sábado, 29 de dezembro de 2012

Gomes Leal - A Canalha (excerto)



 * Gomes Leal  (1848.1921)

Eu vejo-a vir ao longe perseguida,
Como dum vento lívido varrida,
Cheia de febre, rota, muito além ...
- Pelos caminhos ásperos da História - 
Enquanto os Reis e os Deuses entre a glória
Não ouvem a ninguém.

Ela vem triste, só, silenciosa
Tinta de sangue, pálida, orgulhosa
Em farrapos, na fria escuridão ...
Buscando o grande dia da batalha.
- É ela, é ela, a lívida Canalha !
Caim é vosso irmão !

Eles lá vêm famintos e sombrios
Rotos, selvagens, abanando aos frios,
Sem leito e pão, descalços, semi-nús ...
Nada, jamais, sua carreira abranda.
- Fizeram Roma, a Inglaterra e a Holanda,
E andaram com Jesus.

São os tristes, os vis, os oprimidos.
- Em Roma são marcados e batidos,
Passam cheios de vastas aflições.
Nem das mesas llhes deitam as migalhas.
Morrem sem nome, às vezes, nas batalhas,
E andaram nas sedições.

Vêm varridos do lívido destino.
Em Roma, a velha Grécia, erram. sem tino,
Nos tumultos, enterros, bacanais ...
Nas praças e nos pórticos profundos,
E disputam. famintos e imundos,
O lixo aos animais.

São os párias, os servos, os ilotas.
Vivem nas covas húmidas, ignotas,
Sem luz e ar; arrancam-lhes as mães.
- Passam curvados, nas mãos geladas.
E, depois de já mortos, nas calçadas,
Devoram-nos os cães.


(...)

Vão há muito, na sombra foragidos,
Pelas neves, curvados e transidos,
Enquanto Deus se aquece nos seus Céus.
Vem do Sul uma lúgubre toada,
E escuta-se Rousseau, na água-furtada,
- Gritar - Que me quer Deus ?

Erguem-se ébrios de mortes, de vinganças
Assoma lá ao longe um mar de lanças,
Ressoam sobre os troncos os machados.
E a Europa vê passar, cheia de assombros,
Ferozes, em triunfos, aos seus ombros,
- Seus reis esguedelhados.

À voz das legiões rotas, sombrias,
Desabam pelo mundo as monarquias.
Tremem os graves bispos. - E depois ...
Que mais farão ? perguntam desolados.
- Vão ser, inda depois, crucificados
Os deuses e os heróis.

... ... ... ... ... ... ... ... 
... ... ... ... ... ... ... ... 

Vai prolongada a dissonante orgia.
No silêncio da noite intensa e fria,
Vem uns ecos perdidos de batalha,
Como uns ventos do norte impetuosos.
- São os passos, nas trevas, vagarosos,
Os passos da canalha

Eles vêm de mui longe, mui distantes
Como sonoros batalhões gigantes,
Como ondas negras dum sinistro mar,
Numa viagem trágica e sem glória.
- Há muito, pela noite da História,
Que os oiço caminhar.

Quem sabe se virão ? ... É longa a estrada
Desta comprida e áspera jornada.
Quem sabe quando, enfim, descansarão ?
As pedras atapetem-lhes com flores.
Lá vêm queimados, rotos, vencedores,
Altivos e sem pão ! ...

Não raiou ainda o dia da justiça.
Mas, breve, talvez se oiça a nova missa,
E a Liberdade enfim junte os seus filhos.
Vão talvez vir os tempos desejados!
- E, então, por vossa vez, ó reis sagrados,
Saúde aos maltrapilhos !


Leal, Gomes - Antologia Poética, Guimarães Editores, Lisboa, 1999
Foto Victor Nogueira
1789 - a queda da bastilha

1871 - Comuna de Paris
1917 - assalto ao palácio de inverno

volpedo - o quarto estado

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Camilo Castelo Branco - Maria da Fonte

Casa de Camilo




http://archive.org/stream/mariadafonteprop00castuoft#page/n1/mode/2up


Maria da Fonte

A cada um seu Camilo, está visto. Na verdade, a obra do nosso escritor é um mundo tão vasto e proteico que dificilmente se poderá encontrar alguém que o não admire e aprecie em alguma das suas facetas. Há quem prefira nele as histórias de amores contrariados e lágrimas. Há quem prefira as páginas de sarcasmo ou, quando em maré de benevolência, de ironia – de toda a maneira, troça implacável. Há quem prefira o manejar do varapau de polemista invencível. Há até quem prefira o coca-bichinhos de miuçalhas históricas e genealógicas. Há sempre um Camilo que nos diz qualquer coisa.

Pessoalmente, aprecio-o e admiro-o visto de qualquer ângulo – tirante, confesso, o da poesia. Tanto me comovo com o Amor de perdição, como me divirto com a Queda dum anjo, como pasmo da mestria narrativa das Novelas do Minho ou de A Brasileira de Prazins, como passo duas horas entretidas com as suas obras ditas menores, tipo Cavar em ruínas ou Cousas leves e pesadas.

Mas obviamente há sempre um livro de Camilo que, por um motivo ou outro, nos fala mais. Às vezes nem nós sabemos exactamente porquê. O certo é que fala e prende. Acontece-me isso com Maria da Fonte. É como se sabe uma obra simultaneamente de reminiscências históricas e de polémica contra um outro livro, aparecido em 1884, com o título de Apontamentos para a História da Revolução do Minho em 1846 ou da Maria da Fonte, da autoria do ultramontano Padre Casimiro José Vieira, que a si mesmo se intitulava «defensor das cinco chagas e general das duas províncias do norte» e que – Camilo o cita com ironia – «acaudilhou trinta mil homens e abalou por duas vezes o trono».

O padre é ao mesmo tempo mitómano e megalómano. Reescreve a história ao sabor e à medida da sua auto-estima e do seu ódio aos pedreiros-livres. Claro que Camilo reduz metodicamente a cisco as patacoadas do padre, usando armas que tinha sempre à mão de semear: vigor de raciocínio e de argumentação, segurança nos dados históricos, cultura vasta e vastas leituras, sarcasmo e ironia em doses equivalentes.

É impossível ler o livro sem espirrar aqui e ali frouxos de riso (expressão bem camiliana) à custa das bordoadas com que Camilo deslomba (outra expressão bem camiliana) o padre Casimiro. A técnica usada é bem ao jeito do nosso polemista e deu bons resultados em ocasiões anteriores: reduzir os dislates do adversário a estilhaços e brincar depois com eles, por vezes quase até à crueldade.

A Maria da Fonte termina com um “Pós-escrito” que constitui, a meu ver, uma das páginas mais admiráveis de Camilo. Mantém o tom geral do livro, ora sarcástico, ora irónico, mas tempera-o agora de severidade e indignação. Ainda não li em parte alguma – salvo talvez em A velhice do Padre Eterno, em todo o caso num registo diferente – um requisitório tão enérgico e tão sentido contra um certo clericalismo sectário e de vistas estreitas como acontece ser o do padre Casimiro, que acaba por não distinguir entre política e religião e vaticina que todos os adversários hão-de dar «pulos no inferno». O “Pós-escrito” é uma cúpula primorosa para as duzentas e tal páginas do livro. Termina assim:

«[...]As modernas angústias do homem que chama os deuses à imitação do terror antigo que os criara, são sagradas e tamanhas que é pouco menos de infame afrontar com vitupérios o incrédulo atormentado pelo seu materialismo. É isso a esponja chegada aos lábios desses Cristos que se dilaceram nas presas da sua dúvida para se resgatarem pela morte. Se não pode compadecer-se, padre, seja ao menos egoísta. Arranje o paraíso eterno da sua pessoa, e deixe os ateus, deixe-os padecer e morrer. Não lhes faça pressão crudelíssima nos espinhos da sua coroa, injuriando-os porque eles não podem crer que haja um deus a contemplar, com a impassibilidade de um Nero divino, as suas criaturas estorcidas entre as labaredas do incêndio que Sua Majestade Suprema assoprou sem ter primeiramente consultado a vontade das vítimas. Cale-se, padre, por honra de Deus, se o acredita!»

Pires Cabral


http://casadecamilo.wordpress.com/2008/09/19/maria-da-fonte/



Jornal Maria da Fonte


Fundação do Jornal Maria da Fonte

Quando em 1871 José Joaquim Ferreira de Melo e Andrade remete a Camilo Castelo Branco o “esboço” de um Romance que titula de “A Herança de Londres” mas que virá a ser publicado em 2 volumes (1873/1874) sob o título “O Demónio do Ouro”, iniciava-se uma relação que acabaria por revelar-se determinante de muito do futuro de uma Vila e de um Concelho, a Póvoa de Lanhoso.

De facto, após esse momento, as relações de Camilo Castelo Branco e de Ferreira de Mello acabariam por fazer emergir um desejo íntimo daquele que viria a comprovar-se, ser um dos principais protagonistas, e determinantes, da eclosão da Revolta da Maria da Fonte na Póvoa de Lanhoso na Primavera de 1846. José Joaquim Ferreira de Melo e Andrade exerceu as funções de Administrador do Concelho da Póvoa de Lanhoso entre 1841 e 1847, fazendo-o na assumpção de uma perspectiva fundamentalmente política, dando primazia absoluta aos interesses político-partidários sobre os interesses da população, e contra quem se levantam as vozes e os actos das mulheres de Fontarcada que determinariam o início do que ficaria para a História de Portugal como a Revolução da Maria da Fonte.

Será Ferreira de Mello, Cartista convicto, quem faculta a Camilo a sua versão dos acontecimentos da Revolução da Maria da Fonte, como aliás expressa numa carta que lhe dirige, a acompanhar os documentos, datada de Março de 1874, quase em simultâneo com a publicação de “O Demónio do Ouro”...

O Livro de Camilo Castelo Branco

A publicação do livro de Camilo Castelo Branco “A Maria da Fonte”, mais um trabalho ensaístico do autor do que propriamente Romance, acontece em res-posta ao Livro “Apontamentos para a História da Revolução do Minho em 1846 ou da Maria da Fonte”, do Pe. Casimiro José Vieira, publicado com data de 1883… pela Typographia Lusitana de Braga.

De facto, “A Maria da Fonte” de Camilo Castelo Branco não se trata de um romance histórico, sequer de um romance, assumindo dar à estampa a versão dos acontecimentos de José Joaquim Ferreira de Mello e Andrade, um também seu correligionário político. Neste relato, adoptado por Camilo Castelo Branco como a versão mais autêntica dos acontecimentos, publica textualmente a versão que 11 anos antes Ferreira de Melo lhe remetera, e no qual opta por não mexer, transpondo ipsis verbis, talvez por Ferreira de Mello ter já falecido 4 anos antes (1881).

No discorrer das suas interpretações, de muitos dos factos da Revolução, Camilo vai procurar res-ponder a diversos “interlocutores”; para além do Pe. Casimiro José Vieira, a muitos dos seus adversários políticos, de Almeida Garrett a Oliveira Martins… contribuindo muito vivamente para a mitificação da figura da Maria da Fonte, a Amazona de Ferreira de Mello, de tamancos para os herdeiros da versão “camiliana”, o que provocará uma forte reacção das gentes da Póvoa de Lanhoso, agora já não com foices e roçadoiras... ou de clavina em riste…

Sabendo-se do alcance da obra de Camilo, mesmo em pleno séc. XIX, o que poderiam as gentes ou a comunidade da Póvoa de Lanhoso fazer em defesa do seu bom nome e dos actos heróicos das suas mulheres…? Como poderia uma comunidade repor a sua verdade se tinha sido um dos seus (Ferreira de Mello) a facultar uma visão política dos acontecimentos, ainda que um personagem suspeito no que respeita a isenção…? Como poderia a Póvoa de Lanhoso recolocar as palavras de Ferreira de Mello, que chegam mesmo a ser insultuosas e não apenas para com as mulheres da Póvoa de Lanhoso, afinal “o rodeiro dos engeitados da Póvoa”, de uma das suas figuras e cujos descendentes continuavam a ser referência social na mesma Póvoa de Lanhoso...

A “Maria da Fonte”
na Póvoa de Lanhoso

Não obstante os ecos deste relato não terem sido os desejados, o mesmo será objecto de sucessivas reedições nas páginas dos jornais e em textos de autores locais embora apenas documentalmente confirmados 110 anos depois (em 1996) com a publicação do trabalho de José Viriato Capela e Rogério Borralheiro “A Maria da Fonte na Póvoa de Lanhoso – Novos Documentos para a Sua História” que valida a informação “oral” veiculada ao longo de mais de um século pelo jornal e recolocando muitas das questões em torno da historiografia da Revolução de 1846.

Após 03 de Janeiro de 1886 e até aos nossos dias, 125 anos volvidos, com muito poucas e muito curtas interrupções, o jornal e o título “Maria da Fonte”, entram em casa dos Povoenses, sedimentando e solidificando a ligação, que se torna “umbilical”, da Póvoa de Lanhoso aos feitos de 1846...


http://jornalmariadafonte.blogspot.pt/2011/01/fundacao-do-jornal-maria-da-fonte.html

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Teatro de Miguel Torga


A Sociedade Recreativa e Dramática Eborense estreia no dia 27 de Março, pelas 21,30 horas, na sede da colectividade, com reposição em 31 de mesmo mês, a peça teatral “MAR” da autoria de  MIGUEL TORGA e com encenação de JOSÉ  SALOIO

“ Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal…” (Fernando Pessoa).

Miguel Torga ,nascido em 1907, nunca se afirmou como dramaturgo autêntico, mas sim como um grande e enorme poeta.

Torga transportou para o Teatro uma personalidade que se lhe não adapta e daí que as suas produções dramáticas, em número, aliás, reduzido,  desconheçam as exigências da sintaxe teatral, limitando-se a respeitar-lhe as características exteriores.

Miguel Torga publicou em 1941 um volume de teatro composto pelo drama “Terra Firme” e pelo poema dramático “Mar”.Numa análise dramatúrgica autêntica e profunda, chegamos à conclusão de que a rudeza do primeiro e o lirismo do segundo, se situam muito áquem de uma criação dramática.

A farsa “Paraíso” (1949) de que apenas o 1º acto é digno do seu autor e o poema dramático “Sinfonia” (1947), são exemplo de que o poeta não converteu a sua poesia em linguagem verdadeiramente teatral.

Assim continuamos a pensar que Miguel Torga não foi um verdadeiro dramaturgo, mas sim um genuíno e extraordinário poeta de que Portugal se deve orgulhar.

http://www.jornalecos.com.pt/tag/miguel-torga/

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Gomes Leal – Apontamentos para um estudo

Conversas em torno dos livros.


ruilopesmartins


Para o Miguel de Carvalho

que vende livros,

mas sabe oferecer ideias...



Fotografia de Gomes Leal


António Duarte Gomes Leal nasceu em Lisboa no dia 6 de Junho de 1848, na Praça do Rossio, freguesia da Pena. Filho ilegítimo de um funcionário da Alfândega, com algumas posses, que morreu em 1876, e de Henriqueta Fernandina Monteiro Alves Cabral Leal.

Viveu com a sua mãe e irmã Maria Fausta – a sua principal fonte de inspiração.

Frequentou o Curso Superior de Letras, mas não o concluiu. Não se fixou, porém, em qualquer carreira ou profissão que lhe assegurasse uma subsistência regular: no jornalismo, no panfletarismo político, acima de tudo na poesia, aplicaria a sua vocação de boémia e artista. Empregou-se como escrevente de um notário de Lisboa, mas a sua cultura literária foi quase toda adquirida no seu meio de trabalho e nos cafés.

Começou cedo a trabalhar no mundo jornalístico, tendo também feito edição de livros e panfletos. Colaborou com diversos jornais da época, publicando críticas literárias e artigos satíricos. Enquanto crítico, Gomes Leal era já defensor do realismo, mas como poeta era ainda ultra-romântico, o que é bem visível, formalmente, no tom de balada e na exposição narrativa de muitas das suas composições, componente que não deixará nunca de revelar, apesar das vicissitudes e “conversões” do seu percurso literário e pessoal – ou por isso mesmo.

Quando Gomes Leal publica as suas primeiras composições poéticas na «Gazeta de Portugal», a poesia do romantismo em Portugal atravessava um período de radical conflito a nível teórico. Era o período da célebre polemica “Questão Coimbrã” ou do “Bom Senso e Bom Gosto”, provocada por Antero de Quental.
Pode dizer-se que, nessa altura, salvo raríssimas excepções, a poesia em Portugal continuava alheia às influências desse “modernismo” que, no interior do próprio romantismo europeu, Baudelaire proclamara já, genericamente em 1846: “Qui dit romantisme dit art moderne – c’est-à-dire intimité, spiritualité, couleur, aspiration vers l’infini, exprimés par tous les moyens que contiennent les Parts”.

Como aliás já aqui se falou, esta polémica contra Castilho proclama, em 1865, os valores supremos de uma poesia europeia aberta às “imensas criações da alma moderna”

Tudo isto nos permite situar Gomes Leal, nos finais dos anos 60 do séc. XIX, como um herdeiro directo (mas não um imitador ou mesmo um discípulo) dos primeiros românticos portugueses. Mas há também desde o inicio da sua obra, um sentido finissecular baudelairiano que a define essencialmente, tornando-a única.



Lisboa – Praça de Camões em 1868

Gomes Leal estreou-se aos dezoito anos, em 1866, ao publicar a poesia “Aquela Morta”, na «Gazeta de Portugal»; aonde publica igualmente “A gondoleira” a 5 de Novembro de 1867.

Em 16 de Janeiro de 1869, começa a publicar o folhetim "Trevas" na «Revolução de Setembro». Com este trabalho tornou-se conhecido como poeta. É apresentado por Luciano Cordeiro como um dos "poetas Novos", a par de Teófilo Braga, Antero de Quental, Guilherme Braga e Guerra Junqueiro, entre outros.

Na «Revolução de Setembro», publicou vários textos, de características joco-satíricos, dos quais se destacam: “A batalha dos astros” (20 de Abril de 1870); “Descrença” (31 de Agosto de 1870); “Flor de perdição” (2 de Outubro de 1870); “No Calvário” (Outubro de 1870).

O cariz interventivo da sua obra é marcado não só pelos folhetins publicados nos jornais, mas também pela fundação com Magalhães Lima, Silva Pinto, Luciano Cordeiro e Guilherme de Azevedo, em 1872, do jornal satírico «O Espectro de Juvenal».

Em 1873, publica “O Tributo de Sangue” e “A Canalha”; e, em 1874, um ano antes da primeira edição de“Claridades do Sul”, escreve para o «Diário de Notícias» (19 de Maio) “Duas palavras sobre a poesia moderna”, onde reflecte sobre a utilidade que a poesia deve ter face às atribulações morais do final do século.



LEAL, ANTÓNIO DUARTE GOMES – Claridades do Sul.

Lisboa, Braz Pinheiro, 1875. - 281, [12] p. ; 21 cm

No ano da morte de sua irmã (Maria Fausta, sua principal fonte de inspiração) publica "Claridades do Sul"(1875), o seu primeiro livro poético, e nele já se notam os seus ideais anticlericalistas e republicanos, preocupações também presentes em obras posteriores. Apesar de ser ainda ultra-romântico, revela já certos aspectos parnasianos (nomeadamente na versificação e temática), numa "poesia sentimental e sinestésica que canta as contradições de uma existência repartida entre os amores venais e a fantasia estelar e exótica, a indignação causada pelas injustiças sociais e o pessimismo, ora negro ora afectadamente cínico e positivista" (Dicionário da Literatura Portuguesa).

Em 1881 é um dos fundadores do jornal «O Século». Aí publica, por exemplo, “A banalidade nacional irritada” (30 de Janeiro de 1881).

Para celebrar Camões e Bocage, publica o poema em 4 cantos – “A Fome de Camões” – para celebrar o tricentenário do poeta (1880) e “A Morte de Bocage”, (1881). Nestes dois últimos livros reflecte sobre o destino fatal do poeta de missão, com que ele próprio se identificava.

Datam igualmente de 1881 os panfletos poéticos “A Traição” e “O Herege”, pondo em causa o trono na pessoa do rei D. Luís, as Instituições burguesas e a Igreja, o que gerou um verdadeiro escândalo literário e político. Aliás, o primeiro texto leva-o à prisão do Limoeiro, onde escreve uma carta publicada no número comemorativo da Tomada da Bastilha de «O Século» (14/7/1881). A edição do almanaque «O António Maria» de 7 de Julho de 1881 é dedicada por Bordalo Pinheiro a Gomes Leal.



Gomes Leal

Caricatura de Bordalo Pinheiro

Na linha desta "poesia como voz da Revolução" (como o anunciara Antero de Quental nas «Odes Modernas»), os folhetins satíricos "A Orgia" (1882), "A Morte do Atleta" (1883), "A Noviça", e "O Remorso do Facínora"; "A História de Jesus para as criancinhas lerem" em 1883 (tendência agora calma e cristã) ;"Fim do Mundo" (volume com as suas poesias de combate) (1899); "Mefistófele em Lisboa"(1907) e"Retratos Femininos" ( novas sátiras e quadros da vida urbana) .

Outros poemas da sua autoria são “O Renegado: A Antonio Rodrigues Sampaio, carta ao velho pamphletario sobre a perseguição da imprensa” (1881), “O Anti-Cristo” (1884 e 1886), “Serenadas de Hilário no Céu” (1900), “A Mulher de Luto” (1902), “A Senhora da Melancolia” (1910). Publica até tarde. Data de Março de 1915 o poema “A Dama Branca” que vem a lume na Águia.



LEAL, ANTÓNIO DUARTE GOMES Fim de um Mundo : Sátyras Modernas.

Porto: Livraria Chardron, 1899 ~ Com ano 1899 no rosto e 1900 na capa ~ Brochura original ~ XVII+436p+1fb ~ 19x13x3cm. 1ª edição



A partir de “Anti-Cristo” (1886), e com “A Mulher de Luto”, depois da sua viagem a Madrid em 1878, por ocasião do casamento de Afonso XII, (1902), a poesia de Gomes Leal torna-se mais negativa, de uma certa inspiração ocultista, provavelmente devido à decadência física e moral sofrida pelo poeta.

A sua poesia oscila entre os três grandes paradigmas literários do final do século XIX: romantismo, parnasianismo e simbolismo. De 1899 a 1910, compõe e publica quase diariamente.

Quando a mãe morre, em 1910, converte-se ao catolicismo, o que tem influência na sua escrita, mudança que se manifestou na sua obra, em livros como "A Senhora da Melancolia".

LEAL, ANTÓNIO DUARTE GOMES - A Senhora da Melancolia : Avatares de um Ateu.

Lisboa: Livraria Moderna, 1910 ~ Vinhetas na capa e em fecho de cada um dos poemas ~ Brochura original ~ 23p ~ 21x13x1cm. ~ 1ª edição.

Começa aqui o período mais difícil da sua vida, do ponto de vista económico, foi recolhido em 1913 por uma pessoa piedosa. Dormia de casa em casa, ou nos bancos da praça pública, e chegou mesmo a ser apedrejado pelos garotos da rua, até que Teixeira Pascoaes e outros escritores lançaram um apelo público para que o Estado lhe atribuísse uma pensão. Este objectivo foi conseguido quando o Parlamento votou que lhe fosse atribuída a pensão, no valor de 600$00 reis que, apesar de diminuta, foi o seu sustento até à morte.

A fase final da vida de Gomes Leal foi marcada por um grande fervor religioso, associado à degradação física e moral consequente do seu alcoolismo. Morreu em Lisboa no dia 29 de Janeiro de 1921.

Apesar de se mover literária e pessoalmente nos círculos próximos da Geração de 70, não integra o grupo dos “Vencidos da Vida”, referindo, porém, o apreço que Eça de Queirós e Antero de Quental lhe dedicam, num comentário feito pelo próprio Gomes Leal na obra “A Morte do Rei Humberto” (1900).



LEAL, ANTÓNIO DUARTE GOMES – A Morte do Rei Humberto e os Críticos do "Fim d'um Mundo".

Lisboa: Parceria António Maria Pereira, 1900 ~ Prólogo do Autor ~ Brochura original ~ 102p+1fb ~ 19x13x1cm. 1ª edição

Gomes Leal tem aliás o cuidado de se distanciar das correntes estéticas da altura, fazendo-o nomeadamente na Nota a “Claridades do Sul”, acrescentada e publicada na segunda edição, em 1901. Na Nota a “A Morte do Rei Humberto”, Gomes Leal afirma ter publicado antes de “Fradique Mendes” na«Revolução de Setembro» e assevera ter sido contactado por Antero de Quental para assinar textos daquele pseudónimo (1), o que recusou. Na referida Nota, menciona que Cesário Verde lhe tece louvores à poesia de “Claridades do Sul”.

Esse sentido pós-romântico não se trata evidentemente, e apesar de uma certa herança de Herculano, dum tom funéreo e grandiloquente, nocturno, essa linguagem poética que o próprio Herculano e, antes dele, Bocage, foram buscar a Young e às suas “Nigths”.

Assim, desde o início da sua obra poética, Gomes Leal revela uma curiosa tendência heteróclita. Para essa tendência contribuem, se dúvida, os modelos do romantismo português, paralelamente a modelos estrangeiros, à frente dos quais está Baudelaire.

As marcas de Herculano, também já referidas, no respeitante aos primeiros poemas de Gomes Leal e que se exprimem, em termos de grande exaltação lírica, no folheto que lhe dedica, quando da sua morte: “À memória de Alexandre Herculano (Preito à memória do grande escritor, por ocasião do seu óbito em 13 de Setembro de 1877)”.

Gomes Leal reúne Garrett e Herculano num mesmo preito patriótico, em 1897, num texto em poesia, bastante polémico: “O estrangeiro vampiro. Carta a El-Rei D. Carlos I”.

A perspectiva do poeta enquanto ser incompreendido e infeliz surge em vários textos de Gomes Leal, composições poéticas em que o sujeito lírico se assume como alguém singularmente distante do comum dos mortais. Não se distanciando da visão romântica do poeta, Gomes Leal define-se como um génio inadaptado à sociedade, num misticismo visionário. Inúmeros são os exemplos desta perspectiva do “poeta proscrito e infeliz”, como “Soneto dum poeta morto”, “Aquele Sábio”, “El Desdichado” e “Noites de Chuva”de “Claridades do Sul”.

A filiação de Gomes Leal em Baudelaire é um dos tópicos mais tratados, porque o poeta português se inspirou no mestre das correspondências. De facto, Gomes Leal trabalha com mestria a ideia das “correspondances” do romântico francês nos quatro sonetos de “Claridades do Sul” intitulados “O Visionário ou Som e Cor”.

A partir de “Claridades do Sul”, o sentido heteróclito da poesia de Gomes Leal, quer quanto às múltiplas influências estrangeiras, com predominância para o modelo de Baudelaire assim como a sua visão de radicada na cultura portuguesa mas de que e o poeta depende essencialmente. Só se poderá compreender com uma análise específica da sua relação com os principais representantes da “Geração de 70” e, muito em especial, com a poesia de Antero de Quental.

Num curioso artigo publicado em «O Século» em 1881, Gomes Leal escreve sobre “Os Sonetos” de Antero de Quental: “A nós, só nos recorda os tercetos de Dante, (...), o “Sonho” de Byron, o “Corvo” de Edgar Poe, o “Livro de um fumador de ópio” de De Quincey e os terríveis tercetos de bronze (..) que se chamam as “Trevas” de Teófilo Gauthier”

Deve aqui acrescentar-se um outro modelo fundamental para a Geração de 70: Vítor Hugo e, sobretudo, a sua visão panteísta.

Através da referida influência de Antero, para quem “Les Châtiments” (1853) foram de uma importância relevante, este foi um ponto de partida para muitos dos poemas visionários e misticamente sociais de Gomes Leal.

Outra característica deste poeta, do final do século, prende-se com a preocupação que manifesta em relação aos seus leitores, nomeadamente na Nota à primeira edição e acrescentada na segunda edição de“Claridades do Sul” (1901). Aí debruça-se sobre a tarefa do escritor explicitando que a este compete“trabalhar a sua ideia, lapidá-la, poli-la, desenvolvê-la, facetá-la, de maneira que ela seja como um grande elo em que se vão encatenar um rosário luminoso doutras novas, e que ela saia transformada desse vasto laboratório intelectual, por um processo misterioso semelhante ao que dá a Natureza, transformando da lagarta a borboleta, do carvão o diamante, e da ostra doente a pérola.”

Gomes Leal é considerado um precursor do Modernismo Português, tendo sido referido por Fernando Pessoa como um dos seus mestres. Este dedica-lhe o soneto “Gomes Leal”, publicado pela Ática na edição das Obras Completas de Fernando Pessoa, em 1967.

Gomes Leal

Caricatura

Respondendo ao Inquérito Literário organizado por Boavida Portugal (realizado entre Setembro e Dezembro de 1912 e publicado em 1915), Gomes Leal afirma: “Em mim há três coisas: o poeta popular e de combate, nas sátiras e panfletos; o poeta do sonho e do mistério, na Nevrose Nocturna, nas Claridades do Sul, na Lua morta e na Mulher de Luto; e o poeta místico, na História de Jesus, na Senhora da Melancolia e no segundo Anti-Cristo.”

No número 2 da «ABC – Revista portuguesa» (22 de Julho de 1920), sob o título “O grande poeta Gomes Leal faz a sua biografia ao A B C, publica o soneto autobiográfico”, que transcrevemos, antecedido do seguinte texto:

“Gomes Leal, o poeta ilustre, que é uma glória nacional, quis dar ao A B C uma impressão da sua vida, da sua acção, das suas lutas. Em vez duma entrevista foram aos seus versos lapidares que chegaram a explicar como se passou uma infância, uma velhice e como a velhice chegou com as suas dores a focar essa cabeça coroada de louros. Só Gomes Leal poderia definir o que A B C desejava saber: a vida do primeiro poeta português.”

Outr’ora, outr’ora, em épocas passadas,
Tive uma santa Mãe de ideias maneiras,
Um recto Pai de barbas prateadas,
Tive prédios, jardins, fontes, roseiras.


Nos colégios, nas aulas, nas bancadas,

Não quebrei bancos, não parti carteiras;
Fiz bons exames, contas, taboadas,
Mais tarde amei patrícias feiticeiras.



Fui amigo do Eça e do Ramalho,

João de Deus, mais do excêntrico Fialho,
E tive que emigrar para o estrangeiro.



Chorei, gemi! Qual Dante nas estradas!

E ao regressar, por causas avanças,
- fui por três vezes parar ao Limoeiro.



Com este artigo, ainda que um pouco longo, tentei estabelecer a ligação dos valores que triunfaram na “Questão Coimbrã” e o despontar de novos ideais que se iriam impor na transição do século XIX para o século XX.
Desta análise ressalta um outro aspecto – o definitivo inter-relacionamento do pensamento nas diversas culturas europeias.

Saudações bibliófilas.



Bibliografia activa (alguns títulos):

O Tributo do Sangue (1873)
A Canalha (1873)
Claridades do sul (1875) (2)A Fome de Camões: Poema em 4 cantos (1880) (2)A Traição (1881)
O Renegado a António Rodrigues Sampaio carta ao Velho Pamphletario sobre a perseguição da imprensa(1881) (2)A morte do athleta (1883) (2)História de Jesus para as Criancinhas Lerem (1883)
Troça à Inglaterra (1890)
A Senhora da Melancolia (1910)


Bibliografia passiva:

Álvaro Manuel Machado – “Gomes Leal, Baudelaire e o Pós-Romantismo Finissecular”, in Intercâmbio, publicação anual do Instituto de Estudos Franceses da Universidade do Porto, 1992
Álvaro Manuel Machado – Poesia Romântica Portuguesa, Lisboa, ICALP, 1982
Eugénio Lisboa (Coord.) – Dicionário Cronológico de Autores Portugueses. Mem Martins, Publicações Europa-América / IPLL, [1990]. Vol. II, pp.311-313
Francisco da Cunha Leão e Alexandre O’Neill – Gomes Leal, Antologia Poética, Lisboa, Guimarães editores, 1959
Gomes Monteiro – O Drama de Gomes Leal. Com inéditos do poeta, Lisboa, editora Minerva, s/d
José Carlos Seabra Pereira – Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Coimbra, Centro de Estudos Românticos, 1975
Ladislau Batalha – Gomes Leal na Intimidade, Lisboa, Lisboa Peninsular editora, 1933
Vitorino Nemésio – Destino de Gomes Leal, Lisboa, Bertrand, s/d


(1) Viria a ser criado por Antero de Quental, Eça de Queirós e Jaime Batalha Reis, a partir de 1869, na «Revolução de Setembro»
(2) acesso ao eBook do «Projecto Gutenberg»