segunda-feira, 3 de setembro de 2012

João Aguiar - A voz dos deuses


Da voz aos Deuses (João Aguiar, “A voz dos deuses”, 1984)

«Não é de ânimo leve que um homem, mesmo corajoso, se acerca de uma necrópole durante a noite, pois nunca se sabe que espíritos ou entidades errantes poderão andar em tais lugares. No entanto, decidi arriscar um encontro com os mortos porque os vivos, naquela altura, podiam ser mais perigosos; a praia que fica próxima da velha necrópole cartaginesa de Gadir era um lugar abrigado e solitário onde seria possível aguardar o embarque em segurança.
Bem abafados contra o ar nocturno, esperámos sentados na areia fria. O mar ali é sempre sereno e o barulho das ondas reduzia-se a um chapinhar surdo, mas o ar estava cheio de murmúrios. Mantivemo-nos calados para não atrair a atenção dos defuntos.
Finalmente, ouvimos o ruído de remos ferindo a água e uma pequena embarcação tornou-se visível e aproximou-se até encalhar quase silenciosamente. Fui ao encontro do seu único tripulante, que me olhou com atenção, como para ter a certeza de que eu era um ser de carne e osso, e pronunciou a senha combinada: «Eunois».»
Introduzo, previamente, o esclarecimento de que considero o romance que apresento, A Voz dos Deuses, de leitura obrigatória.
O meu interesse pessoalpela obra surgiu a par da recolha de informação sobre Viriato, o mítico líder da Lusitânia. De facto, esta obra literária submete-nos à necessidade de visitar o século II a.C., altura em que a Península Ibérica se encontrava dividida em diversas tribos desunidas que pelejavam arduamente contra a ânsia romana de dominá-las sob o comando e a influência de Viriato.
Trata-se de um clássico romance histórico contemporâneo que ficciona a vida deste comandante dos exércitos peninsulares, do II século a.C., que evita que os Romanos esmaguem as tribos da Ibéria durante os sete anos que nela prevalecem as suas tropas. João Aguiar leva-nos a admirar um Viriato homem de valores, comandante incontestado, magnífico estratega militar e diplomático com uma componente humana quase invulgar para a época.
O narrador Tôngio, velho sacerdote do Templo de Endovélico (um dos principais do culto ibérico à época a que a narrativa nos remete) conta, chegando ao final da sua vida, a forma como nasceu, cresceu e viveu numa Península Ibérica invadida pelos Romanos, na tentativa de expandirem o seu Império até ao Atlântico. Deambulando pela Península, encontra Viriato, figura famosa de que todos estamos habituados a ouvir falar desde sempre e a quem é dado o epíteto de fundador, mais mítico que histórico, da nacionalidade portuguesa.
Publicado pela primeira vez em 1984 é, actualmente considerado, o livro mais relevante sobre Viriato, escrito em Língua Portuguesa no século XX. Tal reconhecimento deve-se ao rigor histórico fruto de documentação antiga, estudos arqueológicos e etnográficos e, como não poderia deixar de ser, pelo acolhimento efervescente dos leitores.
Neste seu primeiro romance João Aguiar adverte, inicialmente, para o facto de se propor retratar o Viriato não mítico e tradicionalmente conhecido, mas o Viriato famoso e factual que assenta naquilo que se pode extrair dos documentos históricos misturados em tom de ficção. Porém, é curioso verificar que os planos iniciais do autor tomam rumos paradoxais, dando-nos, ele próprio, a conhecer Viriato como o herói romantizado admirado que almejava ser rei da Ibéria; o exímio general; o diplomata exemplar, sóbrio no que concernia a reclamar para si os espólios da guerra; o marido fidelíssimo à mulher, e tudo o que de resto o tornava… Lendariamente exemplar e insubstituível na História da Península Ibérica, naquilo que foi a antecâmara do que mais tarde viria a ser Portugal e Espanha. – «Muitas coisas, verdadeiras e falsas, foram ditas sobre Viriato. Como acontece com todos os grandes homens, ele transformou-se numa lenda e as lendas, regra geral, são injustas mesmo para aqueles que pretendem glorificar. Por exemplo: ouvi não poucos disparates e exageros sobre a força e a bravura do Comandante (ele era um herói, não um deus); em contrapartida, ficaram esquecidos, por menos espectaculares, verdadeiros prodígios de estratégia, diplomacia e eloquência.» (p. 248).
No entanto, é de notar que Viriato apesar de apresentado como um grande homem e líder, por natureza, capaz de unir ao máximo o povo da Ibéria até então habituado a lutar contra si próprio e não a combater o inimigo comum, não é comparado a um Deus.
Esquecendo as descrições mais pormenorizadas das batalhas ao estilo, por exemplo, de Cornwell, que neste romance passam um pouco a correr, aquilo que verdadeiramente predomina é a narração inteligente do “reinado”, que não chegou a ser de Viriato, por alguém que combateu a seu lado. Presumivelmente, se o autor descrevesse exaustivamente as contendas, teria que produzir não um livro, mas talvez uma saga, pois haveria muitíssimo para dizer.
Ainda assim, nada ficou por dizer. A Voz dos Deuses conduz-nos, irrepreensivelmente, até ao ambiente que se vivia na hoste de Viriato, apresenta-nos as tradições e os costumes dos povos, os deuses em que acreditavam, as privações e os sacrifícios que sofreram e as divindades que habitavam o Monte da Lua e o seu significado.
João Aguiar tem um estilo de escrita que desejo a qualquer leitor: limpa e coerente, capaz de inspirar e acorrentar o foco de atenção desde a primeira à última página. Criador de uma toponímia, por vezes, muito pormenorizada e própria, substancialmente diferente, a sua explicação consta no final do livro.
Pesquisando, encontrei relação entre o primeiro romance do escritor João Aguiar e aprimeira sinfonia do maestro e compositor Jorge Salgueiro, de 1992. Inspirando-se na obra literária de 1984, Salgueiro concebeu uma composição musical muito profunda e sugestiva de sons já pré-existentes nas palavras eternizadas em A Voz dos Deuses, por João Aguiar, a que cortesmente denominou Sinfonia nº1 – A Voz dos Deuses.
Desde sempre a literatura e a música estão intimamente ligadas e este é facto empolgante. Se muitas vezes é a música que origina a história, noutros casos é a história que faz acordar a música das palavras, entre as cordas e os metais. Escutando-a, como leiga que sou, e tendo a certeza de que a música é primordialmente composta para os leigos, consegui fugir para o meu campo de imaginação pessoal, de leitora e de ser humano, cidadã do mundo. Então, encontrei realmente os sons dos exércitos peninsulares em riste, encontrei o sentimento de ser luso, e encontrei a “poção mágica” que permite a mitificação do herói e, tudo isto… sentido, com os ouvidos.
Aconselho, vivamente, a leitura de A Voz dos Deuses porque nos proporciona um conhecimento da “pré-História” do nosso país que é, em jeito de romance, poucas vezes, assunto em voga. Contando a história, apoiado em material fidedigno, de um dos construtores da realidade ibérica de uma forma inovadora, isso traduz-se numa boa visão dos costumes, rituais e da política e religião dos povos peninsulares abrindo horizontes para se pensar no que será, realmente, ser português no verdadeiro sentido da expressão. É esse o rumo, o fio condutor, das aulas de Português deste último ano do ensino secundário: saber compreender que foi baseado no plano da memória e da esperança que os povos expandiram as suas tropas, a sua língua e a sua literatura ainda que, muitas vezes, a utopia origine concepções diferentes do heroísmo.
É, ainda, similar, nesta obra de Aguiar e na Mensagem de Pessoa, o ocultismo de um Império entrevisto no futuro como uma aventura do espírito, uma viagem sem fronteiras ou franquias, apenas movida pelo amor do que é diverso e pela inquietação da insatisfação humana constante. Se não vejamos, é o épico que propõe imortalizar a aristocracia tendo a consciência de promover uma revolução urgente no mundo, em ambas as obras, atribuindo-lhe um significado político, religioso, científico e não meramente histórico-narrável.
Leonor Gonçalves, 12º C, 2012


Quarta-feira, 31 de Outubro de 2007


A voz dos Deuses, João Aguiar


É o segundo livro que li de João Aguiar, li há tempos o Navegador Solitário que recomendo vivamente. Há uns meses a pesquisar na net sobre Viriato e as obras que invocam o mítico lider da Lusitânia que combateu o domínio romano durante aproximadamente 9 anos, descobri que João Aguiar escrevera um romance histórico sobre o assunto, fiquei com a pulga atrás da orelha e a semana passada ao passear numa livraria encontrei o dito.
Posso dizer que gostei muito, estou habituado a uma descrição mais pormenorizada das batalhas, fruto de muitos livros de Cornwell, o que nesta obra falha um pouco, mas se por um lado as batalhas passam um pouco a correr, por outro lado o "reinado" que não chegou a ser de Viriato é narrado de uma forma muito interessante por alguém que combateu a seu lado (onde é que já li isto?), e certamente se o autor fosse descvever as batalhas teria de fazer mais do que um livro pois teria muito para dizer. Aqui Viriato é apresentado como um grande homem e não um Deus, um líder por natureza que uniu o mais que pôde um povo da ibéria habituado a lutar entre si e não a combater o inimigo comum.

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