* António Guerreiro
8 de Março de 2019, 10:58
o
A sua classe é a dos homens mais ricos de
Portugal, o que suscita invejas sem classe, como a dos que lhe chamam
merceeiro, apoucando assim o dono do Pingo Doce e os seus balcões, fazendo dele
uma figura com mundividência de bairro e contas feitas em papel pardo, por
muitos zeros que tenham as somas finais. Na semana passada, Alexandre Soares
dos Santos mostrou não só que tem uma aguda consciência das classes, da sua e
da dos que ele tutela, mas também que faz dessa consciência uma força
revolucionária: “Os pobres fizeram-se para a gente os transformar em classe
média”, disse ele, ao Observador,
numa “entrevista de vida”, um género que no jargão jornalístico designa a
recitação, pelo entrevistado, do seu curriculum
vitae, perante um jornalista extasiado com tanta vida do interlocutor .
Livro
de recitações
“Há mais políticos com contratos permanentes nos media do que lugares
na maior bancada parlamentar da Assembleia da República”
Rosa Pedroso Lima, in Expresso, 2/3/2019
Estes números confirmam a
existência de uma nova classe que, na linguagem dos seus detractores, é a
classe político-mediática. Evidentemente, ela também supõe a reversibilidade: a
classe mediático-política. Quando já não houver mais nada para além da lei
deste hífen, teremos atingido um estado homogéneo que se configura como uma
nova versão do fim da História, isto é, do fim da política e do fim do
jornalismo. O processo não se deu por invasão, mas por hospitalidade, o que o
tornou mais sereno e eficaz. A pouco e pouco, os media transformaram-se em
rampas de lançamento para políticos voadores, ou em estâncias de retiro para
engordar reformas e cultivar prestígios de políticos opulentos. O espaço
público mediático povoado por uma tagarelice política que funciona em circuito
fechado, eis o nosso destino. A esta classe hifenizada devemos fazer a pergunta:
quem são os políticos e quem são os jornalistas?
O entrevistado, por modéstia, diz “a gente”,
mas é apenas uma maneira de dizer “nós, os líderes”. E ao dizê-lo tinha
certamente em mente a pergunta que John Locke fez em 1697, numa exposição
escrita que apresentou no Ministério do Comércio: “O que fazer dos pobres?”.
Como resposta, o filósofo propunha algumas soluções plausíveis. A primeira,
condição indispensável para a realização de todas as outras, consistia em “pôr
os pobres a trabalhar”, retirá-los do vício e da ociosidade, o que limitaria
desde logo a sua inclinação para o deboche. Mais de três séculos depois, a
pergunta não perdeu pertinência e continua a ser formulada nas cúpulas, onde o
imperativo é operare, fazer obra, sempre fazer: o que fazer então dos pobres,
hoje? A resposta, agora, pinga mais doce: transformá-los obviamente em classe
média, de acordo com o movimento inexorável da História, à escala planetária.
Quem o diz não tem apenas consciência das classes, e não foi em rolos de papel
pardo que leu que o conceito de classe estabelece uma ligação entre sociedade e
natureza e organiza um sistema coerente da vida social; quem o diz tem também
iluminações da psicologia social. E sabe que a classe média é uma criação
(aliás, tardia; há mesmo quem diga que ela só foi inventada para alimentar a sociedade
de consumo) e resulta de um processo de transformação que se pretende
irreversível: ascende-se à classe média e nunca mais se quer voltar à origem.
Mesmo que se desça nos critérios materiais, o ethos da mediania de classe ficou inculcado e não se apaga.
Mas ficar lá para sempre também não basta, não traz a alegria que se esperava.
A classe média tem a superstição de um sucesso que depois não existe de facto.
E isso só engendra medos e discordâncias em relação ao ambiente social. No
fundo, mesmo que não o admita nem o racionalize desta maneira, a classe média
tem complexos de pobreza intelectual. E não tem nada de fascinante pertencer à
classe média. Por isso é que não há tanta generosidade como parece, nem tanto
progresso como insinua, neste homem rico do Pingo Doce que transforma a
matéria-prima pobre em mercadoria medianamente enriquecida. Na verdade, nenhum
pobre alguma vez disse que queria chegar à classe média. Os pobres, todos os
pobres de todos os tempos e latitudes, o que dizem é que querem ser ricos, sem
terem de passar pelas etapas medianas, medíocres, onde ficam sujeitos a um
olhar que sempre os relativiza: ora são considerados ricos porque estão além do
limiar dos pobres; ora são considerados pobres porque estão abaixo dos ricos.
Esta classe média que era pobre antes de se tornar média, se mora na Bobadela
não quer ir morar para os Olivais. Quer é instalar-se em Nova Iorque. Mas isto
não percebe, ou não quer perceber, o homem que é dos mais ricos de Portugal, a
quem se deve a transformação virtuosa dos seus pobres já não em pobrezinhos,
como fazia outrora a classe abastada, mas em classe média. Ele faz questão de
afirmar que tem nas suas mãos os comandos do ascensor social (ou diz-se antes
elevador?), deixa bem claro que essa deslocação vertical é por ele controlada e
tutelada. Sem ele, sem “a gente”, dos pobres nada feito. Que assim seja, é
motivo de regozijo e não justifica mais exigências. Para se sentir
privilegiada, menos exigente e menos fatigada, a classe média só tem de visitar
todos os dias os pobres na televisão.
12 COMENTÁRIOS
1.
Aqui mesmo08.03.2019 20:17
Para quem gosta de pensar as pessoas em termos de classe poderá ser um
texto interessante para ler. E quem gosta de pensar as pessoas em termos de
classe não são os pobres. Estes podem-no fazer por razões de luta, não evocam
as classes sociais pelo prazer que isso lhes dá. Uma pessoa está muito para lá
destas qualificações que são próprias de quem tem uma visão determinista da
sociedade.
Portugal08.03.2019 19:25
A frase é realmente chocante (“Os pobres fizeram-se para a gente os transformar
em classe média"), tão chocante quanto aquela outra: "brincamos aos
pobrezinhos" na Herdade da Comporta, propriedade de uma família que só
aparentemente caiu em desgraça na praça pública. Mas esta última
"pérola" parece bem mais ardilosa, por estar de acordo com o
zeitgeist predador e totalitário que é o nosso presente. Afinal, se eu quiser,
não poderei regredir triunfalmente de classe? Não poderei sequer propor-me a
tal? E logo eu que não compro há quase dez anos no PD!
2.
08.03.2019 19:23
O merceeiro do pingo doce referia-se aos pobres portugueses que ele e
outros como ele fazem com gosto e alta eficiência diária. Ainda hoje Ferraz da
Costa, esse intelectual de cepa, avisava que há muitos a ganhar demais. Os
fazedores de pobres gostam de ser eficazes cortando o salário, reformas,
pensões, prestações sociais, não o atualizando salários, congelando progressões
nas carreiras e denunciando unilateralmente a contratação coletiva. Isso é a
política oficial da UE/BCE e está em curso em Portugal pela ação do "arco
da governação" PS, PSD, CDS que ocupam 100% dos cargos de gestão das instituições
e empresas públicas e privadas. O problema do merceeiro é ter observado que,
por mais promoções que faça, não vende mais por causa dos pobres terem a
característica de não terem dinheiro.
3.
Porto08.03.2019 18:21
O texto tem tido diferentes interpretações dignas de Freud. Muito bom
mesmo. Pelo texto e pelo que faz pensar (revelar) certas pessoas
4.
08.03.2019 17:15
Depois de meia dúzia de anos sem ir a Londres, voltei lá na semana
passada. Voltei lá e voltei para cá doente incomodado com tantos e tantos
sem-abrigo. Muita gente nova, com menos de 30 anos.
5.
08.03.2019 16:46
Este texto é mesmo muito bom. Até que enfim que apareceu alguém para
comentar aquela frase. Soberbo. Parabéns
1.
6.
évora08.03.2019 13:38
o truque retórico favorito do opinante das sextas resume-se a descrever
rigorosamente os factos e os valores da ascensão social da pobreza aos
'remediados', na sua história planetária, mas pôr nisso o tom escarninho do
menino-mais-espertinho-que-os-outros-que-os-está-a-gozar-durante-o-recreio.
Sinto aqui um tique retardado de adolescente. Claro que os ricos o querem ser
mais, e o que os pobres querem é serem mais ricos ainda do que isso: o que
julga o ás que é o euromilhões, feito de encomenda para a classe média? O ás
não percebe que pertencer a uma classe é pertencer ao struggle aspiracional que
mistifica, aliena e conserva em tensão superativa essa classe (sobretudo a
classe média, em q o dispositivo foi afinado à perfeição). Se ele fosse pobre,
calava mas era a boca e ia ao pingo doce.
1.
évora08.03.2019 13:46
Que julga AG que é a China? Um pingo dulcíssimo a ser papado por uma
classe média robusta galvanizada para essa espiral progressiva de
produção-consumo (o mesmo hífen que explica o incesto dos poderes, na coluneta
lateral) que atira o país para superpotência. Se tivesse um pouco mais de vida,
era isso que o merceeiro teria dito: estamos aqui a tornar as nações europeias
integradas em superpotência, graça ao embaratecimento da produção e
distribuição em massa, que permite converter a pobreza económica em remediação
social mediante o encontro de todos no consumo dessa ‘coca-cola’ igual para o presidente
e para o varredor. O que lixa o esquerdismo do AG é que essa classe média é a
burguesia triunfante. É essa humilhante aurea mediocritas q ele não perdoa.
Porque é rico - e 'rico intelectual'.
7.
Porto08.03.2019 12:23
Este artigo não é uma opinião, é um manifesto de alguém que vai morrer
a pensar coisas como essa da classe média ter sido "inventada para alimentar
a sociedade de consumo", como a de que “pôr os pobres a trabalhar” é para
os impedir do "deboche". Pensava eu que viver na ociosidade à custa
dos outros era algo que os comunistas abominavam, mas afinal não. Pode-se
afinal não trabalhar e consumir. O que é preciso mesmo, é acabar com esses que
têm a mania de ser classe média, acabar com todos os ricos substituindo-os por
funcionários do partido para colocarem os pobres a trabalhar de maneira a que
os funcionários vivam bem.
8.
9.
C. PIEDADE ALMADA08.03.2019
11:52
Classe média, - 700 euros por mês ao fim de +30 anos de trabalho nessa
cadeia de mercearias?! Será que o sr. ensandeceu já? E, hoje o presidente do
Fórum para a Competitividade, Pedro Ferraz da Costa, diz /muitas pessoas
ar´ganham mais do que deviam" ...Lamentavelmente esqueceu-se de dizer que
devia ser a começar por ele e seus congéneres.
Sem comentários:
Enviar um comentário