domingo, 31 de janeiro de 2021

Fernando Pessoa - Poema do amigo-aprendiz

* Fernando Pessoa

Quero ser o teu amigo. Nem demais e nem de menos.
Nem tão longe e nem tão perto.
Na medida mais precisa que eu puder.
Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,
Da maneira mais discreta que eu souber.
Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.
Sem forçar tua vontade.
Sem falar, quando for hora de calar.
E sem calar, quando for hora de falar.
Nem ausente, nem presente por demais.
Simplesmente, calmamente, ser-te paz.
É bonito ser amigo, mas confesso é tão difícil aprender!
E por isso eu te suplico paciência.
Vou encher este teu rosto de lembranças,
Dá-me tempo, de acertar nossas distâncias…

Filipe Chinita - sobre o 'ópio'


.* Filipe Chinita


A expressão «ópio do povo» (ou «ópio social») 
tem origem numa obra de Karl Marx intitulada 
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 
e a passagem exacta é a seguinte:
«A miséria religiosa 
é, de um lado, a expressão da miséria real 
e, de outro, o protesto contra ela. 
A religião é o soluço da criatura oprimida, 
o coração de um mundo sem coração, 
o espírito de uma situação 
carente de espírito. 
É o ópio do 
povo» 
.
karl marx
no roxo-rei
de chinita

fj
00.50
31.01.2021

Dom, 15:53

Filipe enviou a mensagem: 31 de Janeiro às 15:53
sobre o 'ópio'

sábado, 30 de janeiro de 2021

Filipe Chinita - na sociedade das classes e do capital

* Filipe Chinita 

na sociedade das classes e do capital 
tudo se resumiu/e até agora
em propriedade.
poder e posse.
fomos.somos desde a nascença 
formatados para isso...
entre mui outras 
cousas
de modo 
que até o sexo.o amor.e o eros
(se) reduziram... 
a controlar
ou 
controlado
ser
submissão
ou posse
.
de modo 
que também! 
pelo estilhaçar destes conceitos
nas relações humanas
a revolução tem 
de passar
.
pois 
podemos 
em simultâneo
ser submissos
possuindo
o outro
e
possuir o outro
submissos
sendo
.
quando... o desejo
é que pre.vale.ce
sobre tudo
isso
.
vosso
fj
12.57
30.01.2021

(eu) 
não quero dominar 
nem por ninguém
ser dominado
quero sempre! 
- apenas -
sim!
ser 
livre... 
de todas 
as minhas escolhas.
como tu... das tuas
.
se 
não perceberam
as minhas desculpas

Carta de Patrice Lumumba a sua esposa




Minha querida esposa,

Eu estou escrevendo estas palavras a você, não sabendo se elas um dia chegarão em suas mãos, ou se estarei vivo quando você as ler.
Ao longo da minha luta pela independência de nosso país nunca duvidei da vitória de nossa causa sagrada, da qual eu e os meus companheiros temos dedicado todas as nossas vidas.
Mas a única coisa que nós queremos para o nosso país é o direito a uma vida digna, a dignidade sem pretensões e a independência sem restrições.
Isso nunca foi o desejo dos colonialistas belgas e de seus aliados ocidentais, estes que receberam, direta ou indiretamente, aberta ou secretamente, apoio de alguns oficiais dos cargos superiores das Nações Unidas, o corpo sobre o qual nós colocamos toda a nossa esperança quando recorremos a ele para obter ajuda.
Eles seduziram alguns dos nossos compatriotas, compraram outros e fizeram de tudo para distorcer a verdade e manchar nossa independência.
O que eu posso dizer é o seguinte, que eu, – vivo ou morto, livre ou preso – não é o que importa.
O que importa é o Congo, nosso povo infeliz, cuja independência está sendo espezinhada.
É por isso que eles nos trancaram na prisão e por esta razão eles mantém-nos longe do povo. Contudo, minha fé continua indestrutível.
Eu sei e sinto profundamente em meu coração que mais cedo ou mais tarde meu povo irá se livrar de seus inimigos internos e externos, que eles levantar-se-ão como um só e dirão “Não!” ao colonialismo, a fim de conquistar sua dignidade em uma terra livre.
Nós não estamos sozinhos. A África, Ásia, os povos livres e os povos que lutam pela sua liberdade em todos os cantos do mundo estarão sempre lado a lado com os milhões de congoleses que não desistirão da luta enquanto houver um colonialista ou um de seus mercenários em nosso país.
Para meus filhos, que eu estou deixando e que, talvez, não os veja novamente, eu quero dizer que o futuro do Congo é esplêndido e que eu espero deles, assim como todo congolês, o cumprimento da tarefa sagrada de restaurar a nossa independência e nossa soberania.
Sem dignidade não há liberdade, sem justiça não há dignidade e sem independência não existem homens livres.
Crueldade, insultos e tortura jamais poderão forçar-me a implorar por misericórdia, porque eu prefiro morrer de cabeça erguida, com uma fé indestrutível e uma profunda crença no destino de nosso país, do que viver submisso e renunciar aos princípios que são sagrados para mim.
O dia virá quando a história falar. Mas não será a história que será ensinada em Bruxelas, Paris, Washington ou nas Nações Unidas.
Será a história que será ensinada nos países que terão se libertado dos colonialistas e de seus fantoches.
A África irá escrever sua própria história e tanto no Norte como no Sul será uma história de glória e dignidade.
Não chores por mim. Eu sei que meu atormentado país será capaz de defender sua liberdade e sua independência.

Vida longa ao Congo!
Vida longa à África!

Da Prisão Thysville,
Patrice Lumumba

Traduzido por Igor Dias

http://territorioafricano.blogspot.com/2017/09/carta-de-patrice-lumumba-sua-esposa.html

Lumumba: "Discurso da proclamação da independência do Congo"

* Patrice Lumumba


Homens e mulheres do Congo,

Guerreiros vitoriosos da independência,

Saúdo-o em nome do governo congolês.

Peço a todos vocês, meus amigos, que lutaram incansavelmente em nossas fileiras, que marquem este dia 30 de junho de 1960 como uma data sagrada que estará sempre gravada em seus corações, uma data cujo significado você orgulhosamente explicará a seus filhos, para que que eles, por sua vez, possam relacionar com seus netos e bisnetos a gloriosa história de nossa luta pela liberdade.

Embora esta independência do Congo esteja sendo proclamada hoje por um acordo com a Bélgica, um país amigável, com o qual estamos em igualdade de condições, nenhum congolês jamais esquecerá que a independência foi conquistada na luta, uma luta perseverante e inspirada, que se realiza diariamente, uma luta em que não fomos intimidados pela privação ou pelo sofrimento e não nos detemos pela força nem pelo sangue.

Estava cheio de lágrimas, fogo e sangue. Estamos profundamente orgulhosos de nossa luta, porque foi justa, nobre e indispensável para pôr um fim à escravidão humilhante que nos é imposta.

Essa foi a nossa sorte nos oitenta anos de domínio colonial e nossas feridas são muito frescas e dolorosas demais para serem esquecidas.

Experimentamos trabalho forçado em troca de salários que não nos permitiam satisfazer nossa fome, vestir-nos, ter moradias decentes ou educar nossos filhos como entes queridos.

Dias e noites, fomos submetidos a zombarias, insultos e golpes porque éramos “negroes”. Quem nunca esquecerá que o preto era chamado de “tu”, não porque ele era um amigo, mas porque o “vous” educado era reservado ao homem branco?

Vimos nossas terras confiscadas em nome de leis ostensivamente injustas, que reconheciam apenas o direito dos poderosos.

Não esquecemos que a lei nunca foi a mesma para o branco e o preto, que era branda com uns, e cruel e desumana para os outros.

Experimentamos sofrimentos atrozes, sendo perseguidos por convicções políticas e crenças religiosas e exilados de nossa terra natal: nossa sorte era pior que a própria morte.

Não esquecemos que nas cidades as mansões eram para os brancos e as cabanas destruídas para os pretos; que um preto não foi admitido nos cinemas, restaurantes e lojas reservados aos "europeus"; que um preto viajava nos porões, sob os pés dos brancos em suas cabines de luxo.

Quem esquecerá os tiroteios que mataram tantos de nossos irmãos, ou as celas nas quais foram lançados sem piedade aqueles que não desejavam mais se submeter ao regime de injustiça, opressão e exploração usada pelos colonialistas como ferramenta de seu domínio?

Tudo isso, meus irmãos, nos trouxe um sofrimento incalculável.

Mas nós, que fomos eleitos pelos votos de seus representantes, representantes do povo, para guiar nossa terra natal, nós, que sofremos de corpo e alma com a opressão colonial, dizemos a você que daqui em diante tudo está terminado.

A República do Congo foi proclamada e o futuro do nosso amado país está agora nas mãos de seu próprio povo.

Irmãos, vamos começar juntos uma nova luta, uma luta sublime que levará nosso país à paz, prosperidade e grandeza.

Juntos, estabeleceremos justiça social e garantiremos a cada homem uma remuneração justa por seu trabalho.

Mostraremos ao mundo o que o preto pode fazer ao trabalhar em liberdade e faremos do Congo o orgulho da África.

Vamos providenciar para que as terras de nosso país de origem beneficiem verdadeiramente seus filhos.

Revisaremos todas as leis antigas e as transformaremos em novas que serão justas e nobres.

Pararemos a perseguição ao pensamento livre. Faremos com que todos os cidadãos desfrutem ao máximo das liberdades básicas previstas na Declaração dos Direitos Humanos.

Erradicaremos toda discriminação, qualquer que seja sua origem, e garantiremos a todos uma posição na vida condizente com sua dignidade humana e digna de seu trabalho e lealdade ao país.

Instituiremos no país uma paz que não se apoia em armas e baionetas, mas em concórdia e boa vontade.

E em tudo isso, meus queridos compatriotas, podemos confiar não apenas em nossas próprias enormes forças e imensa riqueza, mas também na assistência de inúmeros estados estrangeiros, cuja cooperação aceitaremos quando não se impor a nós uma política de ingerência, mas é dada em espírito de amizade.

Até a Bélgica, que finalmente aprendeu a lição da história e não precisa mais se opor à nossa independência, está preparada para nos dar sua ajuda e amizade; para esse fim, acaba de ser assinado um acordo entre nossos dois países iguais e independentes. Estou certo de que esta cooperação beneficiará ambos os países. De nossa parte, enquanto permanecermos vigilantes, tentaremos observar os compromissos que assumimos livremente.

Assim, tanto na esfera interna quanto na externa, o novo Congo criado pelo meu governo será rico, livre e próspero. Mas para alcançar nosso objetivo sem demora, peço a todos vocês, legisladores e cidadãos do Congo, que nos ajudem a ajudar.

Peço a todos que abandonem suas disputas tribais: elas nos enfraquecem e podem fazer com que sejamos desprezados no exterior.

Peço a todos que não desistam de nenhum sacrifício para garantir o sucesso de nossa grande empreitada.

Por fim, peço a você que respeite incondicionalmente a vida e as propriedades de concidadãos e estrangeiros que se estabeleceram em nosso país; se a conduta desses estrangeiros deixa muito a desejar, nossa Justiça os expulsará prontamente do território da República; se, pelo contrário, sua conduta é boa, eles devem ser deixados em paz, pois também estão trabalhando pela prosperidade de nosso país.

A independência do Congo é um passo decisivo para a libertação de todo o continente africano.

Nosso governo, um governo de unidade nacional e popular, servirá seu país.

Apelo a todos os cidadãos congoleses, homens, mulheres e crianças, para que se dediquem resolutamente à tarefa de criar uma economia nacional e garantir nossa independência econômica.

Glória eterna aos lutadores pela libertação nacional!

Viva a independência e a unidade africana!

Viva o Congo independente e soberano!

30 de junho de 1960

 https://www.novacultura.info/post/2020/06/30/lumumba-discurso-da-proclamacao-da-independencia-do-congo

José Pacheco Pereira - O que na dimensão do humano permanece analógico (a começar por nós mesmos)

OPINIÃO


A ideia hoje muito corrente de que tudo pode ser digitalizado e posto online esquece que nós não somos biónicos, nem digitais – somos analógicos e limitados pelos nossos sentidos.

José Pacheco Pereira

30 de Janeiro de 2021, 0:10

Nos trabalhos de biblioteca e arquivo que faço, contacto de perto com um mundo extinto: o momento, há cerca de um século, em que há dezenas de jornais, revistas, publicações, uma espécie de invasão de papel, que chegava às mãos de alguns portugueses. Havia dezenas de jornais diários nacionais e locais, revistas com bastante periodicidade, sobre tudo que queiram imaginar – moda, política, teatro, fado, tauromaquia, vegetarianismo, jardins e hortas, folhetins, “mecânica popular”, divulgação científica, arte, cinema, livros, saúde, filatelia, sport, terra, mar e ar, astronomia popular, locais próximos e estranhos, fantasmas, religiões várias e espiritismo, “neomalthusianismo”, ou seja, simplificando, métodos de controlo dos nascimentos, vida colonial, missões, pedagogia, “classes laboriosas”, propaganda local, gastronomia, ilusionismo, jogos de cartas e azar, “infância desvalida”, maravilhas do mundo, etc., etc. Vejam o tamanho do período anterior e tripliquem-no na lista das matérias que tinham uma ou várias revistas dedicadas, secções nos jornais, ou qualquer outra forma de chegarem ao papel.

Agora vamos subtrair. Primeiro, o número de portugueses que lia e tinha acesso a este mar de papel, de leituras e informações era muito pequeno, num país em que a maioria da população era analfabeta e pobre. Verdade, mas essa elite existia e consumia esta pluralidade de jornais e revistas.

Segundo, o “modelo de negócios” da comunicação social, um eufemismo que se usa sem escrutínio, era diferente. Não era um mundo rico, havia muitas dívidas a tipografias, não se pagava ou pagava-se muito pouco as colaborações, as redacções e os jornalistas, quando os havia, eram pobres, vivia-se muito do voluntariado, havia mecenas e gente que tinha dinheiro e que o “esbanjava” por aqui, seja por interesse político, seja por convicção e gosto, mas também gente que comprava e assinava estes jornais e revistas. Havia também alguma publicidade, algum investimento dos partidos políticos, republicanos e monárquicos, moderados ou “esquerdistas”, de sindicatos – a Batalha, órgão da CGT, era diário – e de “sindicatos de negócios”, como a Moagem, ou os Tabacos, que eram proprietários principalmente dos órgãos nacionais e os subsidiavam a fundo perdido. O valor da publicidade só nos últimos tempos passou a ter um papel significativo. E, do ponto de vista instrumental, publicar hoje, desde que seja em pequenas tiragens (muitas das tiragens de há cem anos eram bastante pequenas), é mais fácil e mais barato. Uma outra diferença é que não havia subsídios do Estado.

 


Espelho, um jornal de parede colado em Lisboa ARQUIVO EPHEMERA

Terceiro, é que, com excepção da ainda incipiente rádio, mas que seria um sucesso em breve, a comunicação impressa não tinha de competir nem com a televisão nem com a Internet. Essa competição não se faz apenas no mercado do jornalismo clássico, nem das publicações especializadas e de grupos de interesse, mas faz-se também – e este “também” é enorme – no tempo e no modo como se lê, vê e pensa a informação ou o entretenimento.

Quarto, quase tudo isto está hoje na rede, em publicações especializadas, mas registem o “quase tudo”. O “quase tudo” e o modo como está é que não é o mesmo do papel. A ideia hoje muito corrente de que tudo pode ser digitalizado e posto online – que tem como corolário que nós estamos de um outro lado de uma máquina mesmo que essa máquina cada vez mais “se cole” ao corpo – esquece que nós não somos biónicos, nem digitais; somos analógicos e limitados pelos nossos sentidos, que depois se manifestam em hábitos, práticas, maneiras que não são substituídos pelo digital, nem no tempo, nem no modo.

Mesmo que alguém diga que tudo isto pode ser feito online, o online não chega às portas de um supermercado, não se dobra e mete no bolso, e acima de tudo não se leva para casa, nem se lê devagar, nem se colecciona. E é menos solitário do que estar diante um computador

Um exemplo: ainda não percebo por que razão ninguém se lembrou de fazer uma espécie de folha volante, ou em formato de edital para colar nas paredes, diário, ou um boletim semanal para deixar à porta de supermercados, mercearias, farmácias com um olhar diferente sobre o que se está a passar, com notícias, textos e criatividade, seja para dizer “leia no Correio da Manhã esta notícia”, “leia no PÚBLICO este artigo”, veja o novo cartaz do PS, ou como mudaram as montras, ou as máscaras mais criativas, ou como estão as ruas de dia ou de noite, e comentar o que há de interessante neste mundo em mudança que a pandemia está a criar. Pode ser em português ou em crioulo, ou nos dois ao mesmo tempo. Não é, aliás, precisa muita imaginação para sair do mundo estereotipado da comunicação social tradicional. Pode ser gratuito ou quase, mas tenho a certeza que muita gente que hoje tem mais tempo livre o ia levar para casa, e, mais, criar-se-ia uma habituação. Vou fazer compras, mas onde está a folha do dia que estava aqui ontem? Sim, eu trago-te o papelinho.

Todas as vantagens do analógico sobre o digital podem ser exploradas, e mesmo que alguém diga que tudo isto pode ser feito online, o online não chega às portas de um supermercado, ou às mãos dos polícias, não se dobra e mete no bolso, ou se leva num comboio de regresso do matinal trabalho das limpezas, e acima de tudo não se leva para casa, nem se lê devagar, nem se colecciona, não é da nossa dimensão física. E é menos solitário do que estar diante um computador.

Historiador

https://www.publico.pt/2021/01/30/opiniao/opiniao/dimensao-humano-permanece-analogico-comecar-1948552

 


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Filipe Chinita - inscrições de memórias de meu pai

* Filipe Chinita

inscrições de memórias de meu pai
- na minha mente -
1.
o prazer
com que saboreavas
as burras
já frias
- assadas no dia anterior -
.
sentávamo-nos
na pequena mesa central da cozinha
ante a janela aberta sobre
o quintal
e de canivete(s) na mão "desossávamos" todo o conteúdo
todas as pequenas lascas
da saborosíssima carne
ainda agarrada
ao osso
.
um pequeno grande prazer
que me ensinaste
tu
este
(o) de bem saborear
as burras
.
burras
para quem não saiba
são os queixais de porco
com toda a sua carne agarrada ao osso
assados no
forno
- o que 
nos finos restaurantes
chamam de bochechas (não confundir com o outro)
mas sem o respectivo
osso -
.
ainda hoje
sempre que posso
o faço
exerço esse predilecto passar do tempo
com um bom copo de tinto
ao lado
e sempre o nosso bom pão alentejano
para o que der e vier
- tal como o fazias
tu -
.
não sei situar que idade teria(s) então
mas sei que ainda éramos  
felizes
sei
que guardo esses momentos de cumplicidade
como pequenas cintilações
de felicidade
que me acompanha(ra)m
toda a vida
.
o nosso pequeno mundo escouralense 
não se havia ainda
desmoronado
.
agradeço-te pois
manuel da bia
por este teu tão singelo prazer
que fiz
meu
para todo 
o sempre
vivo


fjc
1977
27.02.2011 (publicação)

Filipe enviou a mensagem: Hoje às 21:07

O FASCISMO E A INTOLERÂNCIA EVOCADOS POR UMBERTO ECO



O FASCISMO E A INTOLERÂNCIA EVOCADOS POR UMBERTO ECO

(Traduzido e comentado por Alfredo Barroso)

Os textos de UMBERTO ECO que a seguir vão ler, traduzidos por mim, Alfredo Barroso, dedico-os a todos aqueles que ainda se atrevem a dizer que o movimento do CHEGA, chefiado por André Ventura, não é fascista ou neofascista, é só um movimento demagógico e populista de extrema-direita. Para que não acordem para a realidade quando já for demasiado tarde, quando Ventura tiver encontrado em Rui Rio um aliado como Hitler encontrou em Franz Von Pappen (que o ajudou a dissolver a República de Weimar e a consolidar o seu poder), e em Marcelo Rebelo de Sousa, um PR tão impotente como o marechal Paul Von Hindenburg, Presidente da República de Weimar desde 1925 até à sua morte em 1934.

Ora leiam:

- «Temos de velar para que o significado de cada um destes dois termos [Liberdade e Libertação] nunca torne a ser esquecido. O fascismo eterno está sempre em nossa volta, por vezes com disfarces civis. Seria tão confortável que alguém avançasse pelo palco do mundo e dissesse: 'Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas negras voltem a desfilar pelas ruas italianas'. Pois é, mas a vida não é assim tão simples! O fascismo eterno é susceptível de regressar sob as aparências mais inocentes. E temos o dever de o desmascarar, de apontar a dedo cada uma das suas novas formas - todos os dias, em cada parte do mundo. Dou, mais uma vez, a palavra a [Franklin D.] Roosevelt: "Atrevo-me a dizer que, se a democracia americana deixasse de progredir como uma força viva, procurando dia e noite, por meios pacíficos, melhorar a condição dos nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria no nosso país" (4 de Novembro de 1938). Liberdade e Libertação são, portanto, um dever que nunca acaba. E tal deve ser a nossa divida: “nunca esqueçamos”». 

- «A intolerância mais perigosa é aquela que nasce na ausência de qualquer doutrina, movida por pulsões elementares, É por isso que os argumentos racionais não servem para criticá-la nem para travá-la. É evidente que os fundamentos teóricos de 'Mein Kampf' são refutáveis com uma bateria de argumentos bastante elementares, mas se as ideias que [o livro de Hitler] propõe sobreviveram a todas as objecções é precisamente porque elas se apoiam numa intolerância selvagem, impermeável a toda e qualquer crítica»-

(...) « Toda e qualquer teoria se torna vã perante a intolerância rastejante que ganha terreno dia após dia. A intolerância selvagem baseia-se num curto-circuito categorial que ela empresta, desde logo, a uma futura doutrina racista. Por exemplo: se Albaneses entrados em Itália nos últimos anos se tornaram ladrões ou deram em prostitutas (o que até é verdade), segue-se então que todos os Albaneses, sem excepção, são ladrões ou prostitutas. 

«Este é um curto-circuito terrível porque constitui uma tentação permanente para cada um de nós: basta que nos tenham roubado uma mala no aeroporto dum país qualquer para que se regresse a casa afirmando que é preciso desconfiar das pessoas desse país. 
«Aliás, a intolerância mais terrível é a dos pobres, primeiras vítimas da diferença. Não há racismo entre os ricos: esses, eventualmente, produzem doutrinas do racismo; mas os pobres produzem-no na prática, que é bem mais perigosa. 

«Os intelectuais não conseguem lutar contra a intolerância selvagem porque, face à pura animalidade sem pensamento, o pensamento está desarmado. Mas já é bastante tarde quando eles enfrentam a intolerância doutrinal, porque, quando a intolerância se faz doutrina, é demasiado tarde para a combater, e aqueles que deveriam fazê-lo tornam-se as suas primeiras vítimas. 
 
«E no entanto, é aí que está o desafio. Educar na tolerância os adultos que se disputam uns com os outros por motivos étnicos e religiosos é tempo perdido. Demasiado tarde. É que a intolerância selvagem tem de ser combatida na raiz, por via de uma educação constante que tem de começar desde a mais tenra infância, antes que ela se inscreva num livro, e antes que ela se torne uma casca comportamental demasiado espessa e excessivamente dura«.

 
NOTA: Este texto foi escrito na altura do julgamento do capitão SS Erich Priebke, que participou activamente, sob as ordens do major Kappler, no terrível massacre das Fossas Ardeatinas (em Roma, a 24 de Março de 1944, e que consistiu na execução de 335 reféns italianos, como represália a um atentado cometido por "partigiani" da Resistência Italiana que causou 33 mortos membros das SS; o cálculo feito pelos nazis era o de fuzilar 10 italianos por cada SS morto, mas ainda foram acrescentados nomes à lista inicial). Encontrado na Argentina, onde se tinha refugiado, Erich Priebke foi extraditado em 1995 e julgado em Roma por um tribunal militar que, em 1 de Agosto de 1996, o deu como culpado de homicídio mas ordenou a sua libertação imediata por o crime ter prescrito. Ora, o texto de Eco, do qual apenas traduzi alguns excertos, foi escrito no momento dessa escandalosa sentença, que suscitou uma enorme emoção em Itália. Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça italiano anulou a sentença e, em consequência de novo julgamento, Priebke foi condenado, em 7 de Março de 1998, a prisão perpétua. 

https://aspalavrassaoarmas.blogspot.com/2021/01/o-fascismo-e-intolerancia-evocados-por.html

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Filipe Chinita - para parir abril

* Filipe Chinita

.
sempre
o
olhar
para lá das grades
da prisão
.
o
grito
dado
calado
fundo
.
a
certeza
de vencer(mos)
e correr(mos)
livres
para lá das grades
da prisão

- uma delas
face à qual
muitos anos mais tarde
hei-de escolher casa
em amplas janelas
para ela
voltadas
caxias
vista
em liberdade
das janelas da pirâmide
de linda-a-velha -
.
não esquecendo
que já antes
de abril
não sendo então lisboa
a minha cidade
mas a tua
- minha querida lisboeta -
lisboa era já
uma capital
resistente

agrilhoada
mas
resistente

antecipando
a
liberdade

que estava
por vir

que aí
vinha

viria
.
reuniões
assembleias
e até congressos

de clandestinos
.
acção
peregrinando...
- como se não existindo -
pelas ruas
da
cidade
.
inscritas inscrições
nas paredes
da
cidade
.
papéis
bíblia

pequenos
jornais

folhas
volantes
passadas rápidas
de mão
em
mão

colocadas
nos combinados
salvaguardados
sítios

das
vielas
ruas
praças
da
cidade
.
cidade
universitária

resistência
das
liberdades
.
mas
também
nas vielas campos em redor
das aldeias vilas
tão poucas cidades
do meu/nosso
alentejo

montemor

margem esquerda
do
guadiana

bastião resistente

nos campos
do meu alentejo
.
fábricas
da outra banda

margem
esquerda
do
tejo
.
e
naquelas
outras fábricas
que em coroa
em volta da capital
constituiam aquilo
que se viria
a chamar
de sua cintura
operária

vermelha
.
tarefas
sem
nome
.
esses
aparentes
pequenos
nadas
de que se fez e faz
a história
da
resistência
- de qualquer resistência -

que os não participantes

não conhecem e sequer
sonham

mas que formatam
essa lavra
heróica

da
coragem

do
silêncio

da
paciência

sem as quais
os grandes momentos
altos/grandiloquentes
nunca teriam
lugar
.
é
bom
não esquecer

que
abril
foi edifício
que de largo e longo
se construiu

antes que
do
aparente
nada...

surgisse

o
dia
nomeado

inicial
inteiro
e
límpido

os
dias...
antes nomeados
mas fracassados
.
tanta
semente
lançada

no
largo
traço
do
braço

adubo
de
sangue

pelas
terras

tanta
sementeira
perdida

tanto
fecundo
amor

e
inteira
dádiva

para
parir

abril
.
fjc
02.09.1977
(aos 21 anos em moscovo)

fotografia - desconheço a autoria.
fonte: 'forte de peniche, memórias da prisão'

#poemasfj #fascismoporfj

Filipe enviou a mensagem: Ontem às 15:02

Filipe Chinita - estas as curtas viagens.tão diversas.



* Filipe Chinita

estas as curtas viagens.tão diversas.
(nas).tardes de sol.
(nas) tardes.quase noite.inverno duro.
(nas) manhãs.já maduras.do meio-dia.
densas madrugadas.quase manhã(s)
.
estas as viagens curtas.tão diversas.
de campo maior em elvas.
de elvas em campo maior.
em travos iguais.tantas vezes.
por vezes diferentes.
'degladiantes'
até
.
estas as curtas viagens.tão diversas.
(no) negro.negro.do escuro da(s) noite(s).
em que quase nada se vê.
.
e nas manhãs.sem geada.
em que tudo é cristalino.
no verde.verde.das searas 
a crescer.dominantes
.
estas.as curtas viagens.tão diversas.
dos.por vezes.tenazes.olhares.
mas também do 
muito sono 
a correr.
e quantas ideias! 
pensamentos.sonhos.
a desfilar
.
estas.as viagens longas.tão diversas.
de bandeiras desfraldadas.
as barricadas (não) 
incendiárias.ao 
compasso 
destes 
dias.
incandescentes.talvez decisivos
.
longas viagens.estas.tão diversas
no tempo de ainda ....... e portas.
neste alentejo.de reforma agrária.
neste portugal ainda 
de abril
.
estas.de.longas.viagens.tão diversas.
(nas) tardes tão quentes.sol a queimar.
frescas tardes.na água do barril
que alguém ainda!
leva ao lado
.
meu alentejo.de reforma agrária.
que revolução
é!
a maior e a mais bela viagem
que na vida farei.
fiz!
.
estas as curtas viagens.
tão diversas
.
fj
vermelho 
eu

Bertold Brecht - Há muitas maneiras de matar

 * Bertold Brecht



segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

LISBOA Livros e antiguidades estão a ser expulsos da rua do Alecrim

 

Os rótulos que ficaram da antiga Fábrica Âncora - SEBASTIÃO ALMEIDA


* Cristiana Faria Moreira

LISBOA  - Livros e antiguidades estão a ser expulsos da rua do Alecrim

São mais duas lojas históricas a desocupar os espaços onde estão há décadas porque o senhorio não lhes quer renovar o contrato de arrendamento. Aos poucos e poucos, estes "negócios da paciência"estão a desaparecer da baixa da cidade.


Partilham a rua que “ajudaram a criar”. Dedicaram toda a vida aos livros, aos documentos, aos manuscritos que a família lhes deixou. Agora, têm o mesmo destino pela frente: fechar as portas. No final de Setembro, a rua do Alecrim já não terá os livros da Livraria Trindade e do Centro Antiquário do Alecrim. 

No princípio de Janeiro, ambos os estabelecimentos receberam uma carta do senhorio a dar-lhes conta de não querer renovar o contrato de arrendamento. O PÚBLICO não conseguiu entrar em contacto com os proprietários do prédio.

“É um espaço que está avaliado em dez mil euros por mês. Mas mesmo que eu pagasse esse valor eles não o arrendariam. Querem o espaço livre”. Se calhar, “para mais um hotel”, diz Margarida Leite, 53 anos, que trabalha no Centro Antiquário do Alecrim desde os 20 e herdou o negócio do pai.

Em 1956, Américo Marques enraizou o seu negócio na rua do Alecrim, num espaço onde antes funcionara a antiga Fábrica Âncora, dos licores, de onde ficaram os rótulos das garrafas que preenchem hoje uma das paredes. E ali ficaram entre livros, desenhos, gravuras, quadros, mapas como o que Margarida diz ser o primeiro mapa impresso de Portugal, de 1560, de Álvaro Seco.

O pai começou com oito anos por vender na feira da ladra. Vendia O Mosquito, a revista com “histórias aos quadradinhos” que foi fundada em 1936. Américo ficou sem mãe muito cedo. O pai era embarcadiço, andava a pôr carvão nos barcos que andavam pelo mundo durante sete ou oito meses. E Américo andava por aí sozinho. Ia buscar o material que vendia, às terças e sábados na feira, aos ferros velhos que compravam o recheio das casas. 

“O meu pai salvou manuscritos, inclusive cartas de D. Sebastião que ele vendeu mais tarde à Torre do Tombo, cartas de reis, primeiras edições [de livros]. Antigamente era tudo para desfazer e fazer papel”, conta Margarida Marques. Se fosse vivo, o pai teria hoje 95 anos. E recorda como, “na febre da ida do homem à Lua”, o pai fez chegar a Neil Armstrong a obra de Francis Godwin, L’homme dans la lune (O Homem na Lua, século XVII). “[O astronauta] mandou-lhe uma fotografia assinada a agradecer o livro, que relatava a primeira viagem à Lua, com uns gansos que levavam o homem”, conta.

Ali, “é tudo original. Não há reproduções”, garante Margarida. Pode-se tocar em tudo, sentir o cheiro, a textura do papel. É também disso que vive um antiquário. Do cliente que entra e se perde entre os detalhes, que troca dois dedos de conversa, que sabe que “ali se encontram coisas que não se encontram em mais lado nenhum”. Diz-nos que a loja se estende muito além da sala da entrada, mas que não mostra mais porque já começou a encaixotar as 14 toneladas de livros que ali tem guardados.

Separar o trigo do joio 

Este ano, foi já anunciado o fecho de portas da Aillaud & Lellos, da Pó dos Livros, em Lisboa, da Leitura, no Porto, ou da Miguel de Carvalho, em Coimbra. Na porta ao lado do Antiquário do Alecrim, a Livraria Trindade tem o mesmo destino. António Trindade, 50 anos, culpa o “terramoto” da especulação imobiliária que atravessa Lisboa e que está “a destruir” o que ali está há muito tempo e que “dá o charme” à cidade.

É ele que está hoje à frente do negócio que diz ter começado pela mão dos avós ainda na década de 1930, em Alcobaça, e por onde passavam “presidentes, ministros, intelectuais, historiadores, escritores”. 

“Isto está-nos no corpo. O que nós fazemos é uma espécie de selecção do trigo do joio. E, às vezes, até salvar, obras do século XVI, XVII”, diz. 

“Aí há dois anos vieram-me aqui dois tipos que encontraram numa cave de uma casa de Lisboa a segunda ou terceira edição do Dom Quixote (1615)”, conta. 

O certo, reconhece António, é que “não se lê como se lia”. Vende muito para estudantes universitários, mas conserva os clientes que procuram “as jóias, as raridades”. É que os livros “têm essa magia e há quem goste de ter na mão a primeira edição da Mensagem”. É isso que mantém estas casas, onde se encontra o que não se vende nas grandes cadeias, diz o livreiro, enquanto aponta para os sacos com volumes de arquitectura que tinha acabado de comprar e para outros cheios com os “setecentos e tal livros” da colecção Vampiro. 

Ainda assim, pode não ser o fim do negócio. Era para sair em Setembro, mas em finais de Abril conta mudar-se para outra loja “relativamente perto” da rua do Alecrim. 

E com isto, quem perde? “A cidade de Lisboa”, diz Margarida. “As casas típicas estão a desaparecer e depois passa a ser hotel com hotel”.

“O centro de Lisboa está a ser vendido a capitais estrangeiros”, continua António. “Tem que se cuidar daquilo que é único, aquilo que dá o charme à cidade. E Lisboa vai perder esse charme”. É que a cidade, nota, vive dos alfarrabistas, das casas de penhores que já desapareceram, das lojas das velas, das Belas Artes, das casas de cerâmica como a vizinha Sant’Ana, que tem também o fim anunciado. 

“Eu não me sinto vítima. O que eu aprendi com os meus pais, com os meus avós e com os meus tios, ninguém me tira. Vou para outro sítio e sou capaz de reconstruir. O que me custa é o que está a acontecer à cidade”, diz António. 

Margarida diz que o Antiquário do Alecrim se vai mudar para uma pequena loja do centro comercial Espaço Chiado, na rua da Misericórdia. Um “espaçozinho com 20 metros quadrados” que não está na rua. E “este tipo de negócios precisa de ter vida, de ter pessoas a passar”. “É o negócio da paciência”, como diz, e “devia ser mais apoiado”. 

Ambas as lojas dizem ter reunido com a câmara e tentado concorrer ao programa Lojas com História, mas admitem já não haver tempo para travar o processo.

Agora, é tempo de começar a encaixotar livros e recordações e assim despir um espaço que sentem como deles. De se despedirem dos leitores e da rua que ajudaram a fazer.


21 de Março de 2018, 8:25

tp.ocilbup@arierom.anaitsirc

 

Filipe Chinita - aconteceu

* Filipe Chinita 

aconteceu 
exactamente 
o que eu 
intuia
.
que 
tristeza.
chegar ao fim da vida
para ver isto... do meu 'povo'.
quasi 48 anos depois do fascismo
.
fj
20.44
24.01.2021

mas 
não é por isso... 
que deixarei de ser 
o que sempre 
fui...
comunista
vermelho
humano
fraterno
terno
ateu
livre
solidário
amante 
do belo.
do raro.
do sublime.
do inesperado
do desejo 
da paixão 
do amor 
e
do 
eros
da luxúria.
da perdição.
e da entrega... ao outro.
sem o qual eu
não sou
eu.
marxista-leninista
materialista dialéctico e histórico
filho de todas as revoluções.do inteiro mundo
sempre do lado das mulheres.de todos os diferentes
de todos os migrantes.de todos os humilhados
de todos os explorados
de todos os pobres
e de todos os 
sem tecto

Rogério Pereira - SONHO À VISTA (a caminho da terra da Utopia)

* Rogério Pereira
 
SONHO À VISTA
(a caminho da terra da Utopia)

Os mostrengos são cada vez mais numerosos
E rodeiam a nau voando
Não três, mas mil vezes, e mais raivosos
Na ré, de pé,
O mesmo homem do leme
Que depois de ter tremido, já não treme
Gritando o grito que o poeta lhe colocou na voz 
No mastro real,
Também igual,
Está o mesmo gajeiro
No ponto mais alto do navio, será o primeiro
A dar noticias, quando as houver que dar 
Naquela travessia
Decidida
Que ousaram desafiar
Se empenhando com todo o seu ser e querer
As ondas são vagas de meter medo
Se houvesse medo de lhes ter
A fome roer-lhes-iam a entranhas
Se houvesse sentir entranhas a roer
A incerteza espalhar-se-iam com os ventos
Se houvesse que a sentir nesses momentos
Tudo o que de mau, escuro e duro
Lhes diziam ir acontecer, aconteceu
Mas nem um só esmoreceu
(embora muitos ficassem pelo caminho
por tão dorido e sofrido ele ser)

As sereias, desistentes,
Mergulharam em desafinado cantar
Um dia, irá acontecer
O céu, agora de breu, irá clarear
O mar, agora alteroso, irá amainar
E chegará enfim a noticia esperada
Do alto da nau gritada
Sonho à vista
Sonho à vista, será o grito repetido,
Por quem sofrendo ali chegou
 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Bernardo Trindade: "Este é um trabalho contínuo, até ao fim. Um livreiro nunca sabe tudo"

 

▲"Esta casa nunca foi muito arrumada, porque quem compra livros antigos também encontra o que não procura. Aprende-se sempre, fala-se da vida e de livros", diz-nos Bernardo Trindade

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

▲ "Muitas livrarias acabaram quando o livreiro morreu. Poucas tiveram a sorte de terem um filho que seguisse as pisadas do pai"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

▲ "Hoje há um certo desinteresse pela História. Nunca mais ouvi falar dos professores que marcaram imenso, como o Vergílio Ferreira no Liceu Camões"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

▲ "Não houve um decréscimo, foi mesmo uma mudança. Muita gente deixou de vir por causa do medo"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

▲ "Entramos em várias casas, com uma história distinta. Cada biblioteca é um mundo, uma história e um cheiro"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Bernardo Trindade: "Este é um trabalho contínuo, até ao fim. Um livreiro nunca sabe tudo" - 



José Paiva Capucho Texto - Filipe Amorim Fotografi
a
23 jan 2021, 18:005

[VN1] Vai sair da Rua Alecrim, morada da livraria Campos Trindade. Em conversa com o Observador, recordou o pai, que abriu o negócio, as raridades que pagaram casamentos e colocou os olhos no futuro.

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Livros arrumados, muitos nem por isso, álcool gel, um computador, marcas de antiguidade. E silêncio. As grades na janela ajudam a explicar: é hora de sair. Nos últimos dias as homenagens têm sido muitas à livraria Campos Trindade, um local que, ao fim de 44 anos, vai abandonar o número 36 da Rua do Alecrim, em Lisboa. Esse carinho deixa Bernardo Trindade, o responsável pela livraria, quase sem palavras. E sem tempo para responder. Está ofegante, com a voz tremida, porque, apesar da emoção que tem sentido, é um homem pouco expansivo, tal como o pai, Tarcísio Trindade, o primeiro responsável pela livraria. Nesta conversa com o Observador, o filho, o herdeiro, um apaixonado pelos livros, abre a porta deste quase meio século de história, com alguma dor e uma garantia: para onde for, os clientes também vão.

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Mas isso é o futuro. O passado de Bernardo Trindade é o que permite perceber o porquê deste local ser tão acarinhado. Para o livreiro, falar do pai é abrir o coração e recordar histórias que contam mais tempo do que uma vida. Em família, lembra-se de quando lhe deu “o primeiro abraço a sério”, mas também recorda os pormenores de negócios marcantes, de como graças ao “Tratado de Confissom”, primeiro livro impresso em português, foi possível aos pais pagar o próprio casamento.

Esta é uma história que acontece sobretudo entre Alcobaça e Lisboa, mas tudo começa e termina na livraria, onde chegou com apenas 3 anos de idade. Aprendeu tudo o que tinha a aprender com o seu “mais próximo e distante amigo”, desde o catalogar, organizar, explorar ou adquirir bibliotecas. Até a emoção de ver o brilho nos olhos de um colecionador quando lhe cai nas mãos uma raridade. E talvez os cheiros que saem de páginas fechadas há demasiado tempo. “Comprei a biblioteca do Ernesto Sampaio, escritor casado com a atriz Fernanda Alves. Abri e cheirava a tabaco, misturado com o papel. Era a poesia completa de Herberto Hélder”, diz.

O orgulho que sente em ter seguido as pisadas do pai atravessa a máscara que usa durante a entrevista. Mesmo sabendo dos defeitos, compreende-se. Tarcísio Trindade foi alguém tão ou mais complexo do que aquilo que contam estas estantes. Chegou a ser o presidente de câmara mais novo “durante o Estado Novo”, um liberal ao lado de Marcello Caetano que fez amigos até no PCP, sendo preso político após a revolução 25 de abril. “Ainda tenho o mandado de captura do Otelo de Saraiva para o meu pai, por ‘associação de malfeitores’ “, confessa.

A pandemia obrigou-o a decidir aquilo que foi adiando: não conseguir pagar a renda. Agora, vai para outro sítio qualquer, como um escritório ou uma loja aberta. Tem a certeza disso, mas tem de parar. 2020 foi demasiado cansativo. É preciso descansar o corpo, a cabeça e voltar para junto da família. E se um dia for preciso colocar um ponto final, que seja. Tudo o que está na livraria foi feito “com amor e o melhor que se conseguia”. E deixa a nota: é uma profissão com futuro, ainda que o presente a queira rasgar da história.

Como tem sido gerir estes últimos dias, com muitas homenagens, até com visitas presidenciais, sabendo que no fim do mês tem de sair daqui?
Tem sido mais emocionante para as pessoas. Foi uma decisão que tinha de ser tomada, as coisas mudaram muito nos últimos tempos, por causa da pandemia. Há uns anos, com a nova lei do arrendamento, por uma questão de educação e de estar na vida, mantendo uma boa relação com os senhorios, não quis entrar nas lojas com história. Chegaram a vir cá e tudo. Pode ter sido uma má decisão, mas, em consciência, não era capaz de fazer isso. Sempre tive uma boa relação com os senhorios. Mas esta loja sempre teve vida e esteve cheia de gente. Preferi entrar em acordo, mesmo pagando uma renda bastante mais alta. Como primamos a relação com a maior correção e educação, lá chegámos ao acordo possível. Estava a andar muito bem, com o turismo, mas agora é complicado suportar esses valores.

Portanto, foi mesmo a pandemia que ditou o que está a acontecer agora?
Não houve um decréscimo, foi mesmo uma mudança. Muita gente deixou de vir por causa do medo. Quem compra livros antigos tem uma idade mais avançada. Claro que tenho clientes muito jovens e, como o meu pai fazia, tenho o cuidado de ter livros a preços muito acessíveis. Até temos a secção da “Vala Comum”, de um euro, que são acessíveis aos estudantes. São bons textos, não é lixo nem nada. Também vieram cá muitos livreiros, do Porto, de Lisboa e do estrangeiro, comprar livros para revender e vender a preços mais altos. Essa é a nossa maneira de negociar. Tenho pessoas para livros muito raros, primeiras edições do séc XVIII ou XVII, que são mais caros. Não é para todas os bolsos, mas quem os compra, sabe o que quer e o que procura e eu também. E sei que vão estimá-los, tendo a certeza que vão perdurar por mais gerações.

Essa relação de confiança entre quem compra e quem vende demora muito tempo a conseguir?
Sim. Claro que muitos clientes vieram do tempo do meu pai, também fui criando outros. Fiz alguns catálogos importantes que me deram muito trabalho e satisfação. A diferença nesta livraria é tentar ser o mais honesto possível, não especulando os preços. Nunca enganar um cliente, de que uma obra está completa e, afinal, não está. Por exemplo, um livro do século XVI tem de ser colecionado folha a folha, ver-se os defeitos. Quando compramos as bibliotecas, é preciso ver o que é ou não para restaurar. Só fazendo isso é que os livros conseguem perdurar no tempo.

"Não sou o livreiro mais velho de Lisboa, mas sou dos que têm mais anos de profissão porque comecei muito novo. Acompanhei o meu pai, sempre. Passaram-me pelas mãos as coisas mais incríveis e preciosas que estiveram nesta casa. Ensinou-me a utilizar a bibliografia como se fosse a extensão do nosso cérebro, como lhe dar bom uso. É essencial saber onde ir buscar a informação para qualquer livreiro."

Apesar do carinho que tem recebido, esta mudança não deixa de ser sintoma dos tempos: algumas livrarias estão a fechar portas. Porque é que não é possível criar condições para que continue a sua atividade aqui?
Um parêntesis: vou sair daqui sem um empréstimo, um imposto por pagar, sem nada. Prefiro sair assim, do que estar em falta com as minhas obrigações. Entendo que o último ano exigiu de mim um esforço enorme. Trabalhar o triplo para honrar os compromissos todos. Nunca faltou nada, nem aos empregados. Não tirei de lá o meu ordenado uma única vez. Está difícil para todos porque muita gente fica em casa, há livreiros que se mudaram mais para o online. Só que a alma desta loja nunca foi o online. Meter todos os livros online é tudo aquilo que esta profissão não é. Vive e sente-se no dia-a-dia, com a relação de amizade que vamos criando com as pessoas. Não é só amizade, é cumplicidade, feita de pequenos gestos.

Sei que um determinado cliente gosta disto ou daquilo, entra pela porta, sabe que tenho algo guardado, nem precisa de dizer. Ou quando procura algo há muito tempo e coloco o livro à frente dos olhos, nem imagina a emoção que é para mim e para as pessoas. Até as ofereço porque me dá mais gozo. Essa cumplicidade refletiu-se nestes últimos dias. Nunca fui de muitas palavras, tal com o meu pai, mas houve pessoas que despejaram tudo o que sentiam no último dia. Choraram, pediram abraços. Tudo de pessoas que não estava à espera.

Foi apanhado de surpresa por essa onda de carinho?
Houve sempre reconhecimento, não era preciso expressá-lo. Quando se cria essa relação, eles sentem esta casa como um porto seguro. Sabem que não vão ser enganados. Esta casa nunca foi muito arrumada, porque quem compra livros antigos também encontra o que não procura. Aprende-se sempre, fala-se da vida e de livros.

Como é que olha para o futuro? Disse que ia procurar outro local, para já. Não é um fim, portanto.
Vim para aqui com três anos. Não sou o livreiro mais velho de Lisboa, mas sou dos que têm mais anos de profissão porque comecei muito novo. Acompanhei o meu pai, sempre. Passaram-me pelas mãos as coisas mais incríveis e preciosas que estiveram nesta casa. Ensinou-me a utilizar a bibliografia como se fosse a extensão do nosso cérebro, como lhe dar bom uso. É essencial saber onde ir buscar a informação para qualquer livreiro.

 

Esse é o passado, de que também vamos conversar. Mas e o futuro?
Este ano foi muito cansativo. A minha ideia é parar uns meses para respirar, cuidar de mim e depois abrir. Há várias hipóteses: pode ser uma loja de rua, um escritório à porta fechada por agendamento, por exemplo. Como tive muita clientela, trabalhei muitas vezes à noite, o que me agrada. Mas para alguém que tem filhos e família, é um pouco injusto. É puxado porque as pessoas têm a ideia de que vender livros é estar aqui sentado. Eu e o meu pai sempre fomos homens de ação. Comprávamos e compro bibliotecas e andámos pelo país inteiro. Nem todos o fazem, porque é preciso alguma experiência. E é um risco, por vezes, o investimento é muito grande.

Mas este não é um negócio onde se olha só para o lucro.
É preciso assegurar o mínimo, mas felizmente nunca tive prejuízo. Enriquecer nunca foi o objetivo principal. Por vezes os livros nem têm de ser muito antigos, o importante é saber que são entregues a quem os vá estudar, a quem os utilize no seu trabalho.

Que histórias é que guarda dessas raridades?
O meu pai foi o único livreiro que teve cá a primeira edição do Dom Quixote, os dois volumes. Um exemplar lindo. Tive-o na mão. Mais tarde, quando ele já não conseguia trabalhar bem, comprei o segundo volume dessa edição, mais raro do que o primeiro. Só existem sete ou oito no mundo. Comprei-o no norte, foi parar a boas mãos. Depois, há a história do meu pai ter negociado o primeiro livro impresso em português, o Tratado de Confissom (1489), nos anos 60. Deu um grande brado na imprensa e tudo. Foi por causa desse livro que o meu pai arranjou dinheiro para se casar. E é por causa dele que existo. Um dia essa história será desenvolvida. Ainda há coisas a contar. Mas não já, não me leve a mal.

Não levo nada. Fico à espera.
Também passou por cá uma carta do Sá de Miranda, que penso que terá ido para a coleção do Pina Martins. Tive um pergaminho grande do Damião de Góis.

"Nas bibliotecas antigas, entramos no mundo do escritores, nos manuscritos, nas dedicatórias, nas anotações. É uma aprendizagem diária. Quem ama os livros como eu, sabe que está aí toda a beleza da profissão. Além das emoções que proporcionamos às pessoas, essa busca, é aí que está o segredo."

Dá-lhe orgulho?
Não é isso. Há coisas menos valiosas que também me dão imenso gozo encontrar. A revista Orpheu só teve dois números, uma vez apareceram num leilão as provas de um terceiro número, com folhas impressas, mas soltas. Tive a sorte de comprar esse lote. É quase impossível. Não sendo tão antigas, são do século XX. Vendi a alguém que tinha os outros dois. Vão ficar bem guardadas e estimadas.

Portanto a sua cabeça nunca pára. Sai daqui para ir em busca de relíquias?
Não tenho anúncios. Estas coisas vão passando de boca em boca. Claro que as pessoas sabem que é necessário uma margem de lucro, por mais pequena que seja. Mas como compramos em bruto, sem ser em leilão ou algo semelhante, há sempre custos associados, dos transportes, de catalogação, etc. Muitas vezes os livros estão fechados em casa durante muito tempo, há custos inerentes ao restauro. O aliciante é que estamos sempre a encontrar qualquer coisa. Nunca se sabe tudo.

O amanhã é sempre diferente.
É, é. Entramos em várias casas, com uma história distinta. Cada biblioteca é um mundo, uma história e um cheiro.

Um cheiro?
É verdade. Comprei a biblioteca do Ernesto Sampaio, escritor casado com a atriz Fernanda Alves. Abri o livro e veio o cheiro de onde estavam os livros. Era a poesia completa do Herberto Hélder, com a sua dedicatória. Fumava muito, por isso, veio um certo cheiro a tabaco, misturado com o papel. Ainda está lá. E olhe que comprei aí há uns 18 anos. Nessas bibliotecas antigas, entramos no mundo do escritores, nos manuscritos, nas dedicatórias, nas anotações. É uma aprendizagem diária. Quem ama os livros como eu, sabe que está aí toda a beleza da profissão. Além das emoções que proporcionamos às pessoas, essa busca, é aí que está o segredo.

2020 veio distanciar-nos muito uns dos outros. Para um negócio que se faz do contacto, como é que contornou essa restrição?
Ainda comprei algumas bibliotecas importantes este ano. Já eram de partilhas em que os donos tinham falecido ou já não estavam em casa. Fez-se tudo com segurança. Alguns clientes mais velhos adiaram as entregas, pelo medo. O que é normal, já sabia que ia ser assim.

Teve perdas muito significativas?
Tive de estar fechado uns meses. Como não tenho muito material online, claro que senti as perdas. Melhorou agora no fim do ano, também fui metendo no Facebook os livros da semana. Não era muito caro, mas vendia-se tudo. Mas, lá está, não gosto de negociar assim, não me leve a mal.

Não levo nada.
Não é a minha maneira de estar. Fiz porque teve de ser. Até ganhei novos clientes.

Desculpe insistir, mas fica chateado que não haja outra opção que não sair? Até Marcelo Rebelo de Sousa esteve aqui.
Esteve cá, como os outros presidentes. Jorge Sampaio, Mário Soares…

… Cavaco Silva?
Não, não. É uma pessoa mais de economias. Normalmente essas pessoas não têm queda para a bibliofilia e para o livro antigo. São bons técnicos, claro. Vou parar… Não fico chateado, mas estou muito cansado. Preciso mesmo dessa pausa. Mexeu bastante comigo, já sabia que ia acontecer. Só tenho de ter orgulho do trabalho feito até aqui. Por vezes é preciso largar o passado para se seguir. Sempre pus o meu cunho pessoal, fiz as vendas especiais quando ninguém fazia, como núcleos de arquitetura ou grande parte da biblioteca do Miguel Esteves Cardoso, em que fizemos aqui a venda. Saiu um artigo até no Observador. Estava cheio, nunca vi tanta gente numa livraria. Os preços eram muito acessíveis, só se via pessoas com molhos de livros. Pessoas jovens, foi muito interessante. Alguns ficaram clientes. Foi uma inovação que nunca tinha visto. Funcionou bem. Sabendo que isto tem uma carga emocional grande, sei que os meus clientes vão para onde eu for. Isso atenua um pouco, faz ter força para continuar. Só têm de perceber que tenho de parar uns meses para cuidar de mim.

Recuando até à sua infância. Veio para aqui muito novo. Percebeu muito rápido que isto ia ser a sua vida?
O meu pai foi presidente em Alcobaça até 1975. Depois foi preso em Caxias com um grande amigo dele. Foram momentos muito difíceis para a família. Reconhecem que foi o melhor presidente da câmara, fez uma obra notável, construiu infraestruturas, trabalhou muito com o ministro Veiga Simão, conseguiu lá meter escolas e liceus, não havia nada. Trabalhou com muita gente de esquerda, como o escultor José Aurélio, comunista, onde se fez a Feira de São Bernardo, que ficou feriado de Alcobaça.

O meu pai era da ala mais liberal do Marcello Caetano, quando via que as pessoas tinham valor, ajudava. Quando foi o funeral, muita gente veio de fora, até do estrangeiro, vieram ter comigo a chorar, a dizer que se não fosse ele, a sua vida estaria muito pior. Tinha muitos contactos em Lisboa, conseguia arranjar passaportes, era muito arriscado. Foi o presidente de câmara mais novo do Estado Novo e deputado mais novo da Câmara Cooperativa. Havia a ideia de fazer uma transição para a democracia de outra forma, depois com a revolução e com algumas injustiças… ainda tenho o mandado de captura do Otelo de Saraiva para o meu pai, por “associação de malfeitores”… Há um documentário onde se vê o povo que invadiu a câmara a perguntar por ele, porque foi preso e não lhe tinham dito. A partir daí, o meu pai fechou-se um pouco. Sofreu muito. Viemos para Lisboa. Dormíamos nos corredores, os meus pais lá atrás. Contado hoje pouca gente acredita, mas é a realidade.

"Há quem deixe obras à biblioteca X ou Y e, muitas vezes, deixam as caixas fechadas, acaba por se estragar tudo. Não querem trabalhar com a arrumação e catalogação, meter aquilo a funcionar de maneira que seja fácil para os estudiosos irem lá."

Foi fácil arranjar este local?
Foi através do meu tio, que tinha um antiquário à frente, alugámos aqui. Depois de tudo, o meu pai ganhava dois contos na câmara, nunca teve reforma, sempre trabalhou para a terra. Até ao fim, foi provedor da Misericórdia, sem nunca pedir despesas nem nada. Conseguiu realizar o sonho de fazer um lar de referência nacional em Alcobaça. Já com a doença de Parkinson a começar, íamos lá todas as semanas. Fez muito em prol dos outros.

Este sítio passou a ser a sua casa, então.
Somos quatro irmãos. Sempre senti que tinha de fazer um caminho ao lado do meu pai. E trabalhar com um pai não é nada fácil. Como era fechado, às vezes fazia coisas boas, um bom negócio por exemplo, e nós estamos numa idade em que queremos mostrar trabalho e orgulho, e, ao princípio, foi difícil. Fazia gestos pequenos, mas não era expansivo. Foi-se criando uma relação, era o meu mais próximo e distante amigo. Era um melómano excecional, muito sensível. Íamos ver livros para o Norte, sempre os dois, desde os doze anos. Tivemos momentos sem palavras, de proximidade total e absoluta. Nem era preciso dizer nada a seguir. Quando víamos os livros já havia uma empatia tal, que mal se abria, nem era preciso dizer nada. Claro que também estudei muito, fui aprendendo com as tertúlias que havia com vários autores como o Martim de Albuquerque, Ruy Cinatti ou o Alexandre O’Neill, muita gente.

Era impossível fugir desse ambiente.
Era, era. Claro que é preciso ter vocação, não é para qualquer pessoa. Tenho a sorte de trabalhar no que gosto, pouca gente pode dar-se a esse luxo, o que é pena. Vejo isso nos jovens, por causa de políticas de educação, não se incentiva para seguir outro caminho que não seja serem gestores, economistas e por aí. Nota-se que as pessoas não estão satisfeitas no estudo, nem para fazer um métier, uma carreira de encadernador, um trabalho manual. Vão ser cada vez mais precisos e quem for bom não vai estar dependente de empresas nem tem de fazer mais nada na vida. Se uma pessoa se especializar pode ter uma vida cheia e realizada, sem prestar contas a ninguém. Diz-se que não dá dinheiro nenhum… Os cursos foram acabando ou baixando a qualidade porque não houve investimento.

Esse é o seu curso não é?
Sim. Perguntaram ao Boris Johnson para que é que serve um curso de filosofia clássica, ao que ele respondeu: “para ser primeiro-ministro de Inglaterra”. Esses cursos muito especializados vão contra o conceito de universidade, que é ter uma visão geral das coisas, como o Leonardo Da Vinci, que sabia um pouco de tudo. Às vezes oiço os especialistas a falar… não era capaz de ter uma vida assim. É muito redutor. Julgam que estão certos, mas não há nada melhor do que ter mundo, perceber a história das coisas. Há quem a queira apagar agora, não pode ser. Fará sempre parte de nós e da alma de um país.

Está a referir-se a algum revisionismo histórico até na área da cultura, como nos filmes. Também sente isso nos livros?
Separo a vida pessoal da obra. Essa é uma das chaves para ter continuado o trabalho com o meu pai. Como esteve preso, criou situações difíceis de entender. O truque foi tê-lo aceitado como pai, apesar dos ressentimentos, mas também como uma pessoa com enormes qualidades e com defeitos difíceis de suportar. Demorou anos. Como sabia da sua sensibilidade, tentei compreender, é um processo de redenção pura, dando tudo o que tenho para aqui. Intensificou-se mais quando adoeceu, tive o cuidado de o ir buscar todos os dias a casa, num terceiro andar sem elevador, porque sabia que gostava de estar aqui, mesmo já não conseguindo ver os livros. Mesmo sabendo que era muito difícil ver que já não tinha as faculdades todas. Depois tive a recompensa. Nesse processo, uma vez no corredor virou-se para mim e disse: “já não consigo vir mais, quero agradecer todos estes anos, só te peço que não falte nada à tua mãe até ao fim”. Custou-lhe fazê-lo. Quando o disse, deu-me o primeiro abraço a sério na vida. Essa é a coisa mais valiosa que tenho, não há dinheiro que o pague. Esperei anos, foram muitos. Cumpri com o pedido. Deu-me muita força para continuar.

Conseguir isso demora uma vida inteira.
Desde pequenino que sabia que ia ter uma missão ao lado dele. Sabia que ele ia precisar dessa ajuda.

Retomando a conversa da revisão histórica: deduzo que não concorde.
Há um enorme exagero, falando do politicamente correto. Muita gente exalta-se nas redes sociais, mais gente jovem. A culpa não é delas, é do sistema educativo que tem vindo a ser facilitado. Não dão bem as coisas. Os professores são mal tratados. Hoje há um certo desinteresse pela História. Nunca mais ouvi falar dos professores que marcaram imenso, como o Vergílio Ferreira no Liceu Camões. Tinham amor ao que faziam. Sabiam relacionar aspetos maus, hoje impensáveis, à luz daquela época. É importante saber-se o que se passou para vermos como evoluímos enquanto espécies e sociedades. Está-se a chegar a um termo em que não se pode dizer nada. Não consigo entender, não consigo. Podem ferir suscetibilidades, mas é preciso compreender o pensamento da época. Nem sei que lhe diga, estou cansado.

Voltando a Alcobaça. Como está o objetivo do Centro de Estudos?
O meu pai tem a maior biblioteca de Cister em Alcobaça. Sei o que falta comprar, tenho os seus apontamentos. Sempre me falou nisso, mas enquanto não estiverem reunidas as condições para o fazer, com dignidade, num local apropriado, vou continuar a completar a coleção. Agora estão a fazer obras gerais no Mosteiro. Também não há muito dinheiro para a cultura, como se sabe. Nem é por causa do dinheiro, nunca irei vender esta história de amor, de duas gerações. Não se consegue transpor num valor, não consigo. É um conjunto único. Os livros antigos vão sendo cada vez mais raros e difíceis de apanhar.

"Se um filho meu quiser seguir isto, tudo bem, mas terá de partir dele. E sei que não é fácil fazer ver que isto é uma profissão de futuro. Mas é, se for bem feito. Escrever bem os livros, compreender o passado, saber o que estamos a tratar. E tenho clientes em todo o mundo. Demora muitos anos. É um trabalho contínuo até ao fim. Um livreiro nunca sabe tudo."

Está lá?
Está cá. Esteve, mas regressou. Enquanto não houver as condições e vontade local para fazer algo como deve ser, porque é preciso condições para os livros estarem bem preservados, vou continuar a completar a coleção. Quero fazer tudo com calma. Tem de ficar escrito, bem clarificado, para aquilo não morrer. Há quem deixe obras à biblioteca X ou Y e, muitas vezes, deixam as caixas fechadas, acaba por se estragar tudo. Não querem trabalhar com a arrumação e catalogação, meter aquilo a funcionar de maneira que seja fácil para os estudiosos irem lá.

O seu pai passou-lhe o testemunho desta livraria. O Bernardo já ponderou essa passagem?
Já falei nisso a algumas pessoas. Muitas livrarias acabaram quando o livreiro morreu. Poucas tiveram a sorte de terem um filho que seguisse as pisadas do pai. E olhe que é difícil viver à sombra de alguém tão carismático como o meu pai. Daí ter sido importante fazer os tais catálogos, fazendo o melhor trabalho possível. Mas não vou pensar nisso, porque o meu pai nunca me forçou a ficar aqui. Também não o vou fazer à minha filha ou a outra pessoa. Se tiver de acabar, acaba. Aliás, é transversal em todo o mundo. Toda a nossa história foi pautada por tudo ter sido feito com amor e o melhor que conseguíamos. Essa é a chave para não me sentir amargurado se isto acabar um dia. Se um filho meu quiser seguir isto, tudo bem, mas terá de partir dele. E sei que não é fácil fazer ver que isto é uma profissão de futuro. Mas é, se for bem feito. Escrever bem os livros, compreender o passado, saber o que estamos a tratar. E tenho clientes em todo o mundo. Demora muitos anos. Este é um trabalho contínuo, até ao fim. Um livreiro nunca sabe tudo.


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