quinta-feira, 29 de abril de 2021

Filipe Chinita - Heróicos camaradas nossos

* Filipe Chinita - 




Filipe enviou a mensagem: 29 de Abril às 22:35

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Pedro Tadeu - Marcelo está a pedir-nos o impossível?

* Pedro Tadeu
28 Abril 2021 — 00:10

O  que Marcelo Rebelo de Sousa pede aos portugueses - que olhem para a História do país "sem autojustificações" nem "autoflagelações excessivas" - parece-me um objetivo bem-intencionado, mas...

Lembro-me de um exemplo que me parece lapidar: em 2012, uma universidade grega resolveu refazer o julgamento de Sócrates.

Estou a falar do filósofo grego, condenado à morte há 2420 anos por três razões principais: não aceitar os deuses gregos, promover falsos deuses e, com a divulgação das suas ideias, corromper a juventude. Em resumo, era ímpio, e isso, nessa altura, naquele sítio, era crime.

Os académicos gregos convidaram 10 juízes para apreciarem os factos, arranjaram advogados de acusação e de defesa para argumentarem, puseram historiadores qualificados a servirem de testemunhas e pediram sentenças que estivessem de acordo com as leis gregas da época, para respeitar o enquadramento espaço/tempo desse acontecimento.

Cinco juízes declararam Sócrates inocente. Cinco juízes declararam-no culpado, embora sem motivo para uma sentença de pena capital.

Portanto, mesmo passados mais de dois mil anos sobre os factos, quando não há razão para particulares paixões político-ideológicas associadas à questão, a análise das ocorrências e a elaboração de um juízo moderno subordinado à mentalidade da Antiguidade levou a conclusões, entre gente qualificada, diametralmente opostas.

Se olharmos para a realidade que preocupa o nosso Presidente da República, a tarefa que ele propõe é ainda mais difícil e divisora do que a dos juízes convocados pelos académicos gregos.

Como se pode pedir a um preso político do Estado Novo e à sua família, aos seus descendentes, que aceite o repto do Presidente da República na forma de olhar esse passado, quando é o próprio líder do Estado democrático que nunca diz o nome do objetivo da luta que levou essa pessoa à cadeia e à tortura: o derrube do fascismo?

Como pode Marcelo Rebelo de Sousa, "filho de um governante na Ditadura", como se apresentou, pedir a esta pessoa, e às suas famílias, o pressuposto de que o fascismo, que dominou boa parte das suas vidas, afinal não existiu, houve "apenas" uma... "Ditadura" (e com "D" maiúsculo, tal como o Presidente a escreve)?

Como se pode pedir a um descendente de escravos de há 200 anos, ou de contratados de há 80 anos, ou de mortos na guerra colonial de há 60 anos, ou de um espancado por um capataz numa roça há 50 anos, um juízo "menos apaixonado" sobre o colonialismo?

Como pode o Presidente da República de Portugal achar que pedir aos colonizadores para olharem "tanto quanto possível" para este tempo com "os olhos dos antigos colonizados" não corre, contraditoriamente, o risco de dar um sinal de condescendência paternalista totalmente insuportável para o "antigo colonizado"?


Como, por outro lado, se pode pedir a uma família de colonizadores, proprietários ou altos funcionários durante décadas em África, regressada a Portugal apenas com a roupa que trazia no corpo, que ache o mundo pós-colonial em geral e o processo português em particular um avanço civilizacional? É de certeza muito rara essa aceitação, mesmo que a pura racionalidade e educação a recomendem.

Até quando se olha para um passado bastante mais distante a serenidade não impera. Basta ver os insultos na internet sempre que vem ao de cima uma discussão ligada à Guerra Civil de 1832-1834 e sobre a legitimidade na sucessão ao trono na época: historiadores e políticos de direita e esquerda a trocar "mimos" emocionais, absolutistas de um lado e liberais do outro, miguelistas irritados, maçons indignados e um eterno refazer da História a tentar diabolizar o outro lado.

A pacificação destas polémicas históricas só se consegue quando elas deixarem de ter importância no presente, e isso está longe de acontecer.

O esforço do Presidente da República com o seu discurso no 25 de Abril tem vários méritos - é humano, procura ser justo, tenta o bom senso -, mas pensar que é possível olhar a História sem a "infetar" com a ideologia política do presente - seja a ideologia dominante, sejam as ideologias alternativas - é pedir aquilo que a humanidade, ao longo da História, nunca fez.

Este debate histórico, dominado pela luta político-ideológica do presente, por muito duro que seja, tem de continuar, e durante muito tempo.


Jornalista
https://www.dn.pt/opiniao/marcelo-esta-a-pedir-nos-o-impossivel-13619174.html

terça-feira, 27 de abril de 2021

Fernanda Câncio - "E manda ainda o Senhor Deus pretos a este mundo"

COLONIALISMO

Relatórios da administração colonial que denunciam "o bafio da escravatura" e uma diplomacia que tenta negar as acusações internacionais e adiar ao máximo a mudança: Portugal e a Questão do Trabalho Forçado, de José Pedro Monteiro, é um testemunho poderoso sobre o ocaso do Império português.

Fernanda Cânciocoo

29 Dezembro 2018 — 15:00 

"Tratados como animais bravios", agrilhoados, chicoteados, espancados, "arrebanhados no mato", com alta taxa de morte no transporte, mantidos décadas longe da família, à qual eram por vezes devolvidos em "estado de morto de pé", "grávidas e mulheres com filhos monstruosamente espancadas por abandonarem o trabalho": as descrições e observações encontradas nos relatórios da administração colonial portuguesa chocam pela crueza e naturalização daquilo a que um inspetor chama, em 1949, "o cheiro a bafio da escravatura".

Apesar de os castigos físicos serem proibidos por lei e de o próprio trabalho forçado ter sido, a partir da publicação do Código de Trabalho Indígena, de 1928, interditado exceto "para fins públicos" - e mesmo assim apenas quando estivesse em causa o interesse das populações que eram para ele mobilizadas --, as autoridades coloniais continuaram, pelo menos até aos anos 1960 (o Código de Trabalho Indígena só é revogado em 1962, sendo substituído pelo Código de Trabalho Rural, que deixa de ter referência racial e proíbe todas as formas de trabalho forçado, incluindo para fins públicos), a servir de recrutadoras compulsivas para privados - tratava-se, na linguagem de então, de "contratos com facilidades" -- e a aceitar as punições corporais com naturalidade, como vários relatórios reconhecem.

A candura destes relatórios e a forma como alguns inspetores ou outros membros da administração colonial exprimem a sua discordância e até revolta face à situação - um deles chega a escrever, referindo, em 1949 em S. Tomé, a existência de "grilhetas superiores a dois metros" e o facto e de o governador certificar que "só ele podia ordenar punições": "E manda ainda o Senhor Deus pretos a este mundo!" - é, para o leitor não especialista, uma das grandes surpresas que resulta da leitura de Portugal e a Questão do Trabalho Forçado/Um império sob escrutínio (1944-1962), do historiador José Pedro Monteiro, publicado este mês, e que, nas palavras do próprio, "mobilizando fontes inéditas, ilustra, pela voz de administradores imperiais e locais e de testemunhas autóctones, algumas realidades laborais e sociais vigentes nas colónias, permitindo, deste modo, cotejá-las tanto com as denúncias que se produziram internacionalmente como com os esforços de refutação oficial, frequentemente de natureza propagandística."

"É impressionante, no mapa das transgressões do Código de Trabalho Indígena, o número de processos por ofensas corporais" ", escrevia, por exemplo, em 1944, o inspetor Nunes de Oliveira; noutro relatório, referente a São Tomé e Príncipe, em 1947, lia-se: "Os serviçais vivem e trabalham contrafeitos, a tal ponto que já tem havido casos de suicídio entre eles, por essa razão; eles constituem uma considerável multidão, de algumas dezenas de milhar, dispersos pela densa floresta, e os agentes dos patrões que têm de os conduzir, só tal conseguem impondo-lhes uma disciplina severa, disciplina que só se consegue por meio de sanções expeditas e bem sentidas."

"É impressionante, no mapa das transgressões do Código de Trabalho Indígena, o número de processos por ofensas corporais" ", escrevia em 1944 um inspetor; noutro relatório, referente a São Tomé e Príncipe, em 1947, lia-se: "Os serviçais vivem e trabalham contrafeitos, a tal ponto que já tem havido casos de suicídio entre eles,"

É, recorda José Pedro Monteiro, o mesmo ano do célebre relatório choque que o inspetor-geral da Administração Colonial Henrique Galvão apresenta à Comissão das Colónias da Assembleia Nacional (o nome então dado ao parlamento), no qual informa que "o trabalho forçado ou "contratado" era a norma, as condições de vida miseráveis, a corrupção entre as autoridades generalizada", chegando mesmo a dizer que os escravos eram melhor tratados que os trabalhadores forçados, já que aos primeiros, sendo sua propriedade, o dono se esforçava por manter vivos e com saúde, enquanto que os segundos, se morriam de fome ou exaustão, eram substituídos por mais trabalhadores "recrutados" pelo Estado. Um excerto do relatório de Galvão: "A mortalidade infantil atingia a percentagem de 60%. O índice de mortalidade era de 40%, mesmo entre os trabalhadores na plenitude da vida. As figuras era mudas, estáticas. Não gritavam, não falavam de dor. Era preciso ver com os próprios olhos, era preciso encorajar até aqueles que queriam ver"

"Grilhetas ao pescoço" e chicote

Nada que devesse surpreender quem vinha lendo os documentos das inspeções "normais". Seis anos antes, diz José Pedro Monteiro, "um relatório do Curador Geral dos Indígenas de Angola relatava que os "indígenas" sentiam tal "horror" pelo contrato que, no Lobito, se tinha dado um episódio em que uns quantos se tinham lançado ao mar para lhe escapar. (...) O mesmo curador relembrava uma nota confidencial, relativa à intendência do Moxico, em que se informava que não havia capacidade para recrutar trabalhadores para a Companhia de Diamantes de Angola porque todos os "indígenas" que podiam ser recrutados tinham desaparecido. "A excepcional mortalidade entre os indígenas em serviço naquela companhia e o "Estado de Morto em pé" com que todos têm sido repatriados, alguns indígenas que morrem pouco depois [de aqui] chegar, e, ainda, os que com o corpo mutilado conservam a vida e vivem actualmente pedindo esmola, sem receber qualquer indemnização da Companhia, constituem, como todos nós sabemos, a razão da relutância que os indígenas mostram por aquele serviço"".

E em 1945, lê-se em Portugal e a Questão do Trabalho Forçado, o Curador de S. Tomé dava nota de que alguns serviçais tinham ali estado 13 anos, "muito além do estabelecido pela lei como limite máximo de permanência em "contrato", a receber metade do salário (...). Invocava-se ainda um relatório do Inspetor Superior de Serviços Judiciais, em missão a S. Tomé, em que se relatava a existência de trabalhadores presos com "grilhetas" ao pescoço. (...) Turistas estrangeiros tinham fotografado serviçais a ser chicoteados, do que decorria, segundo o raciocínio do inspetor, que era preciso pensar estes incidentes à luz do que vinha ocorrendo nos fora internacionais, onde os Estados Unidos vinham censurando a solução colonial."

"Em 1945 o Curador de S. Tomé dava nota de que alguns serviçais tinham ali estado 13 anos, "muito além do estabelecido pela lei como limite máximo de permanência em "contrato", a receber metade do salário (...)". Num relatório do Inspetor Superior de Serviços Judiciais, em missão a S. Tomé, relatava-se a existência de trabalhadores presos com "grilhetas" ao pescoço. (...) Turistas estrangeiros tinham fotografado serviçais a ser chicoteados."

Já em 1951, o encarregado de serviços da Inspeção Superior de Negócios Indígenas, após um introito no qual "enaltecia a essência humanista e benévola da intervenção portuguesa em territórios coloniais", prosseguia "desfiando um rol de iniquidades e abusos. Referia-se à taxa de mortalidade no transporte de 650 indígenas que era de 15,38 por mil quando comparados com os 4,25 por mil registados nas minas da África do Sul, um trabalho, já de si, extremamente perigoso; aos acidentes de trabalho que eram dados como ocorridos nas horas de descanso, como forma de desresponsabilização, o mesmo recurso estatístico usado também para os classificar como "agonias e congestões"; aos inválidos que eram obrigados a trabalhar em S. Tomé ("verdadeiros farrapos humanos") por salários miseráveis; que não eram pagas às famílias as indemnizações por morte de trabalhadores em S. Tomé; que milhares de "indígenas" ficaram mais de uma década para além do termo oficial do seu contrato sem serem repatriados; que os salários em Moçambique e especialmente em Angola chegavam a constituir cerca de um sétimo dos valores na África do Sul e menos de metade dos salários da Rodésia; que mulheres de trabalhadores eram sistematicamente violadas por grupos de serviçais enquanto outras grávidas e mulheres com filhos eram "monstruosamente espancadas com mais de 50 palmatoadas" por terem abandonado o trabalho.""

Muito impressionante também é um relato de 1949, referente ao "caso dos Tongas" (filhos de trabalhadores deslocados de outras colónias para trabalho em São Tomé, que nunca tinham vivido na colónia dos seus pais): "Muitos deles alegavam que desejavam reencontrar suas famílias, mas o governador-geral de S. Tomé simplesmente entendia que era um desejo descabido, visto não conhecerem as famílias, não saberem onde estavam nem sequer se ainda existiam. Ressalve-se que eram indivíduos com todas as obrigações fiscais e militares cumpridas. Mas eram também "fortes e saudáveis, educados numa vida de trabalho" e, como tal, o seu repatriamento devia-lhes ser negado, justificava o governador."

Não é possível saber, escreve José Pedro Monteiro, "o destino destas populações, mas a simples ideia de que o governador entendia possível mantê-las em S. Tomé revela os termos do debate em matéria de liberdade de trabalho. O relatório é ainda ilustrativo no sentido em que o funcionário da ISNI, no ensejo de contrariar a vontade do governador, elencava um conjunto de informação crítica. Desde logo, referia que serviçais havia que tinham estado entre 10 a 30 anos nas ilhas e que, se o seu contrato tivesse sido cumprido, o problema dos "Tongas" simplesmente não se punha. Recuperava um trecho do relatório do curador que os descrevia como "acabrunhados e tristes" e sem qualquer ideia do que era um contrato livre. Como finalizava o relator: "As expressões "os meus tongas" ou "tongas das roças" "embora se autorizem a mudar de situação", como se diz no ofício, cheiram ainda a bafio de escravatura"."

As descrições são arrasadoras, e muitas até agora inéditas. Constituindo uma versão editada e revista da tese de doutoramento do autor, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o livro procura dar a compreender "como e porquê as modalidades de trabalho coercivo se mantiveram política e socialmente aceitáveis no seio da burocracia imperial portuguesa por um período consideravelmente mais longo que noutros impérios europeus; porque estavam as propostas que procuravam pôr-lhes termo tão recuadas face às normas internacionais; e, finalmente, porque e como foi finalmente concretizada a reforma que lhes pôs termo, ainda que de modo meramente formal."

O historiador, de 34 anos, que investigou em vários arquivos -- no arquivo Histórico Diplomático, no Arquivo Histórico Ultramarino, na Torre do Tombo ("Onde havia pouca coisa"), e também nos da Organização Internacional do Trabalho em Genebra, da ONU, nos National Archives nos EUA bem como nos arquivos britânicos, em Kew - conversou com o DN sobre o seu trabalho.

Houve alguma coisa que o tenha surpreendido ou chocado particularmente nas suas leituras?

Houve relatórios que li, que fiquei... Uma pessoa pode-se chocar. Nos debates sobre a escravatura diz-se muito que é preciso olhar com os olhos daquele tempo. Curiosamente esse é um dos motivos pelos quais o facto de a abolição da escravatura ter resultado na generalização do trabalho forçado faz com que com que nas discussões públicas a questão do trabalho forçado quase não apareça. Porque se torna um bocadinho mais complicado poder dizer "ah, temos de olhar com os olhos daquele tempo." Não, aos olhos daquele tempo o trabalho forçado já era condenado de forma unânime. Não é por acaso que nos debates sobre a escravatura se alguém quer falar do trabalho forçado vem o "isso era outra coisa". Reforçando uma distinção legal que não é confirmada pela continuidade das práticas.

https://www.dn.pt/pais/e-manda-ainda-o-senhor-deus-pretos-a-este-mundo-10343094.html


Fernanda Câncio - Marcelo e o Portugal mais que imperfeito

* Fernanda Câncio

Em 2017, oito alunos de história do 12.º ano do Liceu Camões aceitaram falar com o DN sobre a forma como viam o passado imperial e colonial português. Para estranheza da própria professora, a maioria reproduziu o mito de que Portugal foi pioneiro na abolição da escravatura, em 1761 (altura em que foi abolida a escravatura apenas no território de Portugal "metropolitano" e mesmo assim não completamente). Do mesmo modo, quando questionados sobre o que sucedera aos escravos depois de em 1869 se ter dado a oficial abolição da escravatura em todos os territórios nacionais, muitos ficaram interditos. Um afirmou: "Então, deram-lhes o estatuto igual aos das outras pessoas."

Não é espantoso. A maioria esmagadora dos portugueses, atrevo-me a dizer - eis uma sondagem que gostava de ver - continua a achar que "fomos os primeiros a abolir" e desconhece totalmente o facto de à escravatura dos negros se ter seguido o trabalho forçado, só formalmente abolido em 1962. Essa realidade do trabalho forçado, que em pouco se distinguia da escravatura, atravessou o final do século XIX, a Primeira República e praticamente todo o Estado Novo. Nas leis, os negros classificados como "indígenas", ou seja a maioria da população de Moçambique, Angola e Guiné, eram excluídos da cidadania e tratados como sub-humanos - constatação que o próprio regime salazarista fez através dos seus documentos internos, como demonstra o historiador José Pedro Monteiro em Portugal e a questão do trabalho forçado (Edições 70, 2018).

A esmagadora maioria dos portugueses, dizia, desconhece estes factos, e desconhece-os não porque eles não estejam amplamente estudados por gerações de historiadores e investigadores académicos, com vasta obra publicada sobre a matéria, mas porque disso pouco tem passado quer para a discussão pública quer, o que é fundamental, para aquilo que se aprende na escola e se lê nos manuais do ensino básico e secundário. E não passa porque haja uma determinação consciente e malévola de mentir, mas porque coletivamente nos apegámos à mistificação.

O problema não é, ao contrário do que se possa crer, exclusivo de pessoas "pouco cultas". Ainda há poucos meses um reputado constitucionalista português me asseverava que o "nosso" regime colonial não foi racista. Quando lhe retorqui com alguns factos básicos - nomeadamente a instituição do trabalho forçado e a lei do indigenato - respondeu-me "era assim também nos outros países". Só ficou sem argumentos quando lhe lembrei que data de 1930 a convenção da Organização Internacional do Trabalho - só ratificada por Portugal em 1956, com prazo de cinco anos para aplicação - obrigando os signatários a acabar com o trabalho forçado no mais curto prazo possível, e que os próprios relatórios dos funcionários coloniais portugueses comparavam, até ao final dos anos 1950, a realidade do trabalho forçado à da escravatura, descrevendo castigos corporais com chicote e grilhetas e chegando a dizer que o primeiro era pior que a segunda, já que nesta ao menos o dono não estava interessado em matar o escravo já que pagara por ele, enquanto no trabalho forçado tanto lhe fazia: se morria pedia outro.

A ideia de que "não se pode olhar para a realidade do passado com os olhos de hoje", tão usada a propósito da história imperial e colonial portuguesa, soçobra perante a evidência de que estamos também a falar de coisas que se passaram há menos de 100 anos, quando outros países ocidentais já tinham iniciado a descolonização e quando eram muitas as vozes, inclusive em Portugal e nas colónias, a criticar - e a lutar contra - o que se passava. Muitos dos olhos de então já olhavam aquela realidade como a olhamos hoje, como iníqua, ilegítima e brutal.

E sim, vem todo este grande introito a propósito do discurso de Marcelo neste 25 de abril - um discurso notável, talvez o melhor que já lhe ouvi, e no qual teve a inteligência de sublinhar a sua condição de filho do último ministro das Colónias e de um dos últimos governadores de Moçambique, testemunha privilegiada (em vários sentidos) do ocaso do império e da ditadura colonial.

Esta assunção da sua condição pessoal - que aliás repetiria a seguir num encontro com capitães de Abril e jovens, no qual também fez um discurso muitíssimo interessante - tem um propósito mais ou menos claro: o de demonstrar, e bem, que o 25 de Abril é simultaneamente rutura e continuidade. Como ele, filho de um alto dignitário da ditadura que faria parte da Assembleia Constituinte de 1975 e acabaria duas vezes eleito presidente da democracia, os militares que fizeram o golpe "não vieram de outras galáxias, nem surgiram num ápice daquela madrugada para fazerem história. Traziam já consigo a sua história." E a sua história eram "as suas comissões em África, uma, duas, três, até quatro, (...) tudo em situações em que a linha que separa o viver ou morrer é muito ténue."

Eram pois os soldados do regime colonial, algozes, ocupantes, matadores, até serem os heróis da libertação. Sabemo-lo, ou devemos sabê-lo - mas saberá Marcelo distinguir entre quem retirou dessa experiência a deliberação de acabar com ela e quem, como Marcelino da Mata, a cujo enterro foi há meses como presidente, ou seja em nome de todos nós, se gabava dos seus crimes nessa guerra e louvava a ditadura?

É que esse é o problema: distinguir. E Marcelo, como a maioria esmagadora dos políticos da democracia, sejam como ele filhos de homens da ditadura ou como António Costa de oposicionistas, têm mostrado dificuldade nessa distinção e nesse olhar para trás, na capacidade de traçar a linha entre o que é admissível e até celebrável e o que deve ser censurado - porque é preciso dizer que houve coisas censuráveis e criminosas, por mais que tenham feito parte de um contexto.

Daí que seja tão bem-vinda a exortação do presidente para "que se faça história, história da história, que se tirem lições de uma e de outra, sem temores sem complexos", o reconhecimento de que "é prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo, o que houve de bom e o que houve de mau. (...) Que saibamos fazer dessa história lição de presente e de futuro. Sem álibis nem omissões (...)."

É isso mesmo. Ou seria, se a seguir não acrescentasse: "É prioritário assumir tudo, todo esse passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas nem autoflagelações globais excessivas (...) nem apoucamentos injustificados." É de novo a preocupação com "a visão auto flageladora da nossa história" que vimos recentemente em António Costa, preocupação extraordinária num país que até hoje se encarniça em negar "o que houve de mau" ou chega mesmo a celebrá-lo; preocupação contraditória num discurso presidencial que nos diz que temos de olhar a história também "pelo olhar dos colonizados".

Olharmo-nos pelo olhar dos "descobertos", dos submetidos, dos colonizados e dos seus descendentes não é só dizer que "nunca houve um Portugal perfeito" - a melhor frase do discurso do presidente. É sobretudo reconhecer o que desse passado mais que imperfeito resta em nós como país, denunciá-lo e combatê-lo. Aquilo, suspeito, a que Marcelo chama "excesso".

Jornalista

NOTA:

Na semana passada, escrevi sobre o Primeiro Plano Nacional Contra o Racismo e o ensino de história no básico e secundário, sob o título Implodir o padrão dos descobrimentos. Cometi erros no que escrevi e fui para isso alertada pela Associação dos Professores de História, por via de um email do seu presidente, Miguel Monteiro de Barros, pelo que me apresso a corrigir, agradecendo a retificação, que foi também colocada no artigo em questão.

Nesse artigo, lê-se: O programa de história do básico e secundário não mexe desde 2002 - ou seja há praticamente 20 anos. A responsabilidade pelos programas, como pela aprovação dos manuais, é das associações de professores - neste caso os de história; os governos limitam-se a homologar. É pois importante saber como a Associação dos Professores de História tenciona pôr em prática o plano de combate ao racismo na sua disciplina; como pensam contribuir para desfazer estereótipos e complexificar a visão romantizada dos "descobrimentos" e daquilo que se lhes seguiu, exorcizando a ideia verdadeiramente insultuosa de que o colonialismo português "não foi racista".

A APH retifica: "O documento curricular de referência já não são os programas, mas as Aprendizagens Essenciais (AE), elaboradas pela Associação de Professores de História, após consulta pública, e homologadas pela DGE (Direção Geral da Educação). O processo de elaboração das AE iniciou-se em 2016, tendo estas sido homologadas em 2018. Esta foi a primeira vez que a Associação de Professores de História foi parceira no processo de elaboração de um documento curricular basilar, nunca antes participou na elaboração de qualquer programa disciplinar, apenas foi consultora."

Parte do erro deveu-se ao facto de me ter baseado na informação que tinha recolhido em 2017 para um artigo sobre os programas e manuais, não me tendo dado conta de que entretanto (em 2018) tinha havido alterações.

Mais uma vez baseando-me nessas informações recolhidas em 2017, afirmei também no referido artigo de opinião que os manuais escolares eram aprovados (querendo dizer certificados) pela APH. Esta nega: "A Associação de Professores de História, tal como acontece com os programas, não possui quaisquer competências para "aprovar manuais". As editoras editam os manuais, sendo estes certificados, atualmente, por centros de certificação existentes em diversas universidades e institutos politécnicos, designados pela tutela. A Associação de Professores de História não tem nada a dizer sobre o assunto."


https://www.dn.pt/opiniao/marcelo-e-o-pais-mais-que-imperfeito-13614976.html

Manuel Loff - Uma história “sem álibis nem omissões”

OPINIÃO


Pela minha parte, eu e muitos investigadores estamos disponíveis para “estudar o passado e nele dissecar tudo”. Mas “tudo” é tudo mesmo, e é importante que inclua, de uma vez por todas, aquilo que, por envolver crimes nunca julgados, o Estado e a maioria da sociedade nunca quis assumir.

Manuel Loff

27 de Abril de 2021, 0:15

Lamento mas, se chegou a haver alguma unanimidade quanto ao discurso de Marcelo Rebelo de Sousa no 25 de Abril, eu não me junto a ela. Por mais corajosa que possa ter parecido a atitude do homem que nos falou como filho de “governante na ditadura e no Império”, e que entende ser “prioritário assumir tudo, todo o passado, sem auto-justificações ou auto-contemplações globais indevidas”, deveria, ele que me desculpe, começar por si próprio.

É compreensível que o filho de Baltazar Rebelo de Sousa, cuja carreira política esteve associada até à medula à gestão colonial nos anos da guerra, nos recorde que, como “constituinte, [viveu] o arranque do novo tempo democrático (...) como milhões de portugueses [situado] entre duas histórias da mesma história” – mas já não é aceitável ser quem nos peça que, ao “revisitarmos a história”, não a julguemos com os valores do presente. Porque é isso mesmo que ele faz, como fizeram os anteriores presidentes da República todos os dias 10 de Junho, 1.º de Dezembro, 5 de Outubro e, claro está, 25 de Abril.

Chama-se a isso o uso político do passado, que Marcelo usa como usam representantes de Estados que queiram dar lições aos cidadãos do presente a propósito dos atos dos cidadãos de ontem, e que, em nome da honestidade, não deveria pretender que é coisa apenas daqueles que discutem o passado nos termos que lhe não agradam.

Quando Marcelo nos pede para não “[exigir] aos que viveram esse passado que pudessem antecipar valores (...) agora tidos por evidentes, intemporais e universais”, persiste num dos mais velhos erros metodológicos da leitura reacionária do passado: o de inventar um tempo em que os valores dominantes seriam tão consensuais que nenhuns outros teriam sido enunciados. Em todas as épocas os valores dominantes tiveram alternativas; todas as ordens tiveram resistência; todas as verdades do tempo tiveram quem as denunciasse.

Marcelo, que em 2017 foi a Gorée (Senegal) elogiar precocidade portuguesa na história da abolição da escravatura, pretendendo que Pombal a teria abolido em 1761, não só sabia que o Estado português o não fez antes de passados mais de cem anos – eis o (ab)uso político do passado – como sabia também que a condenação da escravatura, do papel pioneiro e persistente que portugueses tiveram no tráfico, ou a denúncia do trabalho forçado que se manteve até aos anos 1960 nas colónias portuguesas, foi contemporânea dos próprios fenómenos e não é um “juízo do passado com os olhos de hoje”. Como o anticolonialismo foi contemporâneo do colonialismo, e contemporânea da guerra foi a recusa em fazê-la (sobre a qual Marcelo não pronunciou uma palavra) e foi a contestação da resistência antifascista portuguesa à escolha de Salazar em fazê-la. Nenhuma destas batalhas é recente, pelo que é inaceitável qualquer insinuação de que estas podem ser “campanhas de certos instantes”.

Era bom que o Presidente esclarecesse se “dissecar tudo” abriria, afinal, essas discussões que ele entende não serem “prioritárias para os portugueses”, e que é “duvidoso que o sejam alguma vez"

Com toda a razão, o Presidente diz que “o 25 de Abril foi feito para libertar, sem esquecer nem esconder”. Deveria, contudo, lembrar-se como o seu partido e todo o universo conservador da sociedade portuguesa, que, logo desde 1974, amaldiçoaram a Revolução e descreveram a descolonização como uma traição, não simplesmente procuraram “esconder”, mas pura e simplesmente negaram a natureza intrínseca da dominação colonial e toda a violência que ela significou. Se hoje, como Presidente da República, pretende que se faça uma História “sem álibis nem omissões”, pode desde já ajudar à desclassificação de muita documentação militar que continua inacessível.

Pela minha parte, eu e muitos investigadores estamos disponíveis para “estudar o passado e nele dissecar tudo”. Mas “tudo” é tudo mesmo, e é importante que inclua, de uma vez por todas, aquilo que, por envolver crimes nunca julgados, atos inaceitáveis à luz da moral e do Direito (não apenas os de hoje, mas também os do momento em que foram praticados), o Estado e a maioria da sociedade nunca quis assumir e não quer que se investigue.

Era bom que o Presidente esclarecesse se “dissecar tudo” abriria, afinal, essas discussões que ele entende não serem “prioritárias para os portugueses”, e que é “duvidoso que o sejam alguma vez”. Se assim fosse, teríamos de duvidar da sinceridade do discurso. É que só esclarecendo essas “omissões” seria verdade que, enquanto sociedade, “nos responsabilizamos” pelos nossos “fracassos” históricos da mesma forma como “assumimos as glórias que nos honram”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

 https://www.publico.pt/2021/04/27/opiniao/noticia/historia-alibis-omissoes-1960136

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Daniel Filipe - Pátria, lugar de exílio - 3ª canção


* Daniel Filipe 

Pátria, lugar de exílio,
geométrico afã
ou venenoso idílio
na serena manhã.

Pátria, mas terra agreste;
terra, apesar da morte.
Pátria sem medo a leste.
Lugar de exílio a norte.

Pátria, terra, lugar,
cemitério adiado
com vista para o mar
e um tempo equivocado.

Terra, débil lamento
na temerosa  noite.
Sobre os carrascos, vento,
desfere o teu açoite!

Anjo de fogo
pressinto a tua vinda
o gládio necessário erguido
sobre a cidade dominada
e digo-vos senhores é findo o vosso tempo
o jogo terminou ainda que o não pareça

Goivos que hão-de florir a vossa humana morte
são já semente adormecida à espera
de um outro Maio
luminoso e quente

Aqui às três da tarde
posso olhar-vos sem medo
e dizer-vos aqui estou
O Poeta é um operário
(MaiaKovski)
aprendei depressa a matar-nos
o poeta é o inimigo.
Mergulhamos as raízes na terra desventrada
confundimo-nos com ela
as nossas mãos florescem
e o vento leva a toda a parte o nosso desafio

Contra isto nada podem as armas a polícia os exércitos
a prisão a tortura
somos mais fortes do que tudo
somos a alegria
mesmo no fundo das masmorras cantamos
os pássaros aprendem as nossas palavras de esperança
descem com elas sobre o vosso sono
e ensinam-me o terror das noites solitárias

Tendes jornais
usai-os
tendes exércitos
usai-os
tendes polícia
usai-a
tendes juízes
usai-os
usai-os contra nós
procurai esmagar-nos
cantando resistimos
Somos a alegria o corpo o sal da terra
o sol das manhãs férteis a música do outono
a própria essência do amor a força das marés
somos o tempo em marcha

Esta é a única verdade
sabemos que vos é difícil aceitá-la
envoltos como estais em suborno e usura
bancos alta finança empréstimos externos
E no entanto esta manhã um pássaro
pousou à vossa beira embora
inutilmente

A pequena dactilógrafa matou-se
nós sabemos porquê.

Um carpinteiro desempregado rasgou a roupa
e saiu cantando para a rua
nós sabemos porquê.

Uma noite
a jovem costureira não voltou para casa
nós sabemos porquê.

Um poeta
Roeu as unhas enquanto foi possível
mas faltou-lhe a coragem no momento derradeiro


Nós sabemos porquê.

NÓS SABEMOS PORQUÊ.


E no entanto é doce dizer pátria
sonhar a terra livre e insubmissa
inteiramente nossa
Sonhá-la como se pedra a pedra a construíssemos,
Como
se nada houvesse antes de nós
e desde as fundações a erguêssemos completa
pura alegre acolhedora virgemde medos,
mortos insepultos
.
Regresso pelo tempo ao dia de hoje
primeiro de Maio de 1962
hora segunda da meditação

Ganho de novo consciência do lugar
Chegam comboios há mais gente na rua
Como se o rio humano recebesse
O agreste tributo de outra nascente

Vêm com o rosto de todos os dias
o olhar de todos os dias
as mãos e os pés de todos os dias
cansados de preencher impressos
moldar metais
afeiçoar madeiras
rodar motores e válvulas
sujos de óleo e poeira
deslumbrados de sol
operários    empregados de escritório    vendedores de porta
a porta
dir-se-ia que cantam

De súbito   a cidade parece banhada de alegria
estamos juntos meu Amor
possessos da mesma ira justiceira
Damos as mãos como dois jovens namorados
e sorrimos felizes
à doce primavera acontecida
no magoado coração da pátria

Vêm de toda a parte sem idade
Redes cobrem palavras esquecidas
e no silêncio cúmplice desfraldam
um novo e claro amanhecer do mundo

Vêm de mãos vazias. nem flores simbólicas
nem ramos de oliveira
Entre os seus dedos apenas desabrocha
o obscuro desejo de apertar outras mãos
como as suas. nervosas. sujas, proletárias.

E eu limpo, eu meticulosamente barbeado
eu de papéis em ordem
eu vestido de nylon dralon leacrileu rigorosamente asséptico
eu mergulhado até às virilhas na placidez burguesa
vou convosco cantando companheirosi
rmãos em pátria
em sonho em sofrimento

Ah riso aberto, coração do povo
cálice, flor, inesperado aroma
doce palavra antiga
liberdade

Daniel Filipe (1925-1964)

Daniel Oliveira - Catarina e a beleza da dúvida

OPINIÃO

* Daniel Oliveira

Podemos fazer o mal para praticar o bem? Podemos travar o tirano antes de ele o ser? Os que querem esmagar a liberdade podem usá-la plenamente? E quando chegarem ao poder, não será tarde demais para defender a nossa? Até onde se tolera o intolerante? E quando é que a vontade de o combater nos transforma em seu semelhante? E quando é que a vontade de não nos assemelharmos a ele nos torna em seu cúmplice? “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” dá-nos dilemas em que todas as escolhas são trágicas. Mas não nos propõe a convivência com o fascismo. Perante ele, ou a democracia vence ou será vencida

26 ABRIL 2021 9:09

Édifícil escrever sobre “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”, de Tiago Rodrigues, sem estragar a experiência violenta que espera quem vai assistir. Evitarei ser “spoiler”, ficando-me pelo início do enredo. Ainda assim, se tem esperanças de ver uma peça que o Teatro Dona Maria II devia multiplicar por muito mais sessões, talvez seja melhor parar de ler este texto. Para si, até amanhã.

Os protagonistas pertencem a uma família descendente de uma imaginada amiga de Catarina Eufémia. Ela matou o seu marido, que estava ao lado do tenente da GNR que assassinou a ceifeira. Matou-o por ser cúmplice, sabendo que os cúmplices são os verdadeiros obreiros das tiranias. Todos os anos, no dia 19 de maio, a família segue uma velha tradição deixada por herança desde 1954: matar um fascista. É chegado o batismo macabro para uma das protagonistas, no dia em que faz 26 anos, a idade com que Catarina Eufémia morreu. Tudo acontece em 2028, com a extrema-direita acabada de chegar ao poder.

No palco, as dúvidas de sempre quando temos pela frente o monstro da tirania: como o travar? Podemos fazer o mal para praticar o bem? Podemos aplacar a violência do ódio com ódio e violência? E se não o fizermos, manteremos puros princípios que serão irremediavelmente esmagados? Podemos fiar-nos na repetição da História para travar os que insinuam a barbárie do passado? Podemos travar o tirano antes de ele o ser? E como sabemos se o será? Debate-se com um racista, mesmo sabendo que racismo não é opinião? Podemos dizer que um fascista é fascista apesar de em rigor ser apenas coisa aproximada? Os que querem esmagar a liberdade podem usá-la plenamente? E quando isso os levar ao poder, não será tarde demais para defender a nossa? Até onde vai a tolerância com o intolerante? E quando é que a vontade de o combater nos transforma em seu semelhante? E quando é que a vontade de não nos assemelharmos a ele nos torna em seu cúmplice? Onde está a fronteira entre a coragem e o fanatismo, a cobardia e a dúvida?

Sabendo que a provocação não é gratuita, temos de permitir que “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” se livre do vírus insuportável da literalidade que tomou as cabeças do nosso tempo. Porque estão ali todas as angústias dos democratas. A democracia pode resistir aos novos rostos do fascismo? E não podendo, como eu acho que não pode, o que vamos nós fazer perante o seu avanço? Combater as causas? Sabemos assim tão bem que causas são essas? E a nossa resistência é apenas identitária, um hábito passado de pais para filhos, ou nasce de escolhas individuais pensadas? Até que ponto a força de que precisamos para defender mais uma vez a democracia pode viver com as contradições que nos fazem humanos? Seremos feitos de massa assim tão diferente para nos acharmos moralmente superiores?

Desculpem se só há perguntas. “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” não aponta um caminho que nos livre da sensação de que estamos a viver uma história que já está escrita. Temos a sensação de que nada vale a pena: se usamos o argumento legitimamos, se usamos a força criamos uma vítima, se debatemos normalizamos, até porque é um debate onde as palavras chocam em muros de mentiras e manipulações. Este é o resultado de “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”: saltamos de dúvida em dúvida à medida que ela se contorce em espasmos de dor no palco. Quando nos encaminha para uma resposta que acalma a angústia do democrata, levamos um murro no estômago. Ele não vem com uma previsão sobre o futuro próximo, mas com tudo o que já nos é explicitamente dito agora. A ponto de desafiar, com brutal desconforto emocional e físico, as nossas convicções morais mais profundas. Acho que foi a primeira vez que ouvi um ator ser insultado pela plateia.

“Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” não nos dá a resposta. A arte não serve para nos oferecer compromissos pacificadores. Dá-nos dilemas em que todos os caminhos são trágicos. Dá-nos uma ventania de dúvidas que entra por todas as frinchas das nossas convicções. Só não nos dá o indiferentismo. Há uma fronteira inultrapassável entre um fascista e um democrata. Tem de haver. Não somos apenas adversários no jogo democrático. Não falo dos que são seduzidos a seguir o demagogo. Desses não se desiste. Falo de quem usa a democracia para a destruir. Tiago Rodrigues confronta-nos com os muitos caminhos que o combate à extrema-direita pode seguir, não nos propõe a convivência com o fascismo. Porque perante ele, ou a democracia o vence ou será vencida.

https://expresso.pt/opiniao/2021-04-26-Catarina-e-a-beleza-da-duvida-2354eba4