciência e os alíbis de que nos servimos para justificar a modorra e o abandono dos campos de luta”. Em entrevista a Viriato Teles, in «O Jornal», 27/4/84.

* Victor Nogueira


1. - O José Afonso comove-me muitas vezes, Faz parte da história de resistência e de luta de muitos da minha geração, de luta contra o fascismo e a opressão. Tem uma voz rica e multifacetada. Mas José Afonso não era apenas o cantautor da resistencia e luta. era também o do lirismo (Carta a  Faia Maria)

2. Não sei quando foi a 1ª vez que ouvi falar do Zeca Afonso (creio que havia discos dele na discoteca dos meus pais, que apreciavam fados de Coimbra, para além de ópera e música coral, inclundo a alentejana e a dos Coros do Exército Vermelho), mas lembro-me de em Luanda nos anos 60 ter atendiido em casa um telefonema dum nosso colega no Salvador Correia - o Virgílio Barbosa . a dizer-me que tinha acabado de receber um certo disco, e foi assim que pelo telefone ele me deu a ouvir .... "Os Vampiros" 

3. -  memória de zeca afonso e do fascismo 


1971
Como única companhia nesta tarde o José Afonso, melhor, a voz do Zeca Afonso, que sai dos alto falantes [do giradiscos] e enche o quarto, mas não a minha alma, demasiado grande para a minha alma tão pequena. (NSF - 1971.02.28 - em évoaburgomedieval)

1972
Em Setúbal reconheci o Zeca Afonso. Refreei o impulso de perguntar lhe "Você é que é o Zeca Afonso ?" e deixei o seguir para um café da Praça do Bocage. (MCG - 1972.12.29)

1987
Ali no gravador canta o Zeca Afonso, que tinha uma voz muito bonita. E ao mesmo tempo fico triste com elas (canções), porque me fazem lembrar o tempo do fascismo, quando havia esperança de lutar e conseguir um mundo melhor, sem guerra,. nem miséria, nem fome, mas onde houvesse alegria, liberdade e paz. (SNS - 1987.04.26)

2007
 José Afonso - Um amigo - Para muitos de nós o Zeca foi uma referência e um amigo. Ao vivo, só o vi duas vezes; num dos últimos espectáculos, no Clube Naval Setubalense, quase sempre sentado por causa da doença que o mataria, e outra no meio da multidão num dia normal na Praça do Bocage. O Zeca tinha uma voz rica e era um homem solidário, que os senhores do dinheiro através dos seus tiranetes e marionetas, quiseram calar, maneira eufemística de dizer ASSASSINAR, que é o que decorre da proibição de trabalhar, do activo repúdio do comunismo e doutras formas subversivas que resultam do dia de trabalho à hora, à peça, ou do desemprego, seja ele resultante da informação de bufos e PIDES, seja pela prepotência do patronato, seja este analfabeto ou matarroano ou mal vestido, ou doutorado, bem vestido, bem penteado e escanhoado, para além de perfumado e bem falante.

Durante o meu «exílio» em Évora, a música foi uma das minhas amizades e companhias. Entre outra, o canto de intervenção, de que destaco três «amigos» - o Zeca, o Adriano e o Joaquin Diaz. Para não falar, noutra onda, no Jacques Brell, no Charles Aznavour, no Gilbert Bécaud e na Edith Piaff. (2007.11.16)

Por isso, andando por ali e por aqui, convido-vos a visitar José Afonso. A entrada é aqui -> Maria Faia - José Afonso
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2014 / 2016
Em José Afonso - Um amigo falei das duas únicas vezes em que me lembro de ter visto o Zeca Afonso pessoalmente. Mas já o conhecia de Luanda, duma data, que situa nos anos 60 do milénio passado, quando em casa recebi um telefonema do meu colega do Liceu e amigo Virgílio que me disse um pouco em surdina: «Ouve este disco que acabou de me chegar às mãos». E assim, pelo telefone, ouvi pela 1ª vez o José Afonso, interpretando «Os Vampiros».

(...) E aqui voltamos ao gira-discos e ao Zeca. Para além de música clássica, havia livros e discos apreendidos pela PIDE e FORA do MERCADO, sendo crime tê-los em casa. E assim o que sobrava da mesada era para livros e discos, estes comprados por baixo do balcão e vendidos apenas a clientes de confiança. Deste modo, para além de pessoas, acompanhavam-me, para além da música clássica e de ópera, o Luís Góis, o Fernando Machado Soares, o Zeca Afonso, o Adriano, o então Pe. Fanhais, Cantos Revolucionários de Le Chant du Monde, Joaquin Diaz, Luís Cila, Jacques Brell, José Mário Branco, o Manuel Freire. Ary dos Santos e o seguimento quase religioso do Zip-Zip e, quanto a mim, d’ As Conversas em Família do Marcelo Caetano, num outro café mais popular, salvo erro o Alentejano, que comentavam em voz alta e entre si as suas discordâncias com a conversa fiada do Marcello.

(...) Aqueles cantores atrás referidos e outros eram os nossos amigos e companheiros, a Voz da Resistência e do Combate, e por isso ouvir hoje essas canções comove-me e simultaneamente melancoliza-me, pela não concretização do Sonho que o 25 de Abril criou, afinal breve esperança que não será concretizada na nossa geração..Mas o capitalismo já leva seiscentos anos de existência e só agora conseguiu criar condições para se estender pelo todo o mundo. Mas a Comuna de Paris durou escasso tempo, as Revoluções de 1848 e de 1918 foram esmagadas de forma cruel e sangrenta, a Revolução de Outubro aguentou-se mais tempo. E como dizia Lincoln ( se entretanto não houver um holocausto nuclear), «pode-se enganar todo o Povo durante algum tempo, pode enganar-se uma parte do Povo todo o tempo, mas não se pode enganar todo o Povo todo o tempo». (2014.02.23 / 2016.11.25)

https://aoescorrerdapena.blogspot.pt/2017/02/jose-afonso-notas-breves-e-memorias.html



Canção de embalar -  Cantares do Andarilho "LP 1968"

Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada

Outra que eu souber será pra ti
ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô ô (bis)
Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar
Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor
Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme quinda à noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer


Canto moço - do LP Traz Outro Amigo Também, lançado em 1970.

Somos filhos da madrugada
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de quem nos traga
Verde oliva de flor nos ramos
Navegamos de vaga em vaga
Não soubemos de dor nem mágoa
Pelas praia do mar nos vamos
À procura da manhã clara

Lá do cimo de uma montanha
Acendemos uma fogueira
Para não se apagar a chama
Que dá vida na noite inteira
Mensageira pomba chamada
Companheira da madrugada
Quando a noite vier que venha
Lá do cimo de uma montanha

Onde o vento cortou amarras
Largaremos p'la noite fora
Onde há sempre uma boa estrela
Noite e dia ao romper da aurora
Vira a proa minha galera
Que a vitória já não espera
Fresca, brisa, moira encantada
Vira a proa da minha barca.



José Afonso canta "Maria" acompanhado à viola por Rui Pato. Esta música é o lado B do single "Ó Vila de Olhão" editado em 1964. A capa é uma pintura de Maria de Lurdes Ribeiro, mais conhecida por Maluda.

Maria

Maria
Nascida no monte
À beira da estrada
Maria
Bebida na fonte
Nas ervas criada

Talvez
Que Maria se espante
De ser tão louvada
Mas não
Quem por ela se prende
De a ver tão prendada

Maria
Nascida do trevo
Criada na trigo
Quem dera
Maria que o trevo
Casara comigo

Prouvera
A Maria sem medo
Crer no que lhe digo
Maria
Nascida no trevo
Beiral do mendigo
Maria
Nascida no trevo
Beiral do mendigo

Maria
De todas primeira
De todas menina
Maria
Soubera a cigana
Ler a tua sina

Não sei
Se deveras se engana
Quem demais se afina
Maria
Sol da madrugada
Flor de tangerina
Maria
Sol de madrugada
Flor de tangerina



Menino do bairro negro  do EP Baladas de Coimbra editado em 1963

Olha o sol que vai nascendo 
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz

Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção
Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Se até da gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti

Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção



A Morte Saiu à Rua é um EP de José Afonso, editado a partir do LP  Eu Vou Ser Como a Toupeira, lançado em 1972. A canção de José Afonso é uma homenagem a José Dias Coelho, militanta do PCP  morto pela PIDE em 19 de Dezembro de 1961

A morte saiu à rua num dia assim
Naquele lugar sem nome para qualquer fim

Uma gota rubra sobre a calçada cai
E um rio de sangue de um peito aberto sai

O vento que dá nas canas do canavial
E a foice duma ceifeira de Portugal

E o som da bigorna como um clarim do céu
Vão dizendo em toda a parte o Pintor morreu

Teu sangue, Pintor, reclama outra morte igual
Só olho por olho e dente por dente vale

À lei assassina, à morte que te matou
Teu corpo pertence à terra que te abraçou

Aqui te afirmamos dente por dente assim
Que um dia rirá melhor quem rirá por fim

Na curva da estrada hà covas feitas no chão
E em todas florirão rosas de uma nação


Catarina Efigénia Sabino Eufémia foi uma ceifeira portuguesa que, na sequência de uma greve de assalariadas rurais, foi assassinada a tiro, pelo tenente Carrajola da Guarda Nacional Republicana.
O poema de Vicente Campinas "Cantar Alentejano" foi musicado por Zeca Afonso no álbum "Cantigas de Maio" editado no Natal de 1971.

Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer

Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou

Acalma o furor campina
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou

Aquela pomba tão branca
Todos a querem p'ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti

Aquela andorinha negra
Bate as asas p'ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar


Menina dos olhos tristes - do single "Canta Camarada" (1969) - Poema de Reinaldo Ferreira

Menina dos olhos tristes 
o que tanto a faz chorar 
o soldadinho não volta 
do outro lado do mar 

Vamos senhor pensativo
olhe o cachimbo a apagar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar

Senhora de olhos cansados
porque a fatiga o tear
o soldadinho não volta
do outro lado do mar

Anda bem triste um amigo
uma carta o fez chorar
o soldadinho não volta
do outro lado do mar

A lua que é viajante
é que nos pode informar
o soldadinho já volta
está mesmo quase a chegar

Vem numa caixa de pinho
do outro lado do mar
desta vez o soldadinho
nunca mais se faz ao mar


"Tenho barco, tenho remos" dum poema popular alentejano

Tenho barcos, tenho remos 
Tenho navios no mar 
Tenho amor ali defronte 
E não lhe posso chegar.
Tenho navios no mar 
Tenho navios no mar 
Tenho amor ali defronte 
Não o posso consolar. 
Tenho amor ali defronte 
Não me posso consolar.
Já fui mar já fui navio 
Já fui chalupa escaler 
Já fui moço, já sou homem 
Só me falta ser mulher.
Só me falta ser mulher 
Só me falta ser mulher 
Já fui moço, já sou homem 
Já fui chalupa escaler.


Verdes são os campos - poema de Luís de Camões musicado por José Afonso.

Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.

Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.



Milho verde - Popular (Beira Baixa) - do LP Cantigas do Maio, ediado em 1971.

Milho verde, milho verde
Milho verde maçaroca
À sombra do milho verde
Namorei uma cachopa

Milho verde, milho verde
Milho verde miudinho
À sombra do milho verde
Namorei um rapazinho

Milho verde, milho verde
Milho verde folha larga
À sombra do milho verde
Namorei uma casada

Mondadeiras do meu milho
Mondai o meu milho bem
Não olhais para o caminho
Que a merenda já lá vem



"As sete mulheres do Minho" (poema popular) do. álbum: "Fura-fura" (1979)

As sete mulheres do Minho
mulheres de grande valor
Armadas de fuso e roca
correram com o regedor

Essa mulher lá do Minho
que da foice fez espada
há-de ter na lusa história
uma página doirada

Viva a Maria da Fonte
com as pistolas na mão
para matar os Cabrais
que são falsos à nação



Chamaram-me cigano - do LP Cantares de Andarilho, editado em 1968

Chamaram-me um dia
Cigano e maltês
Menino, não és boa rés
Abri uma cova
Na terra mais funda
Fiz dela
A minha sepultura
Entrei numa gruta
Matei um tritão
Mas tive
O diabo na mão
Havia um comboio
Já pronto a largar
E vi
O diabo a tentar
Pedi-lhe um cruzado
Fiquei logo ali
Num leito
De penas dormi
Puseram-me a ferros
Soltaram o cão
Mas tive o diabo na mão
Voltei da charola
De cilha e arnês
Amigo, vem cá
Outra vez
Subi uma escada
Ganhei dinheirama
Senhor D. Fulano Marquês
Perdi na roleta
Ganhei ao gamão
Mas tive
O diabo na mão
Ao dar uma volta
Caí no lancil
E veio
O diabo a ganir
Nadavam piranhas
Na lagoa escura
Tamanhas
Que nunca tal vi
Limpei a viseira
Peguei no arpão
Mas tive
O diabo na mão



Os Vampiros, no EP Baladas de Coimbra editado, em 1963
José Afonso - (ao vivo no Coliseu de Lisboa, em  29 de Janeiro de 1983) - 

No céu cinzento 
Sob o astro mudo 
Batendo as asas 
Pela noite calada
Vem em bandos
Com pés veludo 
Chupar o sangue 
Fresco da manada 

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo 
E lhes franqueia 
As portas à chegada 
Eles comem tudo 
Eles comem tudo 
Eles comem tudo 
E não deixam nada 
A toda a parte 
Chegam os vampiros 
Poisam nos prédios 
Poisam nas calçadas 
Trazem no ventre 
Despojos antigos 
Mas nada os prende 
Às vidas acabadas 

São os mordomos
Do universo todo 
Senhores à força 
Mandadores sem lei 
Enchem as tulhas 
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia 
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada