quinta-feira, 29 de maio de 2014

Fernando Pessoa - De Quem é o Olhar


De quem é o olhar 
Que espreita por meus olhos? 
Quando penso que vejo, 
Quem continua vendo 
Enquanto estou pensando? 
Por que caminhos seguem, 
Não os meus tristes passos, 
Mas a realidade 
De eu ter passos comigo ? 

Às vezes, na penumbra 
Do meu quarto, quando eu 
Por mim próprio mesmo 
Em alma mal existo, 

Toma um outro sentido 
Em mim o Universo — 
É uma nódoa esbatida 
De eu ser consciente sobre 
Minha idéia das coisas. 

Se acenderem as velas 
E não houver apenas 
A vaga luz de fora — 
Não sei que candeeiro 
Aceso onde na rua — 
Terei foscos desejos 
De nunca haver mais nada 
No Universo e na Vida 
De que o obscuro momento 
Que é minha vida agora! 

Um momento afluente 
Dum rio sempre a ir 
Esquecer-se de ser, 
Espaço misterioso 
Entre espaços desertos 
Cujo sentido é nulo 
E sem ser nada a nada. 
E assim a hora passa 
Metafisicamente. 

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

domingo, 25 de maio de 2014

poesia de alberto caeiro

* Alberto Caeiro


Verdade, mentira, certeza, incerteza...
Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?
O cego pára na estrada,
Desliguei as mãos de cima do joelho
Verdade mentira, certeza, incerteza são as mesmas?
Qualquer cousa mudou numa parte da realidade — os meus joelhos
e as minhas mãos.
Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?
O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto.


XLII

Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a acção humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o Sol é sempre pontual todos os dias.



XVI

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhazinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças - tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

Ou então faziam de mim qualquer coisa diferente
E eu não sabia nada do que de mim faziam...
Mas eu não sou um carro, sou diferente
Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam.


 [XIVa]

Rimo quando calha
E as mais das vezes não rimo...
Copio a Natureza e não a interrogo.
(De que me serviria interrogá-la?)
Nem tudo é terreno plano,
Por isso muitas vezes não rimo...



XXXI

Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa coisa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma.



XXI

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
E se a terra fosse uma coisa para trincar
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...



IX

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.



XLIX 

Meto-me para dentro, e fecho a janela.
Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

terça-feira, 20 de maio de 2014

António Sousa Homem

QUARTA-FEIRA, 25 DE JUNHO DE 2008
António Sousa Homem
Psilocybe cubensis em desenvolvimento. Porque nem tudo tem de fazer sentido.

Há na literatura minhota, de Camilo Castelo Branco a Agustina, um peso granítico que tanto pode maravilhar como causar um certo embaraçar de olhos perante uma língua que, sendo a portuguesa, e sem grandes dependências do galego, parece uma língua à parte. Os próprios cenários são diferentes da literatura do resto país. Nesta literatura abundam os casarões, os pergaminhos, os retratos e o pó que se acumula nos móveis. Mas a fala das personagens, por mais pergaminhos que a sustente, é, quase sempre, a fala do homem vulgar minhoto que trabalha ou trabalhava nos campos antes de a indústria se ter instalado por tudo quanto é sítio, erguendo chaminés de tijolo que hoje marcam o horizonte, rente a pavilhões abandonados, com vidros partidos e cimento à vista, da vista escondendo-se sob o musgo. Há uma certa forma de falar minhota que aqueles que aqui não nasceram jamais conseguirão imitar. Não falo de sotaques, mas da própria sintaxe. Granítica e barroca como um alçado de André Soares.

É aqui que António Sousa Homem, brilhante retrato de um minhoto muito pouco reaccionário - ou reaccionário como só alguns minhotos conseguem ser, mostra que não é, de facto, minhoto. Se psicologicamente e sociologicamente falando, esta personagem é deveras alguém que vive realmente entre os pinhais de Moledo, já não o é na qualidade de falante minhoto. A paisagem humana está ali, os brasões também. Mas a fala é clara, marmórea e leve. Nem uma ponta de cinzento do granito minhoto. António Sousa Homem não é minhoto. Muito menos, botânico. Fala, a dado momento, de urze, quando as plantas que aqui reclamam a atenção são menos avaras na largueza das folhas e mais efémeras no resplendor das flores. Mas pode ser que me engane, que Moledo do Minho não é local que tenha recebido o meu peso nem o meu olhar picuinhas entre as ervas.

António Sousa Homem é, acima de tudo, um homem. Nem reaccionário (que os reaccionários nunca assim se autoproclamam), nem minhoto, nem botânico. Não é, de modo algum, um heterónimo. Nem sequer advogado, como diz o site da ASA. António Sousa Homem é, porque ao aceitar classificar-se (é aí que reside a sua condição de botânico), passa a ser - mesmo que nunca tenha sido. É um homem porque é, em si mesmo, um livro. E um livro é um homem, assim como cada homem é um livro (ainda que, ao contrário do que se possa depreender da formulação, não exista relação de identidade ou equivalência entre os dois conceitos). António Sousa Homem não é um heterónimo porque não é uma pessoa com vida independente. Para todos os efeitos, é o fruto do autor que o deu à luz já em idade avançada (idade avançada de António Sousa Homem, não do autor, que não estamos a falar de graças parideiras do Antigo Testamento). António Sousa Homem é apenas aquilo que todos os homens deviam ser, na sua tolerância, humor e sabedoria, em detrimento de opções políticas, que não chega a ter, ou raízes nacionais ou regionais. É uma figura Universal, da mesma forma que Dom Quixote que, apesar de ter nascido e vivido num lugar da Mancha, de cujo nome não me convém agora lembrar, e apesar de viver e respirar o lugar onde está, como assim fazia o Cavaleiro da Triste Figura, é exemplo moral (ou não: "nem tudo tem de ter sen­tido na nossa vida", como diria o velho doutor Homem, pai deste) do que seja ou deveria ser a humanidade. É a arte de formar a ideia do Homem a partir das contigências - não através de sentenças ideológicas, mas de cada coisa que marca um homem. Tenha ou não tenha sentido. Isso é entender, como jamais poderá ser possível entender melhor, o que é isso da Condição Humana

publicado por Manuel Anastácio às 20:58

http://literaturas.blogs.sapo.pt/78198.html

~~~~~~~~~~

O esquizofrénico José Viegas (II): Elucubrações acerca do uso do pseudónimo António Sousa Homem, da acumulação de funções de um governante e da promiscuidade entre a política e a Comunicação Social


Francisco José Viegas, o secretário de estado da Cultura, mantém há alguns anos uma coluna de crónicas no «Correio da Manhã», onde escreve sob o psuedónimo António Sousa Homem. Continua a fazê-lo ainda hoje. Não
sei se um governante pode acumular com outras funções remuneradas no sector privado nem se esta sua actuação envolve de alguma forma promiscuidade entre a política e a Comunicação Social. Mas moralmente não é ético.

Seja como for, o objectivo deste post é outro: averiguar da sanidade mental daquele a quem está entregue a pasta da Cultura no actual Governo. Recordo que a esquizofrenia é um transtorno psíquico severo que se caracteriza por alterações do pensamento, alucinações, delírios e alterações no contacto com a realidade.~

A questão não é escrever sob pseudónimo – muitos o fazem. A questão é ter sido ele próprio, como Francisco José Viegas, a pôr António Sousa Homem nas «bocas do mundo». É ter inventado uma biografia completa a que não faltou a respectiva fotografia. É fazer a apresentação pública, na Bertrand, de uma obra de António de Sousa Homem e dar-se ao trabalho de dar a notícia de que o próprio estava doente das coronárias e do fluxo renal e que por isso não tinha podido comparecer. E dar-se ao trabalho de forjar uma suposta carta de António de Sousa Homem a lamentar não poder estar presente.

Este homem não é lúcido. Ou então julga-se O Meu Pipi. Não vou falar de Pessoa, seria um insulto à sua memória.


http://aventar.eu/2012/01/20/o-esquizofrenico-jose-viegas-ii-elucubracoes-acerca-do-uso-do-pseudonimo-antonio-sousa-homem-da-acumulacao-de-funcoes-de-um-governante-e-da-promiscuidade-entre-a-politica-e-a-comunicacao-social/

as crónicas de antónio sousa homem 04

* António Sousa Homem


Os velhos, afinal

O desembarque do Mindelo, em Julho de 1832, não entra nas conversas, habituais ou ocasionais, à mesa dos almoços de domingo. A ideia de que as “tropas liberais” tinham atravessado triunfalmente os areais arborizados do actual Mindelo (na antiga Praia dos Ladrões) foi sempre alvo de ressalvas por parte do Doutor Homem, meu pai, que nunca esqueceu o nome da Areosa de Pampelido, onde na verdade teve lugar o desembarque (chama-se agora Praia da Memória) – se tivesse vivido na época, e passado o armistício das guerras civis, ele teria sido um cartista, mas hoje já não se conhece a diferença entre o Duque de Saldanha e o da Terceira. Um dos meus sobrinhos considerou que não tinha utilidade conhecer a diferença entre cartistas e setembristas porque isso eram coisas de outros tempos. Na verdade, a história não se repete sempre da mesma forma e ninguém na família, em seu estado normal e aceitável de juízo, acha decente a ideia de queixar-se da vida. Basta haver retratos dela e que os velhos se interessem pelo assunto, continuando a saber distinguir cartistas e setembristas.

Ser velho é uma ocupação sincera; nada nos pode enganar, em nada podemos enganar os outros – vê-se pelo corpo. O Doutor Homem, meu pai, considerou que a travessia dos seus anos derradeiros devia fazer-se com a mesma velocidade a que viveu: moderada, mas a vários tempos. Ele acreditava que esse era o segredo de uma longevidade que se tornou tradicional na família e nunca concedeu margem de manobra à idade, excepto quando, de tempos a tempos, regressava dos funerais. Um funeral, nesses tempos, tinha uma dimensão trágica que não se lhes conhece hoje, porque a morte está vulgarizada como um acontecimento que nos chega pela televisão e no cinema; habituámo-nos.

A verdade é que nos habituamos a quase tudo. Questão de sobrevivência, como se sabe: com o tempo, e as suas ameaças, resta-nos aceitar a ordem das coisas, e a ordem das coisas manda que aceitemos a velhice como uma condição. Há uma ideia muito comum hoje em dia, certamente alimentada por muita má-fé e uma certa nostalgia da imortalidade, segundo a qual se deve perseguir o ideal da “eterna juventude”. Não é uma ideia generosa. O tempo, que consome tudo, é mais doce nos verdes anos, enquanto não há reumatismo nem males das coronárias, mas o princípio de que se deve promover a juventude é próprio de quem não reconhece a força do destino ou de quem se quer substituir a ele. As actrizes que se recusam a envelhecer recusam-se também a serem fotografadas para não mostrarem como o tempo é um passageiro infalível da nossa vida. É uma forma, como qualquer outra, de encarar as coisas.

As minhas irmãs e um dos meus cunhados descobriram há anos a virtude do exercício físico e da meditação oriental – e sentem-se felizes. São pacientes e fazem genuflexões, transpiram e podem tocar o pé esquerdo com os dedos da mão direita. Noto pelo seu ar que travam um combate entre iguais e isso comove-me. Esta gente devia ser louvada porque faz um esforço (que eu considero nos limites do sobrenatural, preguiçoso como sou) para continuar a viver com dignidade, se bem que o mundo, no entanto, não lhes responda à altura, enumerando até à exaustão as virtudes da juventude. Torna-se cansativo.

Se pensarmos bem, os velhos não tomam drogas e cometem muito menos crimes, ocupam menos espaço e não fazem tanto barulho, conhecem haver uma diferença entre setembristas e cartistas (o século XIX não foi há tanto tempo) e a maior parte deles não é perigosa para o resto da humanidade. Mas, como mo recordam com alguma vileza, é evidente que não contribuem para a enriquecer a Fazenda pública nem para estabilizar as contas da previdência social e conhecem melhor – distraem-se mais facilmente – as coisas do passado do que as do presente.

Muitas vezes penso que esse mundo, ao qual pertencem os velhos como eu, o mundo de há trinta, quarenta ou cinquenta anos, é uma vaga inutilidade rodeada de fantasmas que, mesmo sendo fantasmas, vão morrendo aos poucos. Mas reconhecer isso seria perder a única coisa que nos resta, a todos nós: o contentamento de saber que as coisas não ficam por aqui.

in Revista Notícias Sábado – 9 Setembro 2006
POSTED BY ANTÓNIO SOUSA HOMEM AT 9.9.06


~~~~~~~~~~~

O nosso miguelismo

Escrevo à mão, tenho tinteiro e a caneta é uma ‘Parker’ que já cruzou os destinos de três gerações. Mesmo assim, a família surpreende-se quando lê estas crónicas e descobre que, por detrás do funâmbulo que conhecem, há um escândalo em perspectiva. Desta vez, uma das minhas irmãs protestou a propósito de uma crónica em que menciono as opções políticas da família: entre o “ultramontanismo” e o “cartismo”.

Verdadeiramente, nunca houve ultramontanos em Ponte de Lima tirando fases da existência da Tia Benedita, quando lhe parecia que os sobrinhos e netos andavam tentados pelo demónio. Como o demónio era uma categoria moral e não uma personagem substantiva, o seu ultramontanismo era tido na conta de um pequeno delírio das nossas províncias – as que desconfiavam da República como antes tinham execrado Passos Manuel, José Estêvão e os Cabrais.

A única vantagem do ultramontanismo era, rigorosamente, taxinómina: tudo o que lhe era estranho cabia no campo do inimigo. Tamanha simplicidade era comovente e simplificadora, ainda que injusta. Se não soubéssemos da generosidade fria mas autêntica da Tia Benedita, julgaríamos que a senhora estaria predestinada a vir para a rua dar vivas à Vilafrancada – mas “o inimigo” era-lhe profundamente necessário como um tónus para os males de espírito, evitando o ressentimento. Em boa verdade, era uma das condições admitidas para a sua íntima felicidade.

A família foi pouco cartista, mesmo assim. Por conveniência, mas sem ambição, tinha – digamos – os seus espiões. À medida que os ‘revolucionários’ se transformavam em ‘reformistas’, e que os ‘reformistas’ se mudavam ‘regeneradores’ e, depois, em ‘conservadores’, não havendo já ‘radicais’, os Homem repousaram e puderam voltar a olhar, com discreta melancolia, para o retrato do Senhor D. Miguel, estacionado no casarão de Ponte de Lima.

O mundo, ordinariamente (como concluiu o meu bisavô, o último dos nossos miguelistas de raiz), gira sempre para o mesmo lado. Munidos desta certeza, nem o meu avô nem o velho Doutor Homem, meu pai, se preocuparam mais com o assunto, decretando que as velhas histórias políticas da família podiam ser, definitivamente, arrumadas – e o nosso nome reabilitado para os tempos modernos.

Era mentira. Também era tranquilizador, mas era mentira. Quando se chegava a vias de facto, ou seja, àquele momento em que se corria o risco de entrar no campo da apostasia, a lembrança do vintismo, do “Eusébio Macário”, dos barões de fresca data e dos pobres versos de Leitão da Silva (nome por que Garrett era conhecido intramuros), foi sempre morigeradora e teve o condão de nos lembrar o nosso pecado político original. Ou mortal, no fm de contas, se tivermos em conta que hoje toda a gente é democrática. Nós, lá no fundo, continuávamos a ser reaccionários.

Felizmente, o velho Doutor Homem, meu pai, lembrou-nos sempre que a ironia era a mais mortífera das armas desses tempos e dos que haviam de vir. Era essa a razão por que podíamos ouvi-lo rir sonoramente quando calhou, num certo Verão, ler Júlio Dinis. Ele ria de Tomé da Póvoa, o honrado agricultor dos “Fidalgos da Casa Mourisca” – e do frade Januário, o personagem estomacal que representava o reaccionarismo ultramontano. Ele achava graça à literatura panfletária e conhecia de cor trechos de José Acúrcio das Neves, que comparou os revolucionários de 1820 a personagens das aventuras de Gulliver.

Esses tempos foram felizes para os Homem. Tonificados pela derrota, um bálsamo para a sua tentação permanente para a petulância, dedicaram-se à família, aos negócios, à vida académica e ao epicurismo que alegrou a vida dos celibatários da tribo, que foram um nadinha picarescos. Camilo havia de achar-lhes alguma graça, a esses Homem de outros tempos, sitiados pela modernidade, cómicos, desadaptados, com uma elegância digna das Cortes de Lamego, se elas tivessem existido.

O nosso miguelismo não é actual. É desses tempos. Só uma grande falta de sentido de oportunidade nos levou a manter o retrato do Senhor D. Miguel até hoje, sob o olhar divertido, respeitoso, irreverente, comovido e derrotado de várias gerações de Homem, inclusive dos que, hoje, votam no Bloco de Esquerda. Na próxima semana, terei de ouvir os protestos da minha sobrinha, mal o jornal chegue a Braga.

in Revista Notícias Sábado – 23 Junho 2007
POSTED BY ANTÓNIO SOUSA HOMEM AT 23.6.07

domingo, 18 de maio de 2014

as crónicas de antónio sousa homem 03

* António de Sousa Homem


~~~~~~~~~~~

O livro da Natureza
.

Para que servem os livros, amontoados e desequilibrados? Entre mim e eles, nestas tardes de calor, fechadas as portadas de madeira da casa de Moledo, não há diálogo, não há – como se diz agora – interacção. Eu limito-me a estar deste lado, diante deles, olhando-os como uma estampa ou como um mapa de um velho atlas desactualizado.

Tenho, pelos velhos atlas, é preciso dizer, uma ternura especial, embora me esforce por actualizar as edições dos três que existem na biblioteca; as mudanças de fronteiras, alterações de nomes, ou simples trocas de soberania são sempre importantes. Há cerca de trinta, ao todo, entre actualizações e reimpressões – o mundo nunca foi, portanto, um problema para os Homem. Às vezes abro um ou outro e recordo como foi o traçado dos países, como evoluíram as suas designações, como se mudaram as cores dos estados federados e como alguns deles se tornaram independentes – e como continua exacta, imutável, perfeita, a localização das pequenas ilhas que formam o arquipélago de Tristão da Cunha, esse mistério da geografia do Atlântico Sul e dos nossos descobrimentos. O primeiro vice-rei da Índia portuguesa, que antecedeu o primo Afonso de Albuquerque no seu cargo, ficou pois perpetuado nas várias edições de atlas de todas as línguas: Tristão da Cunha continuará pelos séculos adiante como essa mancha no meio do mar profundo lembrando que há quinhentos anos, há exactamente quinhentos anos, em 1506, aquelas rochas foram visitadas por homens cujos netos, bisnetos e tetranetos depois se desinteressaram pelo facto. Na verdade, a data não foi assinalada e compreendo a perturbação que isso pudesse causar nos arquivos do velho império, habituado a glórias avulsas, repentinas e destinadas a inventários de banalidades.

Sinto diante de Tristão da Cunha a mesma angústia que me toma quando olho para os livros – há sempre um deles, abandonado há anos, que me pede atenção. Aproximo-me deles para recordar uma página, a data em que foi comprado numa livraria, um autor ignorado ou relegado para a penumbra. E pergunto-me: para que servem os livros, amontoados e desorganizados, inclinados uns sobre os outros, ou arrumados numa estante? Ora, eu sempre compreendi a vaidade do bibliotecário, mesmo a sua avareza – ela é um dos grandes segredos, não do mundo que teme a passagem do tempo, mas daquele que não tem quase nenhuma comunicação com o tempo e se limita a arquivar, a incluir uma nova ficha no catálogo de raridades acumuladas, a apreciar a forma como o tempo passa sobre os livros carregando-os de pó, de humidade e de comentários. A vaidade dos bibliotecários é uma das mais justificadas, e eu compreendo-a bem de cada vez que, sentado no sofá, assinalo distorções e enganos na organização das prateleiras, acasos na proximidade de autores, ou sinais de perfeição numa arrumação de há tempos.

A generalidade dos bons leitores, ou dos bons bibliotecários, gosta de mencionar as alegrias que eles – os livros – lhes proporcionaram, mas eu prefiro falar de felicidade, o que se compreende num velho de oitenta e seis anos que os folheia para confirmar que a curiosidade se sacia com pouco.

Na falta de literatura sobre Tristão da Cunha, dediquei-me a mais um volume do “Minho Pittoresco” para ler, na prosa de José Augusto Vieira, uma das explicações mais surpreendentes sobre a natureza do meu Minho. Repare o leitor: “Qualquer que seja o lado para que nos voltemos, a vista não alcança um horisonte que não seja fechado por montanhas, uma paysagem que não seja tufada de carvalheiras viçosas. Talvez que a abundancia d’esta especie florestal justifique as revoluções minhotas, que teem descido das alturas de Vieira resolvidas a varrer a cacete todas as oligarchias das terras baixas. A observação fica já agora como futuro elemento mesologico a determinar, quando se tenha em vista estabelecer o laço intimo, que liga a abundancia do carvalho cerquinho com o espírito revolucionário das populações, que lhe sentem o zoar da rama.”

Tamanho esforço de antropólogo apenas é permitido no “Minho Pittoresco”. Em redor de Moledo, nas encostas mais luminosas, existem carvalhos frondosos que resistem à avalanche de pinhais. Prefiro estes perto do mar – e os carvalhos no alto da serra, nas penedias, nas curvas dos montes. Mas os livros das bibliotecas podem organizar-se. Os da natureza estão apenas desorganizados.

in Revista Notícias Sábado – 17 Junho 2006
POSTED BY ANTÓNIO SOUSA HOMEM AT 17.6.06



Da ignorância, por causa da música

Houve uma altura em que havia muito Beethoven junto do velho gira-discos de Moledo. O piano de Beethoven enterneceu duas gerações de Homem, não podia ser mais, junto com algum Schubert. Para provar que não tinha sobrevivido ao Titanic por pura sorte, alimentei na minha sobrinha, por pura vaidade, a ideia de que era um apreciador de jazz, coisa em que ambos acreditámos durante algum tempo. O meu ouvido assemelha-se às paredes da casa de família em Ponte de Lima: muita surdez e alguns hábitos que não se perdem. Os trompetes sempre despertaram em mim aventuras que nunca aconteceram – a orquestra de Coleman Hawkins, nascido com o século, esteve ligada às pequenas alegrias da minha vida: irregulares, melodiosas, uma espécie de barroco do jazz.

Não castigo o leitor com a minha ignorância, que me basta a mim próprio para corar de vergonha. O mundo da minha adolescência, que ainda lembro, era muito mais silencioso do que o actual. Há momentos irrepetíveis, que hoje não têm sentido: ligar o aparelho de rádio, sintonizar uma estação de rádio para procurar um programa em especial, virar um disco no aparelho, mudar a rotação no gira-discos ou accionar a manivela de uma grafonola, por exemplo. O velho Doutor Homem, meu pai, gostava de uns discos com sambas brasileiros, acompanhados de orquestra a rigor, semelhantes às grandes orquestras americanas – e chegou a coleccionar discos de Dick Farney e de Cartola. Esses objectos vagamente arqueológicos já não existem, tal como o primeiro canteiro de hibiscos originais, que desapareceu com a idade. De certo modo, havia um cerimonial ligado à música: uma hora, uma solenidade, um auditório, uma novidade. Todo o resto da nossa vida, minha e do meu pai, foi dedicado aos livros – e ao escritório de advocacia mais ou menos familiar, onde entrei a contragosto, e de onde me retirei para Moledo, arrastando comigo os fins-de-semana da família, álbuns de fotografia e uma biblioteca em busca de organização. Apenas se mantêm os fins-de-semana e os álbuns de fotografia.

A biblioteca nunca teve ordem possível e compreendi que dar-lhe uma ordem demasiado exacta, profissional, era desrespeitar o espírito aventuroso do Doutor Homem, meu pai, que apenas concedia em organizar uma pequena parte dos seus livros – justamente, os seus autores de eleição, que iam de Disraeli a Yeats com alguns apeadeiros em poesia romântica inglesa e nas biografias de grandes homens. Pensando bem, a minha contribuição para essa biblioteca apenas veio envelhecê-la e torná-la menos cosmopolita; não a arejei com muitos novos autores, não a enriqueci com o chamado “pensamento contemporâneo” nem com o “romance moderno”, ignorei o que havia a ignorar. Ou seja, ilustrei-a com a minha ignorância e com a soberba de um velho cuja curiosidade tem limites muito estreitos.

Essa limitação tem vantagens. A minha sobrinha, enquanto me acompanhava às esplanadas da praça de Cerveira, onde costumo ir todos os meses como pretexto para almoçar onde a idade já me não perdoa, acha estranho que muitas das coisas de hoje não me interessem. O que não me interessa eu não conheço. O que conheço tento conhecer melhor. Passou o meu tempo de fazer escolhas e de exercitar a paciência deste pobre homem do Minho. As pessoas não são mais felizes por coleccionarem tantos títulos como o dr. Prado Coelho. Há, por certo, alguma virtude em não ser assim. Por mim, sou-o por hábito, por génio e por preguiça.

Quando o meu médico de Viana do Castelo recebe a minha visita periódica para vigiar os rins e os males cardíacos, tenta esconder-me as misérias. Eu compreendo-o. É um médico de antigamente, sabe que o conforto da alma é um bem muito superior ao conhecimento geral do universo.

in Revista Notícias Sábado – 5 Agosto 2006
POSTED BY ANTÓNIO SOUSA HOMEM AT 5.8.06

as crónicas de antónio sousa homem 01

* António Sousa Homem

Lições de História em família miguelista

O volume (com anotações marginais em lápis ou em tinta azul pardacenta) estava reservado às leituras seculares do Verão, geralmente passado na tranquilidade de Ponte de Lima. Era o tempo ideal para disciplinar a historiografia.

Será muito difícil esquecer aquelas tardes cheias de luz, estivais, preguiçosas, às vezes intermináveis, de outras vezes curtas de mais – e por isso não sei por quem ‘A Quadrilha dos Marçais’ foi escolhido para leitura. Naqueles anos não havia propriamente ‘leituras de Verão’ ditadas pela moda mais recente. No Minho dos anos 50 as novidades demoravam a chegar e, quando chegavam, depois de o velho Doutor Homem ter transportado a família até ao velho casarão de granitos cobertos de musgo e hera, já tinham passado de moda.

O Tio Alberto era uma excepção comovente e o livro pertencia-lhe. Tinha sido publicado em 1938 e falava da guerrilha e das perseguições entre as margens do Douro e do Côa, primeiro entre ‘miguelistas’ e ‘liberais’, depois entre fiéis à rainha ou convictos da Junta do Porto e da Patuleia. No fundo, era a prova de que a província, a velha província dos nossos antepassados, conhecera a crueldade e a violência da mesma forma que as cidades a tinham promovido. Pelas suas páginas escorria sangue justo e injustificado, relatos de emboscadas nos vales de amendoeiras que limitavam o cenário produtivo das vinhas do Douro, suspeitas de assassinatos decididos em casas de família. A ideia de que existia uma bondade natural no género humano, uma sensibilidade ‘rural’ e dada a concertos campestres, caía por terra depois dessas descrições e dos inventários de atrocidades cometidas em nome das bandeiras de ocasião.

O velho Doutor Homem, meu pai, limitava-se a encolher os ombros, encarando com grande naturalidade o desfile de mortandades e de crimes, mencionando a necessidade de relativizar o nosso espanto. 'Nada que não tivesse acontecido.'

A minha sobrinha Maria Luísa descobriu o livro num destes fins-de-semana polvilhados pela tepidez de Maio, mas afligido por uma trovoada cujos relâmpagos anunciavam um entardecer tranquilo sobre os pinhais de Moledo. As minudências de história pátria são pouco comentadas para que não pareçam leviandades. No fundo, as hordas vão e vêm, deixam um rasto de sangue e de desperdício. Tem sido assim desde o princípio das coisas, enquanto nos limitamos a escolher o que não pode ser escolhido: o nosso passado. A família não o esconde: fomos miguelistas de primeira e de última hora. Já não podemos escolher outra coisa. 

31 de Maio 2009,



A diferença entre um homem e a sua sombra

"A sua veneração pelo senhor D. Miguel, a quem ela chamava ‘o Príncipe’, era um testemunho que teria de passar às novas gerações"

Ao chegar a uma espécie de ponto de não retorno nas discussões sobre o século XIX (o século ao qual o grosso da família ainda vagamente pertence), a Tia Benedita, matriarca ultramontana de Ponte de Lima, costumava citar a correspondência do senhor Duque do Luxemburgo, embaixador de França junto da corte de D. João VI. Ao invocar "um francês", a Tia Benedita parecia o próprio Príncipe Regente a passar revista às tropas da Azambuja (há uma reprodução do quadro de Domingos Sequeira em casa do Tio Henrique, nos Arcos de Valdevez): contrariada, sim, mas usando da prerrogativa. Ora, e ao que vinha a citação? É que o Duque do Luxemburgo, depois de ter visitado a família real no Rio de Janeiro, declarou com certa convicção que se o príncipe D. Pedro viesse a ser rei, "dali não se esperasse nada de bom". Foi pior, foi imperador.

Isto, escrito na língua de Voltaire (a Tia Benedita conservava um recorte do ‘Cardeal Saraiva’ a fim de não se esquecer que o autor do ‘Cândido’ era um perigoso ateu e maçónico), tinha o seu peso e limitava-se a confirmar a bondade da escolha que todos os ramos da família, mesmo os mais desleixados, nunca questionaram: o lado do senhor Dom Miguel.

Duzentos anos depois, os Homem continuam no mesmo lugar – no século XIX –, apesar de já se praticar o divórcio e de, creio, as novas gerações terem passado a fumar alguns tabacos demasiado aromáticos. O mundo dos últimos duzentos anos, pelo menos em Portugal, também não se alterou enormemente: enquanto os Homem se escondiam no Alto Minho ou tratavam das suas vidas no Porto, sem alarido, as grandes famílias e generais do constitucionalismo, e depois da República, e depois do Estado Novo, e depois da Democracia, limitavam-se a administrar um país que lhe fora legado por aquele que o Duque do Luxemburgo caracterizara de maneira tão simples – e definitiva.

Infelizmente, os pessimistas têm quase sempre razão. Em Portugal, por motivos acrescidos. A Tia Benedita foi criada pelo seu pai, nosso trisavô, no escândalo dessa derrota que a família não esqueceu, preferindo – em vez disso – ignorar o nome de Évora Monte. A sua veneração pelo senhor D. Miguel, a quem ela chamava "o Príncipe", era um testemunho que teria de passar às novas gerações.

Seja como for, a família conserva o retrato do senhor D. Miguel entre as suas relíquias, e de vez em quando (por desfastio e irresponsabilidade) limita-se a comparar o brio oratório de José Acúrsio das Neves com o calculismo do Dr. Passos. E a diferença é entre um homem e uma sombra.

20 de Abril 2014