domingo, 6 de outubro de 2019

10 poemas de Tolentino de Mendonça

O MISTÉRIO ESTÁ TODO NA INFÂNCIA
[poema que Tolentino de Mendonça apresentou ao Papa Bento XVI, numa tradução para italiano]
E, por fim, Deus regressa
carregado de intimidade e de imprevisto
já olhado de cima pelos séculos
humilde medida de um oral silêncio
que pensámos destinado a perder
Eis que Deus sobe a escada íngreme
mil vezes por nós repetida
e se detém à espera sem nenhuma impaciência
com a brandura de um cordeiro doente
Qual de nós dois é a sombra do outro?
Mesmo se piedade alguma conservar os mapas
desceremos quase a seguir
desmedidos e vazios
como o tronco de uma árvore
O mistério está todo na infância:
é preciso que o homem siga
o que há de mais luminoso
à maneira da criança futura
em "A noite abre meus olhos"
ed. Assírio & Alvim

A INFÂNCIA DE HERBERTO HELDER

[primeiro poema de Tolentino de Mendonça]
No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas
Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos
Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva
Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito
Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio
Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios
Isto foi antes
de aprender a álgebra
em "A noite abre meus olhos"
ed. Assírio & Alvim

CAMINHO DO FORTE, MACHICO

No caminho onde aprendi o outono
sob o azul magoado
os pescadores cruzavam ainda linhas
províncias clareiras
e esse gesto masculino de apagar a dor
chegava pelos percalços da terra
o carro do gelo
e os miúdos tiravam bocados para comer às dentadas
em retrato selvagem mas, juro-vos, havia encanto
havia qualquer coisa, outra coisa
nesse instante em perda
as mulheres sentavam-se à porta com os bordados
quando passavam estrangeiros
ficavam sempre a sorrir nas suas fotografias
em “Longe não sabia”
ed. Presença

SE ME PUDERES OUVIR

O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui
à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos
mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo
em “A noite abre meus olhos”
ed. Assírio & Alvim​​​​​​​

DA VERDADE DO AMOR

Da verdade do amor se meditam
relatos de viagens confissões
e sempre excede a vida
esse segredo que tanto desdém
guarda de ser dito
pouco importa em quantas derrotas
te lançou
as dores os naufrágios escondidos
com eles aprendeste a navegação
dos oceanos gelados
não se deve explicar demasiado cedo
atrás das coisas
o seu brilho cresce
sem rumor
em “Baldios”
ed. Assírio & Alvim​​​​​​​

UMA CASA EM MACHICO

Desço as escadas de casa
alguma coisa acabou para nós neste lugar
nos espaços mínimos que nos separaram
orgulho-me da tua nobreza
conto teus passos de criança sobre a terra
não sei que manhã virá em auxílio
de um amor
tão puro que não precisa
sequer de razões
ponho a mão na boca
para suster um grito
No duelo com certas noites
um coração sai sempre perdedor
Tua voz luzia pelo porto
quase a ponto de perder-se
Não avances tão depressa, minha noite
em “A noite abre meus olhos”
ed. Assírio & Alvim​​​​​​​

OS AMIGOS

Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura
Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis
Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor
em “A noite abre meus olhos”
ed. Assírio & Alvim​​​​​​​

A MULHER DESCONHECIDA

para Maria Matias, minha avó
É muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome
Eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece
e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
do doce amor.
em “Baldios”
ed. Presença

A CASA ONDE ÀS VEZES REGRESSO

A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes,estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
Durmo no mar, durmo ao lado de meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração
em "A noite abre meus olhos"
ed. Assírio & Alvim​​​​​​​

TRAVESSIA DA INFÂNCIA

Quietos fazemos as grandes viagens
só a alma convive com as paragens
estranhas

lembro-me de uma janela
na Travessa da Infância
onde seguindo o rumor dos autocarros
olhei pela primeira vez
o mundo

não sei se poderás adivinhar
a secreta glória que senti
por esses dias

só mais tarde descobri que
o último apeadeiro de todos
os autocarros
era ainda antes
do mundo

mas isso foi depois
muito depois
repito
em "A noite abre meus olhos"
ed. Assírio & Alvim



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