quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Miguel Torga - Agora

* Miguel Torga

Abre-te primavera !
Tenho um poema á espera
Do teu sorriso.
Um poema indeciso
Entre a coragem e a covardia.
Um poema de lírica alegria
Refreada,
A temer ser tardia
E ser antecipada.

Dantes, nascias
Quando eu te anunciava.
Cantava,
E no meu canto acontecias
Como o tempo depois te confirmava.
Cada verso era a flor que prometias
No futuro sonhado...
Agora, a lei é outra: principias,
E só então eu canto confiado.

Miguel Torga

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Bagão Felix - Silêncio entre silêncios (e um aniversário)

18 de Maio de 2016, 12:29
Por António Bagão Félix



F
requentemente acontece guardar-se um minuto de silêncio pela morte de alguém com algum significado ou representação. Nos recintos desportivos, essa forma de homenagem exprime-se, em geral, perante muitos espectadores. Sobretudo nos estádios de futebol, o silêncio é, não raro, substituído pelo ruído de muita gente que se está nas tintas para o momento de respeito, como também por palmas e palminhas miméticas para quem 60 segundos de silêncio são quase uma eternidade impossível de cumprir. Como isto é exasperante diante de quem não é capaz de ter a sensibilidade e o respeito de guardar silêncio, como se um minuto cronológico fosse uma “prisão perpétua”!
Ainda recentemente, assim foi na homenagem a um ex-árbitro internacional falecido, Paulo Paraty de 53 anos. Num dos estádios – não importa qual, pois o que aconteceu não é exclusivo deste ou daquele clube – não tivemos silêncio, não tivemos palmas, mas antes assobios. Tratava-se de um árbitro, logo inimigo mesmo na morte. Onde chega a ignomínia moral!
Este é um dos lados mais soezes e indigentes do horror ao silêncio. O horror ao vácuo do som (mesmo que não o possamos traduzir por silêncio, coisa bem distinta) vive todos os dias entre nós. É que o silêncio incomoda a mente de quem só vê o seu contrário como vantajoso, numa abordagem cretinamente utilitarista. O silêncio não é a moda. O que hoje mais parece contar não é a magnanimidade do silêncio respeitado, mas antes a sua ostensiva violação, mesmo que através da fronteira acústica de sons ocos, de interjeições vazias e de palavras perdidas no vazio de ideias.
O silêncio não é apenas a ausência do som, como a sombra não se esgota no recato da luz. O silêncio existe para além da não existência do seu oposto. Não foi o silêncio que veio perturbar a necessidade do ruído, mas o inverso. Por isso, este é dependente daquele. E, afinal, o que mais conta: o silêncio entre palavras ou as palavras entre silêncios? Ou, como escreveu Mia Couto, será que o silêncio não é a ausência da fala porque é o dizer-se tudo sem nenhuma palavra?
Não há apenas o silêncio, há os silêncios. O bom e o mau. O genuíno e o cretino. O sem medida e o calculista. O de cada um para si e o de cada um para o outro. O que brota da dignidade e o que espezinha a respeitabilidade. O da alegria e o da tristeza. O do amor e o do desamor. O da concordância e o da discordância. O da liberdade e o da opressão. O da eloquência e o da ignorância. O da serenidade e o do desassossego. O da esperança e o do desespero. O da convicção e o da responsabilidade. O da verdade e o da mentira. O da persuasão e o da omissão. O da generosidade e o da indiferença. O da autenticidade e o do fingimento. O da coragem e o do medo. O da purificação e o da contaminação. O da solidão procurada e o do abandono perverso. O da paz e o da guerra. O da argumentação e o da decantação. O da chegada e o da partida. O da presença e o da ausência. O do alfa e o do ómega. O
A Natureza gosta do silêncio sem adereços. Porque o silêncio é a forma serena de se adormecer e o modo suave de se acordar. A neve cai no silêncio. A alvura é o silêncio majestoso das cores na sua plena união. O nascer e o pôr-do-sol convidam à serenidade do silêncio. O silêncio é o dia cedo, como contraponto da noite tarde.
O olhar pode ser muito mais do que o silêncio de uma palavra não dita. O silêncio da oração pode ser dito por palavras. E o silêncio sem palavras repetidas mecanicamente pode ser a plenitude da oração. O silêncio do reencontro é a forma perfeita do amplexo fraterno. O silêncio diante da morte diz tudo no respeito de nada falar.
A sociedade incomoda-se, cada vez mais, com o silêncio. O silêncio não é um bem transaccionável que se compre ou venda, não é objecto de transmissões televisivas que, aliás, o abominam, seria um absurdo na rádio, não substitui as palavras dos jornais, é um paradoxo no activismo das redes sociais, não se associa ao sucesso, quase se lega às gerações futuras como um estigma lúgubre. O silêncio incomoda porque interpela, perturba porque vem de dentro, enfada porque não rende, afasta porque se crê ser a forma de não comunicar.
Numa qualquer reunião ficar em silêncio desqualifica, mesmo que nada se tenha para dizer. Num debate televisivo o perdedor é o que fala menos, mesmo que no intervalo do seu silêncio, tenha sido o que disse mais. Nos discursos, o que conta não é o valor do conteúdo mas o tempo em que se agride o silêncio de ainda não se ter terminado. Na discussão, ganha quem não se cala e perde quem, às vezes sensatamente, escuta, no silêncio do seu ser, a consciência do respeito. Cito, contextualizada, a sapiência de Eurípedes: “fala se tens palavras mais fortes do que o silêncio, ou então guarda silêncio”.
O silêncio é agora urbi et orbi quebrado com a autocracia do som, ainda que musical. Na espera nos telefones onde nos impingem músicas e ritmos que não pedimos e que nunca ouviríamos, a maior parte das vezes para intervalar um serviço de atendimento permanentemente entupido ou deficitário de qualidade. Um pai ou uma mãe que acabam de perder o seu filho amado são agredidos com um alegre folclore ou música pimba que àquela hora os apanhou num telemóvel. Nos elevadores, a má-criação de um silêncio de quem não tem a educação mínima de cumprimentar quem entra ou sai, é envolta numa qualquer musiqueta de pacotilha. Nos transportes ou nos táxis, o seu utilizador tem de aturar, sem dar autorização, música rasca ou anúncio aparvalhado. Nos comboios, há momentos em que as carruagens mais parecem centrais telefónicas, onde o recato é minoritário.
O silêncio é, hoje, motivo de chacota e pretexto de crítica. Já lá vai o tempo em que o silêncio era de ouro. Hoje, na época dos ruídos metalizados, nem a mais reles lata se associa ao silêncio. Fala-se, sem rodeios, do silêncio (offshore) da lei, extrema-se a linguagem quando se diz que há um silêncio sepulcral e achincalha-se um oponente quando se afirma que se reduziu o fulano ao silêncio.
Mas volto ao início. Ao silêncio desfrutado, como ao silêncio que transporta respeito. Pelo outro e por cada um. É necessário reabilitar o silêncio que nos oferece tempos de expressão lhana, cristalina, límpida de nos exprimirmos e de nos sentirmos ser. Convida-nos à profilaxia da introspecção, aproxima-nos de nós mesmos, orienta-nos na selecção do que não é silêncio.
Nunca quebres o silêncio se não for para o melhorar”, disse um dia Beethoven. Deixo estas palavras envoltas no “Silêncio de Beethoven” da autoria do notável compositor e pianista mexicano Ernesto Cortázar e convido o amável leitor a ouvi-lo. E assim o silêncio se engrandece e se acaricia através da beleza de sobre ele compor. Com uma nota intimamente pessoal: hoje a minha filha mais nova faz 40 anos. Ofereço-lhe o mais paternal e amoroso silêncio.




Uma curiosidade que muitos não conhecem: foi Portugal que inventou a hoje generalizada homenagem pública silenciosa. Em 1911, o Parlamento, em memória do ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros, primeira entidade a reconhecer a República Portuguesa, observou uma hora, repito, uma hora de silêncio; e, no dia seguinte, o Senado fez o mesmo, mas já só durante dez minutos. Este costume inaugurado pelos portugueses generalizou-se depois por todos a Europa, por ocasião da vitória dos Aliados em 1918, claro que já sobre a forma breve que conhecemos hoje, a de um minuto de silêncio.


  1. Não tem nada que agradecer João Macedo. Eu também não conhecia este pormenor, mas tenho-o como verdadeiro porque quem o diz é historiador Alain Corbin, autor de «Histoire du silence de la Renaissance à nos jours», livro onde traça a história das formas tão diferentes como o Homem ocidental amou o silêncio, rejeitou-o, procurou-o ou teve-lhe uma verdadeira aversão.
    As formas de receção do silêncio seguramente variaram ao longo da História. Creio que o Homem do século XXI suporta muito mal o silêncio, o que o confunde e deixa perante o que mais teme: o tédio. Estamos numa civilização que valoriza sobretudo o lúdico e evita deixar as pessoas a sós com os seus pensamentos.
    Há poucas semanas um artigo no Público dava conta de um curioso estudo. Para os participantes era tão insuportável estarem a sós 15 minutos com os seus pensamentos que muitos eram levados a auto-administrar um choque eléctrico apesar de terem declarado previamente que estavam dispostos a pagar para o evitar. Para o Homem do século XXI não ter nada para escutar ou fazer aparentemente é o pior que lhe pode acontecer.
  2. Não conhecia, mas acho interessante sobretudo para medir o grau de (in)capacidade de suportar o tempo do silêncio!
https://blogues.publico.pt/tudomenoseconomia/2016/05/18/silencio-entre-silencios/

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Manuel da Fonseca - Antes que seja tarde

* Manuel da Fonseca


Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha,
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.
.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Mia Couro - Solidão

* Mia Couto


Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso
Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo

Mia Couto - in "Raiz de orvalho e outros poemas"

domingo, 26 de novembro de 2017

Manuel António Pina . Não o Sonho


Gravura  - Gerhard Glueck


Manuel António Pina,


Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.


Manuel António Pina, in "Atropelamento e Fuga"

sábado, 25 de novembro de 2017

O impacto de Ziraldo na obra de jovens cartunistas

24 de novembro de 2017 - 14h28 


Especial   Ziraldo



Ilustrações de Olavo Costa, Ronaldo Barata e Tainan Rocha



Para homenagear Ziraldo, convocamos um time que entende do assunto. Os ilustradores Olavo Costa, Ronaldo Barata e Tainan Rocha toparam o desafio de reler a obra de Ziraldo com características próprias. Eles ainda nos contam de que forma o cartunista brasileiro influenciou, ou influencia, o trabalho deles.



Os desenhos foram produzidos para esta edição especial de Prosa, Poesia & Arte que conta ainda com artigos de especialistas no assunto, entre eles o desenhista e ilustrador Marcelo Campos e o quadrinista Zé Wellington.


Veja as ilustrações e os depoimentos:

Olavo Costa
“Uma pequena homenagem ao "menino quadradinho", que era o meu livro favorito quando eu era criança. Não tem como ser ilustrador ou quadrinista no Brasil, sem ser influenciado pelo traço versátil do Ziraldo!”


Ronaldo Barata
“É muito difícil pra eu falar pouco sobre o Ziraldo. Dizer que ele é um dos grandes nomes dos quadrinhos e da ilustração no Brasil é, como dizem, ‘chover no molhado’. Sendo assim, detenho-me a dizer que ele é senhor de um traço marcante, simples em essência, mas complexo em conceito, um traço elegante que funciona tão bem tanto em charges carregadas de sarcasmo e política quanto em livros infantis, repletos de uma inocência ímpar e que influenciou e ainda influencia muitos artistas (este que vos fala, inclusive). 85 anos de muita história e muitas estórias pra contar”.


“Tenho a obra do Ziraldo presente em diferentes etapas da minha vida e desde muito cedo. E talvez por isso que eu a veja semelhante aqueles livros ou filmes, que de tantos em tantos anos, valem a pena uma visita para se surpreender com uma interpretação e influência diferente... o cara é moderno faz tempo!”.







Do Portal Vermelho

Os caminhos gráficos de Ziraldo




24 de novembro de 2017 - 15h32 

Os caminhos gráficos de Ziraldo





Alguns, sem nenhum conhecimento formal, buscam um trabalho que muitos chamam de visceral, quer dizer, não se preocupam com o estudo dos fundamentos do desenho, mas buscam mais a expressividade que a técnica propriamente dita. Outros trilham o caminho do estudo técnico, de estrutura, mas todos tentam chegar a um resultado gráfico que seja identificável à primeira olhada.

Divulgação


Entender e desenvolver seu próprio olhar sobre as formas e sobre o mundo é o que o trabalho de Ziraldo ensina a todos seus filhotes

Gosto de usar o termo identidade gráfica para isso. Alguém olha o trabalho e, imediatamente, sabe quem estava ali atrás do bico de pena, do pincel, do grafite, do programa digital. Ambos os caminhos são válidos para se chegar ao resultado de comunicar bem a ideia.

Existem vários caminhos para o contador de histórias. Seja como autor de livros ou quadrinhos vale tanto o artista visceral quanto o técnico. Ambos buscam sua personalidade narrativa, sua estética gráfica. Ziraldo é tudo isso. Todos os casos ao mesmo tempo. 

No traço, na cor, na narrativa, na composição de cenas, na criação de personagens, na consciência e consistência de sua estética gráfica, em tudo Ziraldo sempre se expôs através de uma personalidade gráfica muito forte. O artista gráfico, o narrador, reproduz o real ou imagina novas realidades através de seu trabalho... e eu quando olho para um trabalho do Ziraldo sempre me pergunto: “como? Como ele faz isso? Como ele enxergou em uma árvore, uma nuvem, na água, em um sofá, em um olho, em uma mão, aquela interpretação gráfica?” Magritte diz: “isso não é um cachimbo”. Ziraldo sabe exatamente o significado disso... não é uma mão, é uma interpretação gráfica de mão; não é uma nuvem, é uma interpretação gráfica de nuvem. É o olhar e a interpretação do artista sobre o que existe. 

A busca do artista gráfico não é “só” por saber desenhar ou pintar bem, é ter justamente essa visão, é criar para que as outras pessoas enxerguem através dos seus traços e cores a maneira pela qual ele concebe a realidade. É perceber como ele pensa o tempo, o espaço, a cena, através de seus olhos. É assim que ele vê o mundo. É assim que conta histórias, como passa para o leitor, o que sente e o que entende. E essa é uma das muitas invejas que guardo comigo sobre o trabalho do Ziraldo. Não se trata de desenhar bem, mas sim de ter personalidade gráfica e, ao mesmo tempo, desenhar tecnicamente muito bem. 

Quando conheci o trabalho dele, fiz uma pasta com recortes de revistas, capas... tudo o que encontrava. Olhava para o trabalho e tentava entender o processo, entender como chegou àquele resultado. Em desenho temos a estrutura e o acabamento. Na estrutura, entendemos como ele constrói as formas, como é a construção de uma mão, de um rosto, de objetos, etc. No acabamento escolhemos o tipo de traço, de linha, de texturas de cor, de composição cromática que estarão “sobre” essa estrutura...em termos práticos, ela é a fundação de uma casa, de um prédio, as vigas, o estilo arquitetônico, o encanamento, a parte elétrica...enfim, tudo o que é necessário para que uma casa fique em pé e funcione. O acabamento é o tipo de piso, azulejos, janelas, portas, vidros, a decoração da casa, etc. Ziraldo foi um dos artistas que me fizeram entender o processo de construção da forma e de como ela pode ser esculpida de maneira consciente até resultar em uma personalidade gráfica. Ele me ajudou a perceber que essa personalidade é a reunião harmônica entre esses dois fundamentos. 

Todo artista tem seus ídolos, suas referências...mas copiar não é opção. Entender o processo deste artista, sim. Entender e desenvolver seu próprio olhar sobre as formas e sobre o mundo é o que o trabalho de Ziraldo ensina a todos seus filhotes...me considero um deles. Não é ser como ele, é ser como você é. Ensinar a construir para que depois você possa seguir seu próprio caminho. É ensinar liberdade para ser você mesmo. Arte é isso e este é o maior elogio que acho que um artista que é referência, que é influência, pode receber. Ziraldo fez isso por mim. Por isso...agradeço! 

Veja a galeria de imagens selecionadas por Marcelo: 








http://www.vermelho.org.br/noticia/304613-1




*Marcelo Campos é desenhista e ilustrador. Trabalhou para editoras como DC Comics (Justice League, Guy Gardner, Extreme Justice, Action Comics), Marvel Comics (Uncanny Originis, Journey Into Mystery, 2099 A.D,) Dark Horse (The Mask), Image (Darkness - arte-final), Cosmic Comics (Death Race 2000) e Disney (Hércules, Mulan, Tarzan). Foi criador do personagem Quebra-Queixo e ganhador de vários prê

carta de um judeu grego que sobreviveu a Auschwitz

SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
Esta carta de um judeu grego que sobreviveu a Auschwitz esteve 70 anos à espera de ser lida

Foi escrita em 1944 e enterrada perto de um dos fornos crematórios deste complexo de extermínio na Polónia. Descoberta em 1980, só agora viu o seu conteúdo decifrado. “Não tenho medo de morrer”, escreve o soldado. “Afinal, como posso eu ter medo depois de tudo o que os meus olhos viram?”

LUCINDA CANELAS 25 de Novembro de 2017, 8:20


Prisioneiros do complexo de concentração e extermínio de Auschwitz RUI GAUDÊNCIO


Marcel Nadjari, um judeu grego que servia no Exército, chegou ao complexo de campos de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau em Abril de 1944, depois de uma viagem de dez dias. Tinha 27 anos e fora capturado pela SS em Atenas. Dois anos antes, também os seus pais e a sua irmã tinham para ali sido deportados. Nadjari não chegaria a vê-los.


Chegado ao Sul da Polónia tornou-se um Sonderkommando, nome dado aos prisioneiros que eram forçados pelos nazis a executar uma série de tarefas terríveis dentro dos campos, como limpar as câmaras de gás, retirar os cabelos e os dentes de ouro aos mortos e transportar os corpos para os fornos crematórios.

Marcel Nadjari seria mais um dos prisioneiros judeus obrigados a participar da Solução Final, perdido no meio de milhões de pessoas sujeitas aos crimes de guerra nazis, se não tivesse sido o autor de um impressionante testemunho, escrito sob a forma de uma longa carta dirigida a familiares e amigos, que enterrou em Auschwitz.

Essa carta escrita em grego foi descoberta por um estudante nos anos 1980, mas o seu conteúdo estava inacessível. Começou a ser divulgado em Outubro e só nos últimos dias ficou integralmente disponível em inglês, levando a imprensa alemã e belga a regressar, em detalhe, à história deste inestimável documento.

O facto de ter estado debaixo de terra durante quase 40 anos, sujeita à acção da humidade embora fechada numa espécie de termo guardado dentro de uma bolsa de couro, precisa o jornal belga francófono Le Vif, tornou a carta ilegível (só algumas palavras eram perceptíveis). Agora, e graças à colaboração entre um especialista informático, Aleksandr Nikitiaev, e um historiador, Pavel Polian, foi possível aceder a cerca de 90% do testemunho do homem que tantos cadáveres transportou para os crematórios.

Recorrendo a uma técnica que lhe permitiu, a partir de imagens digitais da carta, salientar os trechos que eram invisíveis a olho nu, Nikitiaev ajudou a “redescobrir” o documento que Polian decifrou.

“Não tenho medo de morrer”, escreve o soldado grego, “afinal, como posso eu ter medo depois de tudo o que os meus olhos viram?”.

A carta, com 13 páginas manuscritas é dirigida a três pessoas, entre elas ao amigo Dimitris, a quem chama Misko, e foi escrita entre meados de Outubro e finais de Novembro de 1944, aparentemente na esperança de que viesse a ser encontrada e pudesse servir de testemunho. Nadjari acreditava que os nazis chegariam a exterminar todos os judeus e receava que os crimes do III Reich ficassem por denunciar.

Com uma certa ironia
No documento que enterrou numa floresta perto do crematório n.º 3 de Auschwitz, Marcel Nadjari faz uma descrição pormenorizada de todos os horrores a que assistiu diariamente e diz que quer ver os crimes nazis expostos: “Este é o meu último desejo. Condenado à morte pelos alemães porque sou judeu.”

A sua carta, que é também um testamento, faz parte de uma série de nove documentos conhecida como os Pergaminhos de Auschwitz, todos escritos – e escondidos - por homens do Sonderkommando. Pavel Polian está a estudá-los há dez anos, segundo o site da Smithsonian, instituição norte-americana dedicada à cultura e ao conhecimento.

Estes nove relatos têm cinco autores e estão na sua maioria redigidos em iídiche (o de Nadjari é o único em grego). “São os documentos mais centrais do Holocausto”, disse o historiador russo à empresa de radiodifusão alemã Deutsche Welle, defendendo, tal como outros colegas, que haverá ainda outros relatos semelhantes à espera de serem descobertos.

Na carta de 13 páginas, e apesar do contexto terrível em que vive, Nadjari não abdica, nalguns trechos, de um certo tom irónico, sarcástico até: “[…] Ficámos aproximadamente um mês em quarentena e depois deslocaram-nos, tanto os saudáveis como os doentes. Para onde? Para onde, querido Misko? Para um crematório. Vou explicar-te em baixo o trabalho adorável que o Todo-poderoso quis que fizéssemos.”

Em seguida, o soldado transformado em Sonderkommando  fala de um grande edifício com uma chaminé larga e 15 fornos. Por baixo do jardim, diz, há duas grandes caves – uma serve para os prisioneiros se despirem, a outra é uma câmara de execução. Nesta última as pessoas entram nuas e, quando já lá estão “aproximadamente três mil”, a porta é selada e todas são gaseadas. “Respiram pela última vez depois de seis ou sete minutos de martírio”, escreve, a maioria sem sequer ter chegado a suspeitar do que estava prestes a acontecer-lhe, acreditando apenas que ia tomar um duche.

“Passada meia hora abrimos as portas e o nosso trabalho começa”, continua Nadjari, presumindo que a sua própria morte não tardará. “Carregamos os corpos destas mulheres e crianças inocentes para o elevador que as transporta para a sala com os fornos, e é aí que as põem nos fornos, onde ardem sem qualquer combustível por causa de toda a gordura que tinham.”

Garante o soldado que um corpo produz cerca de 640 gramas de cinzas e de pequenos ossos, fragmentos que os militares alemães presentes obrigam os Sonderkommando a esmagar para que todos os vestígios dos prisioneiros gaseados e queimados possam depois ser lançados ao Rio Vístula, nas imediações, procurando dissimular o rasto de tais atrocidades. “Os dramas que os meus olhos viram são indescritíveis.”

Viver para vingar os pais e a irmã
Marcel Nadjari conta ainda aos três destinatários da carta - o amigo Dimitris (Misko) Stefanidis; Ilias Koen, seu primo e membro da resistência executado em 1944; e Georgios Gounaris, uma mulher grega cuja fotografia levou para Auschwitz – que fazia parte de um grupo de cerca de 1000 prisioneiros a que os nazis chamavam “unidades especiais” (os Sonderkommando) e que esperava ser eliminado como os milhares de pessoas – judeus húngaros, polacos, gregos, franceses - que tinha já transportado para os fornos.

Consciente de que, caso chegasse às mãos dos destinatários, o seu testemunho levaria a muitas perguntas sobre a sua própria conduta, Nadjari antecipa-se: “Meus queridos, quando estiverem a ler sobre o trabalho que fiz dirão - Como fui capaz, eu Manolis [nome que chama a si mesmo], ou qualquer outra pessoa, de fazer este trabalho e de queimar [outros] companheiros crentes. No começo disse a mim mesmo a mesma coisa, [e] muitas vezes, pensei juntar-me a eles para acabar com tudo. O que me impediu de fazer isso foi a vingança. Eu queria e quero viver para vingar as mortes do [meu] Pai e da [minha] Mãe, e a da minha adorada irmãzinha Nelli.”

Ao contrário do que previra, o grego Marcel Nadjari sobreviveu a Auschwitz, acabando por morrer em 1971, aos 54 anos, nos Estados Unidos, para onde emigrara com a mulher, trabalhando como alfaiate. Chegou mesmo a escrever as suas memórias de guerra, em 1947, quando estava ainda em Tessalónica, a cidade em que nasceu, mas aparentemente nunca falou da longa carta que tinha enterrado na Polónia.

“Lembra-te de mim de vez em quando, assim como eu me lembro de ti”, diz a Misko, o amigo a quem deixa as propriedades da família, contando que ele acolha o seu primo, Ilias. “Sempre que alguém perguntar por mim, diz simplesmente que eu já não existo e que parti como um verdadeiro grego.”

Já quando a carta está perto do fim, é na irmã que o soldado volta a pensar: “Por favor, Misko, vai buscar o piano da minha Nelli à família Sionidou e dá-o a Ilias para que o tenha sempre consigo […], ele amava-a tanto e ela amava-o também.”

Segundo o diário irlandês Irish Times ou o semanário belga Le Vif, Pavel Polian, o historiador russo encarregue de decifrar o texto que as modernas técnicas informáticas recuperaram, conseguiu encontrar a filha de Marcel Nadjari para lhe entregar a carta do pai, que, 70 anos depois de ter sido escrita, foi lida em voz alta numa sinagoga de Tessalónica. Ela chama-se Nelli.

O texto a que o PÚBLICO acedeu, e que neste artigo se traduz livremente, é a versão inglesa feita pelo German-Canadian Centre for Innovation and Research a partir da alemã, por sua vez transcrita do original grego.

https://www.publico.pt/2017/11/25/mundo/noticia/esta-carta-de-um-judeu-grego-que-sobreviveu-a-auschwitz-esteve-70-anos-a-espera-de-ser-lida-1793729?page=/&pos=6&b=feature_b

Pedro Alvim - Os mortos e os fósforos

GRANDES CHEIAS DE 1967
Os mortos e os fósforos
Há 50 anos, o jornalista e poeta Pedro Alvim escreveu aquela que é considerada “uma das mais belas crónicas do jornalismo português”, como a recorda Alice Vieira
12 de Novembro de 2017, 7:01 



ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO

Era ao cair da tarde — e havia mortos.
Todos muito juntos, enlameados, compridos.
Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um domingo de Inverno.

Eu estava ao telefone, um telefone de moedas de cinco tostões, a dar para o jornal o número de mortos, os seus nomes, as suas idades.
Ia escurecendo, escurecendo, e eu já não via os nomes escritos à pressa, abreviados, secos.

Um bombeiro, uma pilha nas mãos, tentava auxiliar a minha leitura, uma leitura triste, sincopada, hesitante de quando em quando. Eu sabia que tinha os mortos todos atrás de mim, indiferentes, quietos, não se importando absolutamente nada que lhes trocasse os nomes. Mas eu não queria cometer o mínimo erro, o mais pequeno deslize.

“Se tu és João” — dizia para mim — “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”

E teimava, teimava em ser exacto, pedia, pedia ao bombeiro que mantivesse o foco da pilha sobre o papel em que tinha escrito os nomes dos mortos. E carregava nas moedas de cinco tostões, mantinha a ligação telefónica, identificava-os um a um.

O tempo passava, o tempo passava sem luz eléctrica, e eu estava sempre ali ao telefone, e os familiares dos mortos iam entrando (que longa bicha!), identificavam os mortos, os nomes dos mortos eram-me dados, e eu dava os nomes dos mortos ao jornal.

“Às 4h da manhã começaram a chegar cadáveres de homens, mulheres e crianças”
“Às 4h da manhã começaram a chegar cadáveres de homens, mulheres e crianças”
Ouvia o choro dos vivos, ouvia o silêncio dos cadáveres, ouvia a noite lá fora — Depressa! Depressa! — diziam-me do jornal — Depressa que é para a terceira edição!
Iam-me faltando as moedas de cinco tostões, sentia-me aflito, pedia que me trocassem moedas de cinco, dez escudos.

E os nomes dos mortos continuavam na minha boca, lidos um a um, o mais exactamente possível.
Como um preito de homenagem.
Como um choro.
Chegavam aos meus ouvidos pormenores da tragédia, da chuva, da lama.

Eu carregava nas moedas de cinco tostões, afligia-me com o seu desaparecimento contínuo e, automatizado já, ia lendo os nomes dos mortos à luz da pilha.
Escuridão total.
— Acabou-se a carga! — disse o bombeiro.

O suor tomou-me o corpo todo — e os meus dedos amarfanhavam o papel com os nomes dos mortos ainda não transmitidos.
E agora? E agora? Agora que a pilha tinha dado de si — que fazer, que fazer?

— Acendam fósforos! — gritei — Estes fósforos!
E assim foi: à chama tremida do enxofre, dos fósforos, acesos um a um, fui lendo o nome dos mortos que restavam, que estavam ainda no papel, sem o mais pequeno deslize.
“Se tu és João” — dizia para mim — “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”

Quando, finalmente, abandonei o telefone, ganhei a rua, respirei a noite, apeteceu-me loucamente um cigarro, um cigarro que me turvasse, um cigarro para esquecer aquilo tudo.
Meti, os pulmões ansiosos, um cigarro na boca — mas não pude, não pude fumar, não pude acender o cigarro: os mortos tinham queimado todos os meus fósforos.

Pedro Alvim era jornalista do Diário de Lisboa. Esta crónica foi publicada em O Homem na Cidade (Prelo Editora, 1968) e foi recuperada agora no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

https://www.publico.pt/2017/11/12/sociedade/noticia/os-mortos-e-os-fosforos-1791981

Cecília Meireles - De que são feitos os dias?

Cecília Meireles


De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.
Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inactuais esperanças.

De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.

Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças.

Cecília Meireles, in 'Canções'

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Cecília Meireles - Dia de chuva

* Cecília Meireles


As espumas desmanchadas
sobem-me pela janela,
correndo em jogos selvagens
de corça e estrela.
Pastam nuvens no ar cinzento:
bois aéreos, calmos, tristes,
que lavram esquecimento.
Velhos telhados limosos
cobrem palavras, armários,
enfermidades, heroísmos...
Quem passa é como um funâmbulo,
equilibrado na lama,
metendo os pés por abismos...
Dia tão sem claridade!
só se conhece que existes
pelo pulso dos relógios...
Se um morto agora chegasse
àquela porta, e batesse,
com um guarda-chuva escorrendo,
e, com limo pela face,
ali ficasse batendo
— ali ficasse batendo
àquela porta esquecida
sua mão de eternidade...
Tão frenético anda o mar
que não se ouviria o morto
bater à porta e chamar...
E o pobre ali ficaria
como debaixo da terra,
exposto à surdez do dia.
Pastam nuvens no ar cinzento.
Bois aéreos que trabalham
no arado do esquecimento.


(in Cecília Meireles, Antologia Poética, Relógio d'Água)

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Pilar del Rio: “José foi uma maldição”


JOÃO LIMA
Diz que chegou a Portugal como o “apêndice” de um homem e que, por cá, não faz parte da memória de ninguém. Mas carrega o peso de um legado imensamente português, que ajudou a construir. O trabalho na Fundação Saramago valeu-lhe o Prémio Luso-Espanhol de Cultura, que receberá em maio


ALEXANDRA CARITA

LUCIANA LEIDERFARB
texto

JOÃO LIMA
fotos

Recebe-nos no gabinete que ocupa na Fundação Saramago. E, mal abre a porta, a luz: Pilar é alta, bonita, exuberante, jovem. Uma jovem de 67 anos — idade que, dirá, não encontra em nenhuma parte do seu corpo. Rapidamente somos puxados para dentro do seu turbilhão, esse que a levou a criar esta casa há uma década, a casar com “um dos cidadãos mais completos do século XX”, 30 anos mais velho do que ela, a abdicar de uma carreira de jornalista, a mudar de pele, de país, a não parar de trabalhar, mesmo que o cansaço por vezes se imponha. E quem é esta mulher? Alguém que não quer morrer numa “decadência ostensiva”. Que não corresponde, nunca correspondeu, a estereótipos ou normas sociais. Que acorda todos os dias para viver “da e com a memória”, consciente de ter sido protagonista de uma experiência que muitas mulheres gostariam de ter tido. Uma “maldição” que ainda hoje, sete anos passados sobre a morte de José Saramago, a afasta de refazer a vida, porque, simplesmente, não lhe apareceu à frente outro igual a ele.

Sabendo que não gosta que lhe 
chamem a viúva de Saramago, quem é Pilar del Río hoje, aos 67 anos?
Não gosto que me chamem ‘viúva de’ porque ninguém me chamou ‘mulher de’ enquanto Saramago foi vivo. Isto por duas razões: porque tinham de enfrentar Saramago e tinham de me enfrentar a mim. Cada um de nós é o produto de si próprio. Não somos nem do pai nem do filho. Somos o que queremos ser. Nunca fui a mulher de Saramago nem serei a viúva dele, por respeito a Saramago e a mim própria.

E então quem é essa Pilar?
Uma mulher que não corresponde a estereótipos como o bom comportamento ou às normas sociais que se esperam de alguém que já tem uma idade. Talvez porque essa mulher ainda não consiga encontrar os 67 anos em nenhuma parte do seu corpo. Claro que me olho ao espelho, mas acho que o que está mal é um problema do espelho. Sou uma pessoa que todos os dias, ao acordar, pensa no que quer fazer da sua vida. Não tenho ainda um caminho definido. Ou seja, não estou reformada de nada. Faço a minha vida como quando tinha 20 ou 30 anos. Vou trabalhar. Não quer dizer que não tenha problemas. Tenho-os, de saúde...

Não sente que abdicou de uma carreira?
Sinto que tive um impasse. Isso também me dizia o meu marido, que eu tinha abdicado de uma carreira para estar com ele, para participar e estar no seu projeto, e, de facto, fui parte ativa nesse projeto. Mas ele também dizia, nos últimos anos da sua vida e pensando nestas coisas da internet (fiz-lhe um site), que eu tinha voltado à minha antiga profissão, a de jornalista. A contar, a dizer, a compor... Se calhar, estou de volta ao projeto inicial da minha vida.

Essa mulher que está no seu projeto original persegue um caminho, quer alguma coisa. O que é?
Tendo conseguido que esta fundação funcione e que tenha gente entre os 30 e os 40 anos, essa mulher não quer morrer numa decadência ostensiva.

Porque é que se tornou jornalista?
Porque gostava de contar coisas que antes gostava de ouvir. Acima de tudo, sou uma ‘ouvidora’, oiço, oiço todo o tipo de gente em todo o tipo de circunstâncias. Tudo me maravilha. Nasci para me maravilhar com uma bola que rebola, com uma estrada que está a ser arranjada... Gosto de contar essas coisas. Tive um programa de rádio há muito tempo, já depois de ter conhecido o José, chamado “Blimunda Não Se Rende”. Nele contava as maravilhas que Blimunda, que era pobre e sozinha, ia encontrando no mundo.

É mais fácil viver quando se acredita no mundo e se está maravilhado 
com ele?
Eu não acredito absolutamente nada num mundo que está a ser governado por gente em que não acredito nem quero acreditar. O que não me maravilha são todas as insolências e as perversões que os poderes económicos praticam no mundo e as guerras que criam. Maravilha-me que haja refúgios e momentos de harmonia e de poesia. Fomos feitos para sermos seres passivos e sofredores, estamos preparados para ser a massa no que respeita aos conceitos de política e ao domínio do social e fiéis no que concerne à religião. Maravilha-me que de repente haja gente que é ela própria e que é feliz.

A religião fez parte da sua vida...
Nunca vi Deus. O que me atraía na religião era uma forma bonita de relação com os seres humanos, que acontecia através da caridade cristã, entendendo a caridade como amor. Mas isso foi antes de descobrir que acima da caridade estava a solidariedade. Esse momento teve a ver com a minha chegada à faculdade, com a possibilidade de partilhar, com as melhores pessoas, as ideias de liberdade, contra a tirania e a ditadura, ideias que vieram também com a leitura. Hoje descubro que a caridade, no seu sentido etimológico de amor e de partilha, também me interessa muito.

Quando é que percebeu que Espanha vivia numa ditadura?
Desde sempre. Em criança sabia que vivíamos num país criado por obra e graça de Deus. Sabia que Deus tinha criado Franco para fazer o país preferido dele.

Aprendeu-o na escola?
Não foi preciso, já o tinha aprendido em casa: Deus criou Franco e Espanha! Claro que, ao crescermos, nos apercebemos de que o mundo é maior do que Espanha. Damo-nos conta disso por uma notícia num jornal, um livro que lemos... Com 14 ou 15 anos descobres que há países onde se vota e aos 18 já sabes que em Paris está a acontecer muita coisa. Tudo começa a encaixar-se, a fazer sentido. E, com a mesma naturalidade que se aceitou fazer a primeira comunhão, aceita-se deixar de ir à missa. Lembro-me perfeitamente da última vez que me fui confessar: o padre perguntou-me se já tinha acabado, e eu respondi-lhe que sim, mas que havia coisas que não lhe ia dizer. Não ia confessar o amor nem que estava com o homem que escolhi, o meu primeiro marido.

No entanto, casou com ele pela Igreja e batizou o seu filho...
Fi-lo para não dar um desgosto à minha mãe, que vivia uma guerra civil e não tinha de suportar as iras do meu pai. Porém, a palavra ‘família’ provoca-me fastio, repugna-me. Faz parte do ADN que te dão a conhecer: Estado, Família e Religião; Deus, Pátria e Família, se quiserem. Vi tudo isso em casa. Fi-lo para não aumentar o conflito entre a minha mãe e o meu pai. Para mim, era igual, queria lá saber da religião. Casei-me pela Igreja porque a religião não me dizia nada. Era como pôr um vestido comprido para ir a uma festa social ou usar uma joia, tanto me fazia. Deus não significa nada para mim. Se há um Deus, ele vai perceber que tudo o que inventaram à sua volta é uma merda. Quero que haja um Deus para lhe pedir contas sobre o que fez aos seres humanos, às mulheres.

De onde vêm as suas convicções?
De um mundo cheio de pobres diabos. Vivo com seres humanos que tentam levantar a cabeça e não conseguem, porque lha cortam.

Disse que em sua casa havia 
um conflito e que rejeita a ideia 
de família. Porquê?
Rejeito-a porque tenho os olhos abertos para o que acontece no mundo, as hipocrisias e mentiras que se fazem e dizem por aí. Descobri isso ao ver “O Último Tango em Paris”, de Bernardo Bertolucci, em especial o momento em que ele se vira para ela e lhe diz: “Mete o dedo no cu. A que cheira?” Era uma boa família! Quer isto dizer que as primeiras mentiras que o ser humano diz — porque se chegou tarde a casa, porque se precisa de qualquer coisa, porque se tem medo — são à família, em família. Na minha casa, o conflito traduzia uma sociedade patriarcal a viver numa ditadura política e religiosa. Havia o nacional-catolicismo. Eu não sabia quem era mais importante, se Deus, se Franco. Tinha dias. Qualquer coisa que saísse do âmbito do nacional-catolicismo era um problema, e se fosses respondona como eu eram problemas acrescidos. A última vez que o meu pai me deu uma bofetada já eu tinha 23 anos.

O que fez?
Fui-me embora, estava de férias e fui ter com o meu namorado. Até a minha mãe me apoiou. Bateu-me porque eu estava a defender uma irmã adolescente que tinha chegado a casa 10 minutos atrasada.

Percebe-se que a relação com o seu pai era complicada...
Não era complicada, porque nem sequer tive uma relação com o meu pai. Não se têm relações com os pais. Os pais existem para mandar em nós.


Trabalhar. É o que Pilar faz todos os dias, desde que assumiu a presidência da Fundação Saramago, a completar uma década. Na foto lê a passagem de “Jangada de Pedra” em que Saramago descreve o primeiro encontro entre os dois
JOÃO LIMA

O que faziam os seus pais?
O meu pai era um tipo singular. Foi frade dominicano e depois aviador e agente de seguros. A minha mãe, submissa, tinha de ‘se defender’ de 15 filhos e do marido. Era uma mulher extraordinária.

E como é ser a mais velha 
de 15 irmãos?
Não sei, acho que gostava de ter sido a mais nova de todos. A verdade é que partilhei a responsabilidade com a minha mãe na hora de tomar decisões, assim como as tarefas diárias, que iam de pôr toda a gente na escola a dar de comer e vestir... Foi um excesso de responsabilidade, do qual beneficio hoje em dia.

Tentou ser diferente como mãe?
Fui uma má mãe, porque sempre pensei que seria a vida a educar o meu filho e não eu. Nunca pensei no que queria ser como mãe, tinha outras coisas que fazer.

Que relação mantém com o seu filho, hoje já com 40 anos?
Trato-o como uma pessoa que é independente e que está a trabalhar. E está a trabalhar sobre Saramago.

O que é que faz?
É uma história linda. O meu filho estava a viver na Argentina, pois detestava a ideia de estar num país onde tivesse de se relacionar com o José ou comigo. Mas quando o José adoeceu a sério, perguntou-me se eu queria que me viesse ajudar. E veio da Argentina para Lanzarote com um amigo e fez com que a minha casa nunca fosse uma enfermaria. Ficaram até ao dia em que o José morreu. Neste momento está em Lanzarote a fazer visitas guiadas à casa todos os dias.

Houve um antes e um depois 
de Saramago?
Claro. Eu trabalhava como jornalista, tinha um programa e vivia num país. O facto de estar com José Saramago fez-me deixar um posto de trabalho estupendo e vir para um país onde não faço parte da memória de ninguém, nem então nem agora. Antes estava com o José, agora estou com a memória do José.

E quem é a Pilar depois do José?
Uma mulher muito mais velha, com uma experiência maravilhosa que muitas das mulheres que conheço, e mesmo algumas que não conheço, gostariam de ter tido. Sou uma privilegiada, vivi uma história absolutamente singular que partilho de manhã à noite todos os dias na fundação, na casa de Lanzarote, na Azinhaga. Vá para onde for, partilho essa história, porque é demasiado grande para a guardar só para mim: é a história de um dos cidadãos mais completos do século XX, uma pessoa que nasceu para ser massacrada e não o foi, que se levantou do chão, que se fez a si próprio, que não precisou de ser ‘filho de’, que nem sequer tinha o apelido do pai. Uma figura que os burgueses de mente curta ainda não conseguem compreender. Aqueles que não entendem a literatura de Saramago ou o próprio Saramago têm de ir a um especialista, pois são egoístas ou doentios ou têm uma conceção da vida demasiado elitista. Mesmo os que não concordam com Saramago não podem negar que ele os arrasa. Saramago é a-rra-sa-dor, um tipo que em menos de 30 anos construiu uma obra como esta. Alguém que escreveu “O Evangelho segundo Jesus Cristo”.

Fala de uma elite que ainda não compreendeu Saramago. Alguma vez se zangou com Portugal?
Não. Para mim, não existem países. Tenho semelhantes. O que é que herdei do franquismo? A repulsão pela bandeira.

Então reformulemos: alguma vez se zangou com os semelhantes 
de Saramago?
Zanguei-me com os espíritos pequenos, ou melhor, com o comportamento de alguns indivíduos, sobre os quais só me ocorre dizer “coitados”. Esses que escrevem uma coluna em Portugal e teorizam e dogmatizam, mas não chegam nem à raia de Badajoz. Passando Badajoz, não são ninguém. Não suporto quando começam com a conversa de que Saramago saneou não sei quantas pessoas. Não, desculpem, o diretor literário não faz saneamentos, foi a administração, há provas. E escrevem isso em jornais que mal pagam aos seus colaboradores, que mal pagam aos seus redatores e que põem na rua jornalistas. Mas esses não são saneados. Têm ódio à revolução, no fundo querem ser aristocratas. Mas não são!

Como é que um encontro pode 
mudar uma vida?
Não tive consciência de que a terra tremeu. José Saramago sim, e descreve-o na “Jangada de Pedra”. Eu não. Senti tudo isso com uma enorme naturalidade. Saí do encontro com ele e disse: “Vai acontecer qualquer coisa!” Cheguei a Espanha, e a primeira coisa que fiz foi telefonar à pessoa com quem namorava na altura para lhe dizer que não íamos continuar. Passou junho, julho, agosto. Em setembro recebi uma carta: “Se as circunstâncias da vida mo permitirem, gostaria de te ir ver.” Já me tinha dado recomendações de leitura, a nossa correspondência nesse sentido era quase ditatorial. Eu tinha de ler “Uma Família Inglesa”, de Júlio Dinis, o “Amor de Perdição”, de Camilo Castelo Branco, a Agustina Bessa-Luís, a Lídia Jorge...

Soube logo que ia dedicar-se a este homem?
Dedico-me à vida, aos meus irmãos, e se na vida está o meu marido dedico-me a ele; se está a fundação, dedico-me a ela. Ou seja, sou uma mulher dedicada. Mas, sim, dediquei-me a ele de corpo e alma, sabendo que era uma pessoa inesgotável. Começava uma conversa que nunca dava por terminada, porque tinha sempre pontos de vista diferentes, tal como a sua literatura. Era uma pessoa com uma formação infinitamente superior à minha. Foi uma maldição.

Maldição?
Sim, depois de o ter conhecido já não consegui gostar de mais ninguém.

Nunca pensou em refazer a sua vida?
Com quem? Deem-me outro. Só teria reconstruído a minha vida se tivesse aparecido alguém assim por quem me apaixonasse. Acho que os homens se impressionam com isso, que não querem ser comparados.

Como era ser 28 anos mais nova e 
saber que sobreviveria a esse amor?
Tínhamos isso muito claro e preparámos tudo. Uma vez, Madalena Perdigão disse-me, pouco tempo depois de a conhecer, que tinha uma relação com um homem mais velho e que isso a fazia sofrer muito, pois a sociedade não a entendia. A sociedade só percebe o lugar-comum. Acontece que ela morreu dois anos depois e o marido viveu quase até aos 100. O José e eu sabíamos que era uma lei da vida. E numa conversa ao almoço em Lanzarote, com dois amigos espanhóis, surgiu a ideia de fazer uma fundação para tomar conta do seu legado humanista — não de uma herança ou de uma biblioteca. Saramago primeiro não achou grande ideia, mas a conversa continuou e, no final, disse-me que, se eu lhe sobrevivesse, queria que me ocupasse da fundação.


Legado. Foi num almoço em Lanzarote que surgiu a ideia de criar uma fundação. Saramago acabou por anuir e disse a Pilar que, se ela lhe sobrevivesse, queria que avançasse com o projeto
JOÃO LIMA

Uma vez disse que ele queria que 
“o continuasse”. Como se continua José Saramago?
É terrível. Pelo menos, Saramago tinha uma companhia, eu não.

Sente-se sozinha?
Não. O problema é quando viajo. Nos últimos dois anos tem sido mais difícil viajar sozinha, com uma mala, de aeroporto em aeroporto, para compromissos relacionados com Saramago. No penúltimo país que visitei tive uma quebra, pensei que ia morrer, tive de tomar um tranquilizante. Sou a escrava, a protagonista e a que apanha os copos. Ou seja, há de chegar o dia em que não conseguirei fazer mais. O José não tinha de fazer a mala, não ia sozinho. Falava e era Deus. Eu não sou Deus e tenho de falar como Deus. Sou recebida por chefes de Estado, estou presente em conferências, em todo o tipo de situações. A vida é complicada.

O que significa para si a Fundação Saramago?
É a residência do pensamento do José. As editoras só publicam livros para ganhar dinheiro. É um negócio. Mas quem trabalha o pensamento de José Saramago? Já não há editoras que publiquem ensaios. Então somos nós que o fazemos. Exemplo disto é a “Proposta de Declaração Universal dos Deveres Humanos” — que tem a ver com a nossa obrigação de retribuir à sociedade e vai ser apresentada à ONU — ou a difusão do teatro. Houve teatro de Saramago em Portugal, em Espanha, em Itália, óperas... Alguém se deu conta? E quem leva isto para a frente? Os herdeiros? Eles têm a sua própria vida e não lhes pode cair o legado em cima. É a fundação que se ocupa de tudo.

Com uma vida como essa, porque aceitou ser administradora da TVI?
Uns amigos ligaram-me e pediram-me para aceitar o cargo. Eu estava numa apresentação de Vargas Llosa e não podia atender o telefone e acabei por responder por mensagem. A proposta em si era tão surpreendente que não sabia o que dizer ou fazer. No entanto, pensei: se não for eu, vai ser outro. E porque não estar lá uma pessoa tão vincadamente de esquerda? Eu sou uma pessoa de esquerda e muito antissistema.

E o que faz como administradora não executiva?
Só participei em reuniões, espero agora poder participar em algo mais. Mas o que faço é basicamente aprovar as contas e um pouco da linha editorial. Não posso chegar ao Conselho de Administração de uma empresa a opinar, cheguei a ouvir. Agora espero mais.

Sentia saudades de estar num meio de comunicação social?
Há 20 anos teria respondido que sim. Queria ser diretora do “El País”. Estava muito irritada, e ainda estou, pelo facto de quase não haver mulheres nesses cargos. O meu jornal ideal seria aquele que me deixasse ser mulher e dar a minha opinião, sem prestar tanta atenção à lógica do mercado, mas sim à dos leitores.

Não é ingénuo pensar que isso 
é possível?
O que nos ensinaram já não faz parte daquilo a que se chama ‘fazer jornais’. Já não contamos o lado obscuro das coisas. Pelo contrário, somos os que beneficiamos os interesses do poder. Estamos ali para esconder as falhas do sistema capitalista e não para trabalhar para uma sociedade que se quer socialista na sua essência.

Acredita no jornalismo independente?
Acredito muito nas pessoas, mas cada vez que um jornal tratou de levantar a cabeça e fazer frente ao poder económico foi abafado. Um jornal progressista, independente, tem de fazer imediatamente concessões. E tudo acaba por não passar de um jogo de concessões.

Voltando atrás, quem é hoje a sua família?
Em Portugal não faço parte da memória de ninguém. Estou muito só, mesmo que esteja rodeada de gente fantástica aqui na fundação. A minha família é a memória. Irrita-me dizê-lo, mas vivo da e com a memória — embora seja uma memória que projeta, uma memória para o futuro. Tenho amigos adoráveis, um grupo de amigas em Sevilha... E tenho a tribo — é assim que chamamos a nós mesmos em família. Eu saberia dizer o que estão agora a comer os 15 membros da tribo, ou seja, os meus irmãos. Sei que nunca mais me vou encontrar com o José, que ele nunca me vai poder dizer se estou a fazer bem ou mal.

Porque é que insiste em dizer 
que não faz parte da memória 
de ninguém?
Porque não faço. Cheguei com 40 anos e não tenho a chave, o código, para as pessoas daqui.

Não se está a subestimar?
Não, sou realista. E a realidade é a minha idade. As pessoas andam para trás, recuperam momentos do passado, e eu não estou lá. Cheguei tarde, já bem crescida, como o apêndice de um homem. E durante os 25 anos que vivi com ele não tinha existência real, era uma sombra. E agora tenho uma existência real relativa.

Relativa como?
Não sei se as pessoas se dirigem a mim como a um ser humano que querem agarrar ou beijar ou como a uma mulher que tomou decisões que Saramago nunca tomaria. Em Granada e em Sevilha existo como pessoa e companheira de trabalho. Em Portugal não existo sem Saramago.

Gostava de mudar isso?
Teria de ter vontade de o fazer, e se calhar já não tenho. Mas é curiosa a quantidade de viúvos que Saramago tem. Um dia, aqui no meu gabinete, contaram-me como foi o casamento de Saramago. Foi comigo que ele se casou! Não se lembram? Não me veem?

Mas há muita gente que a conhece...
Não sei se me estão a ver a mim ou à sombra de Saramago, mas houve um tempo em que tive a ilusão que me estavam a ver a mim. Agora desconfio sempre. Já não sei quem me olha, porque me olha, que olhar é esse.

No fundo, fala da sua individualidade. Como a manteve sendo tradutora de Saramago e o seu braço-direito?
Mantive-a sempre, mas ninguém o sabia. Isso fazia parte da nossa intimidade, onde cada um era livre. Não estávamos comprometidos nem com partidos políticos, nem com Estados, nem com nacionalizações, nem com o casal que formávamos... Éramos um projeto, trabalhávamos juntos. Quando decidíamos o que íamos fazer, não o fazíamos em função de Saramago, mas do projeto e da agenda, do livro que se estava a escrever ou a traduzir. Trabalhávamos para um projeto no qual participavam outras pessoas, a que chamávamos ‘saramaguitos’.

Como foi traduzir Saramago?
Foi uma ousadia própria da juventude. Eu lia os originais das traduções que mandavam a Saramago e muitas vezes não estava de acordo. Mas ele tinha um tradutor muito bom, que era professor catedrático da Universidade de Barcelona, e quem era eu para opinar... O tradutor veio à apresentação espanhola de “Ensaio sobre a Cegueira”, de óculos escuros e de bengala: “Venho à apresentação deste livro consciente de que será o último que traduzirei, porque estou a ficar cego.” Não ficou cego, exagerou um pouco. Mas eu já lhe tinha dito que a partir dali traduziria eu! Fi-lo porque era ousada, senão nunca teria traduzido Saramago.

Que relação tem com a família do seu marido?
A neta trabalha aqui na fundação e a filha, que vive no Funchal, também faz parte da organização. Mas como está longe relacionamo-nos menos. É uma relação sem problemas, cordial.

Já disse que não gosta de bandeiras. Porque é que escolheu ter a nacionalidade portuguesa?
Para pagar impostos em Portugal. Não vou pagar por José Saramago fora de Portugal. E a verdade é que o Governo se portou muito bem, pois fiz um pedido normal e responderam-me logo. Ao cabo de dois meses já tinha a nacionalidade e já podia apresentar a declaração de impostos aqui. Pago muito mais aqui do que pagaria em Lanzarote, mas agora tenho legitimidade para criticar o Governo e o Estado ao qual pago os meus impostos. Fico colérica de cada vez que gastam mal o dinheiro.

Como é que essa formalização da relação com Portugal se conjuga com o ideal de uma Ibéria sem fronteiras?
Sabe, no outro dia deram-me o Prémio Luso-Espanhol de Cultura, por eu servir de ponte de comunicação entre Espanha, Portugal e América Latina, segundo o júri. Fiquei muito feliz. Como na “Jangada de Pedra”, creio que é para lá que caminhamos, para a América Latina. E servir de agente de comunicação entre culturas parece-me muito importante. Sugeri que mo entregassem em finais de maio, na Feira do Livro de Madrid, cujo país-tema será Portugal. Não sou mulher de salões nobres.

http://expresso.sapo.pt/cultura/2017-04-30-Pilar-del-Rio-Jose-foi-uma-maldicao