segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Sá de Miranda - sonetos, redondilhas e uma carta





REDONDILHAS

1
Ó meus castelos de vento
que em tal cuita me pusestes,
como me vos desfizestes!


Armei castelos erguidos,
esteve a fortuna queda,
e disse:– Gostos perdidos,
como is a dar tão grã queda!
Mas, oh! fraco entendimento!
em que parte vos pusestes
que então me não socorrestes?


Caístes-me tão asinha
caíram as esperanças;
isto não foram mudanças,
mas foram a morte minha.
Castelos sem fundamento,
quanto que me prometestes.
quanto que me falecestes!




2
Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim.


Com dor, da gente fugia,
antes que esta assi crecesse;
agora já fugiria
de mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
do vão trabalho que sigo,
pois que trago a mim comigo,
tamanho imigo de mim?




SONETOS

1
O sol é grande: caem coa calma as aves,
Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que de alto cai acordar-me-ia,
Do sono não, mas de cuidados graves.


Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
Qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.


Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam de amores.


Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
Também mudando-me eu fiz doutras cores.
E tudo o mais renova: isto é sem cura!



2
Aquela fé tão clara e verdadeira,
A vontade tão limpa e tão sem mágoa,
Tantas vezes provada em viva frágua
De fogo, i apurada, e sempre inteira;


Aquela confiança, de maneira
Que encheu de fogo o peito, os olhos de água,
Por que eu ledo passei por tanta mágoa,
Culpa primeira minha e derradeira,


De que me aproveitou? Não de al por certo
Que dum só nome tão leve e tão vão,
Custoso ao rosto, tão custoso à vida.


Dei de mim que falar ao longe e ao perto;
E já assi se consola a alma perdida,


Se não achar piedade, ache perdão.


SONETO

Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho, 
e vejo o que não vi nunca, nem cri 
que houvesse cá, recolhe-se a alma a si
e vou tresvaliando, como em sonho. 

Isto passado, quando me desponho, 
e me quero afirmar se foi assi, 
pasmado e duvidoso do que vi, 
m'espanto às vezes, outras m'avergonho. 

Que, tornando ante vós, senhora, tal, 
Quando m'era mister tant' outr' ajuda, 
de que me valerei, se alma não val? 

Esperando por ela que me acuda, 
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.


Soneto


O sol é grande, caem coa calma as aves, Do tempo em tal sazão que sói ser fria: Esta água, que d'alto cai, acordar-me-ia, Do sono não, mas de cuidados graves. Ó coisas todas vãs, todas mudaves, Qual é o coração que em vós confia? Passando um dia vai, passa outro dia, Incertos todos mais que ao vento as naves! Eu vi já por aqui sombras e flores, Vi águas, e vi fontes, vi verdura; As aves vi cantar todas d'amores. Mudo e seco é já tudo; e de mistura, Também fazendo-me eu fui doutras cores; E tudo o mais renova, isto é sem cura.


Carta

Rei de muitos reis, se um dia, Se uma hora só mal me atrevo Ocupar-vos, mal faria, E ao bem comum não teria Os respeitos que ter devo. Que em outras partes da esfera, Em outros céus diferentes, Que Deus até agora escondera, Tanta multidão de gentes Vossos mandados espera. Que sois vós tal, que eles sós, justo e poderoso rei, Ou lhe desdais os seus nós, Ou cortais; porque entre nós Vós sois nossa viva lei. Onde há homens há cobiça, Cá e lá, tudo ela empeça, Se a santa, se a igual justiça Não corta, ou não desempena O que a má malícia enliça. Senhor, que é muito atrevida, E onde ela nós cegos deu, Cortar é coisa devida; Exemplo o justo de Mida, Que el-rei vosso avô fez seu. Ora eu, que respeito havendo Ao tempo, mais que ao estilo, Irei fugindo ao que entendo; Farei como os cães do Nilo, Que correm, e vão bebendo. A dignidade real, Que o mundo a direito tem, Sem ela ter-se-ia mal, É sagrada, e não leal quem limpo ante ela não vem. Não falemos nos tiranos, Falemos nos reis ungidos; Remedeiam nossos danos; Socorrem os afligidos; Cortam pelos maus enganos. As vossas velas, que vão, Dando quase ó mundo volta, Raramente contarão Gente doutro algum rei solta; Sem cabeça o corpo é vão. Dignidade alta e suprema, Que há que a não reconheça? Viu-se em Marco Antônio tema De pôr real diadema A César sobre a cabeça. Que nome de imperador Dantes a César se dera Sem suspeita, e sem temor; Que inda então muito mais era Ser cônsul, ser ditador. Um rei ao reino convém; Vemos que alumia o mundo; Um sol, um Deus o sustém: Certa a queda, e o fim tem O reino onde há rei segundo. Não ao sabor das orelhas, Arenga estudada e branda; Abastam as razões velhas: A cabeça os membros manda; Seu rei seguem as abelhas. A tempo o bom rei perdoa; A tempo o ferro é mezinha: Forças e condição boa Deram ao leão coroa De sua grei montezinha. Às aves, tamanho bando Doutra liga, e doutra lei, Por vencer todas voando, A águia foi dada por rei, Que o sol claro atura olhando. Quanto que sempre guardou David lealdade e fé A Saul, quanto o chorou! Quanta maldição lançou Aos montes de Gelboé! Onde caíra o escudo De seu rei, inda que inimigo, Inda que já mal sisudo Saindo de tal perigo, E subindo a mandar tudo. O senhor da natureza, De quem céu e terra é cheia, Vindo a esta nossa baixeza, Do real sangue se preza: Por rei na cruz se nomeia. Sobre obrigações tamanhas Velem-se contudo os reis Dos rostos falsos, das manhas Com que lhe querem das leis, Fazer teias das aranhas. Oue se não pode fazer Por arte, por força ou graça, Salvo o que a justiça quer; Senhor, não chamam valer, Salvo ao que lhes val na praça. E por muito que os reis olhem, Vão por fora mil inchaços, Que ante vós, senhor, se encolhem Duns gigantes de cem braços Com que dão, e com que tolhem. Quem graça ante el-rei alcança, E lhe fala o que não deve, Mal grande da má privança, Peçonha na fonte lança, De que toda a terra breve. Quem joga, onde engano vai, Em vão corre e torna atrás; Em vão sobre a face cai: Mal hajam as manhas más Donde tanto dano sai! Homem de um só parecer, Dum só rosto, uma só fé, Dantes quebrar que torcer, Ele tudo pode ser, Mas de corte homem não é. Gracejar ouço de cá De quem vai inteiro e são, Nem se contrafaz mais lá; Como este vem aldeão, Que cortesão tornará? As santidades da praça, Aqueles rostos tristonhos, Cos quais este, e aquele caça; Para Deus, senhor, é graça; Para nós tudo são sonhos. E os discursos que fazemos, Pode ser, não pode ser, Mais diante o entenderemos: Agora mortos por ver; Então todos nós veremos. Senhor, hei-vos de falar (Vossa mansidão me esforça) Claro o que posso alcançar; Andam para vos tomar Por manhas, que não por força. Por minas trazem suas azes Os rostos de tintureiros, Falsas guerras, falsas pazes; De fora mansos cordeiros; De dentro lobos roazes. Tudo seu remédio tem E que assim bem o sabeis, E ao remédio também; Querei-los conhecer bem, No fruto os conhecereis. Obras, que palavras não: Porém, senhor, somos muitos, E entre tanta multidão Tresmalham-se-vos os frutos, Que não sabeis cujos são. Um que por outro se vende, Lança a pedra, e a mão esconde; O dano longe se estende; Aquele a quem dói e entende, Com só suspiros responde. A vida desaparece, E entretanto geme e jaz O que caiu: e acontece, Que dum mal, que se lhe faz, Outro mor se lhe recresce. Pena e galardão igual O mundo a direito tem, A uma regra geral; Que a pena se deve ao mal, E o galardão ao bem. Se alguma hora aconteceu Na paz, muito mais na guerra, Que a balança mais pendeu, Faz-se engano às leis da terra; Nunca se faz às do céu. Entre os lombardos havia Lei escrita, e lei usada, Como se sabe hoje em dia; Que onde a prova falecia, Que o provasse a espada. Ali no campo às singelas, Enfim morrer ou vencer, Fosse qual quisesse delas: Não era melhor morrer A ferro, que de cautelas? Ao nosso alto e excelente Dom Dinis, rei tão louvado, Tão justo, a Deus tão temente, Falsa e maliciosamente, Foi grande aleive assacado. Ele posto em tal perigo, Rei que rei fez e desfez; Contra o malicioso inimigo, Foi-lhe forçado esta vez Chamar-se a esta lei que digo. E juntamente às cidades A quem cumpriu de acudir, Pelas suas lealdades: Que tão más são as verdades Às vezes de descobrir! Neste tempo quem mal cai, Mal jaz; e dizem que à luz Por tempo a verdade sai; Entretanto põem na cruz O justo, o ladrão se vai. Da mesma casa real, Em verdade um grande infante Tratado às escuras mal, Bradava por campo igual, E inimigos claros diante. Enfim vendo a indústria e arte Quanto que podem, chamou Um leal conde de parte; Só com ele se apartou; Foi viver a melhor parte. Onde tudo é certo e claro, Onde são sempre umas leis; Príncipe no mundo raro, Sobre tanto desamparo Foram três seus filhos reis. Ó senhor! quantos suores Passa o corpo e alma em vão Em poder de envolvedores! Enfim, batalhas que são? Salvo desafios mores. Com a mão sobre um ouvido Ouvia Alexandre as partes, Como quem tinha entendido, Por fazer certo o fingido, Quantas que se buscam d'artes. Guardava ele o outro inteiro A parte não inda ouvida: Não vai nada em ser primeiro: Quem muito sabe duvida; Só Deus é o verdadeiro. A tudo dão novas cores Com que enleiam os sentidos: Ah maus! ah enliçadores! Ante os reis vossos senhores, Andais com rostos fingidos! Contais, gabais, estendeis Serviços e lealdades: olhai que não os daneis: Falai em tudo verdades A quem em tudo as deveis. Senhor, nosso padre Adão Pecou, chamou-o o juiz, Tenha que dizer ou não; E sua fraca razão, Porém livremente diz. Sempre foi, sempre há de ser, Que onde uma só parte fala, Que a outra haja de gemer: Se um jogo a todos iguala, As leis que devem fazer? Vidas e honras guardais Debaixo de vosso amparo De estranhos e naturais; Suspiram, não podem mais, E às vezes não muito claro. Também após aquela arde A cobiça da fazenda Por mais que se vele e guarde; Tinha ela melhor emenda Se não fosse mal e tarde. Geralmente é presunçosa Espanha, e disso se preza, Gente ousada e belicosa, Culpam-na de cobiçosa: Tudo sabe vossa alteza. Pensamentos nunca cheios, Não têm fundo aqueles sacos; Inda mal, porque têm meios Para viver dos mais fracos, E dos suores alheios. Que eu vejo nos povoados Muitos dos salteadores, Com nome e rosto de honrados? Andar quentes e forrados Das peles dos lavradores. E, senhor, não me creiais Se as não acham mais finas, Que as de lobos cervais, Que arminhos, que zebelinas, Custam menos, cobrem mais. Ah senhor! que vos direi Que acode mais vento às velas; Nunca se descuide o rei; Que inda não é feita a lei, Já lhe são feitas cautelas. Então tristes das mulheres, Tristes dos órfãos coitados, E a pobreza dos misteres, Quem nem falar são ousados Diante os mores poderes. Os quais quem os assim quer, Quem os negocia assim, Que fará quando os tiver? Nossos houveram de ser; Tomaram-nos para si. Ora já que as consciências O tempo as levou consigo, Venhamos às penitências, Senhor, se eu vira castigo Boas são as residências. Mas eu vejo cá na aldeia Nos enterros abastados, Muito padre que passeia, Enfim, ventre e bolsa cheia Absoltos de seus pecados. Se se hão de reconciliar, Uns cos outros têm seu trato; Basta-lhes só acenar: Não nos fazem tão barato Ao tempo de confessar Senhor, esta vossa vara Em quais mãos anda, tal é: A boa é ave mui rara; Sabei que esta nunca é cara, Que seja muita a mercê. Livre de toda cobiça, A Deus temente, e a vós, Sem respeito, e sem preguiça, Vara direita sem nós, Se quereis que haja justiça. Tomai, senhor, o conselho Do bom Getro ao genro amigo: É verdade, é evangelho, (Como disse aquele velho) Humildemente vos digo. Que estas leis justinianas, Se não há quem as bem reja, Fora de paixões humanas, São um campo de peleja Com razões francas e ufanas. Morre o nobre Conradino Co parceiro em tudo igual: Cada um de morte indino, Pelo pesado ou malino Doutor, que interpreta mal. Diz o texto: "O sangue cesse; Por batalha a guerra finda." Vem com grosa outro interesse; Diz que ande o cutelo, ainda Que em prisão certo o tivesse. Mas, senhor, melhor o temos Sendo vós o que mandais: Todos nós revolveremos, Os que tanto não podemos, E aqueles que podem mais. Que por amor se encadeia, (Não é nome errado ou novo) Se por livre se nomeia; Não tem rei amor de povo Tanto, em quanto o mar rodeia. Aqui não vemos soldados; Aqui não soa o tambor; Outros reis, os seus estados Guardam de armas rodeados, Vós rodeado de amor. Achar-nos-ão as divinas No meio dos corações Entalhadas vossas Quinas: Estas são as guarnições De vós, e dos vossos dinas. Tem na verdade o francês A seu rei amor aceso; Não lho nega o português; Porém traz guarda escocês, Que não é de pouco peso. O padre-santo assim faz, A quem certo se devia Alto assossego, alta paz; Mas tem guarda, todavia, Com que vai seguro e jaz. Que se pode ir mais avante, Com quanto alcança o sentido Sem ferro, ou fogo que espante: Com duas canas diante És amado, e és temido. Uns sobre os outros corremos A morrer por vós com gosto: Grandes testemunhas temos Com que mãos, e com que rosto Por Deus, e por vós morremos. Outrossim para os reveses (Queira Deus que não releve) Em vós têm os portugueses O bom rei de atenienses Codro, que outrem algum não teve. Do vosso nome um grão rei Neste reino lusitano, Se pôs esta mesma lei, Que diz o seu pelicano: Pola lei, e pola grei. Mas eu sou duns guarda-cabras Que se vão de ponto em ponto; Querem só duas palavras; Que dos gados, que das lavras Depois não tem fim, nem conto. Assim que seja aqui fim; Tornem as práticas vivas; Perdestes meia hora em mim, Das que chamam sucessivas Estes que sabem latim.

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