domingo, 14 de junho de 2015

Poemas de Nydia Bonetti

10 de abril de 2015 - 12h32 
A poeta paulista Nydia Bonetti circula entre a concretude da engenharia civil e a sutileza da palavra. Publicou em 2013 a obra Sumi-ê e em 2012 Minimus Cantu, este último integrou a Coleção Instante Estante, um projeto de incentivo à leitura do Rio Grande do Sul.


Além das obras, Nydia tem seus poemas publicados em sites, antologias e revistas de literatura diversas, entre elas Zunái, Mallarmargens, Eutomia e Acrobata. 

Esta semana a poeta contribui com a sessão Letras Vermelhas do Prosa, Poesia e Arte, veja a seguir uma série de poemas. 




Então se pôs a viajar
e vieram as febres.


*

Este deserto em tudo oculto
no céu que não desaba / embora pedra.
Este rasgar de folhas 
que se ouve / mas não se vê.
E as taturanas luminosas 
de fogo
que nada temem / a não ser 
o sal.
[e nunca mais chorou perto da árvore
pra não ferir lagartas]


*

Segue cantando nada. 
Embaralhando signos contemporâneos.
A tradição sagrada
já dizia da imagem imperfeita 
no espelho embaçado. 
Do homem velho, que se desfaz das cascas 
inúteis.
E gravemente enfermo 
das febres do seu tempo, delira
em versos insanos 
de encantar os cães.


*

Talvez leve um buquê de cactos. E uma canção
de Leonard Cohen.
Quem sabe uma rosa 
do povo 
de Hiroshima 
de Gertrud 
de ninguém.
As flores do mal 
as flores do bem. As flores
afinal, carregam — todas — a náusea de existir.


*

O dia escorrega das mãos feito um peixe
que mergulha na terra trincada 
sem se saber
sobrevivente único 
desse rio temporário 
que acabou de secar.
Que todo dia seca sob o sol do tempo.
Que a vida é 
esse deserto em expansão.
Que a noite se aproxima e é fria. 
E com que olhos nos espreitam os chacais.


*

As esquadrias metálicas, com suas peles de vidro
já não me comovem.
_A rosa sim
refletida em seus espelhos
de sol.
A flor pequena, colada na vidraça
depois do temporal.
A_temporalidade 
refletida nos olhos do rio que passa ao fundo.
E as impurezas que carrega.


*

Algas marinhas flutuam nas águas 
de um mar vermelho 
— é tarde
um céu de cobre arde 
e o sol 
mergulha.
Tudo é marinho agora — é noite
quase definitiva
neste ciclo finito da vida humana
sobre a terra.


*

Num céu paralelo / não muito longe daqui 
vigiam
as almas dos bichos que já morreram
das águas dos rios que já secaram 
da árvore em chamas 
da decepada 
flor
das palavras que agonizaram
entrelábioscerrados e baús esquecidos
[nós na garganta]
A alma do mundo mora nesse lugar 
e grita 
na escuridão.
Na madrugada
o canto do galo é anunciação 
do verbo 
que se liberta vindo de lá. E reverbera sol.


*

Posso fechar os olhos, se quiser
submergir
na compreensão do instante
da não simplicidade 
da flor.
E ir-me ao vento
folha viva recém-caída
que sangra seiva e tempo 
— esse cão 
que nos circunda
no vasto e verde campo do sentir
além 
das cercanias inúteis da razão.


*

Três mulheres que passam
com olhos de noite.

Duas são sombras
do que um dia puderam ser.

A outra é sol do que não foi.

*

Seguir na noite/rua de pedra fria
em busca do cão
(que sempre volta)
Vale a festa do encontro 
sem testemunhas.

*

Abutres vigiam.
Há em tudo um estado de quasemorte
num estágio 
de sub-humana indiferença.
Mortesvidas são 
apenas feridas
que não cicatrizam.
Cães sarnentos que perderam as asas
se arrastam.
E as escamas dos olhos caem. 
Lágrimaspérolas que o tempo petrifica.
Depois tritura. E sopra.


*

Agora sabe que aquele que ama e busca
habita seu corpo.
Por isso 
mergulha
fundo
dentro
de si.
Fora é tão longe 
_vertiginosamente se afasta.
[E a casa envelhece iluminada]

*

Na minha rua é noite. 
A casa perdida _entre.sombras.
O corpo cansado 
e os olhos secos _embora.chuvas.
Árvore quase.rizomáticos pés
_ embora.nãoflores.
*

Um pássaro pousa no santuário do fim do dia.
Um ar de vidro, que não se pode respirar
[sólido frio] paralisa.
Tudo parece saído 
de um tempo longe. Outro lugar/outra vida.
A procissão de tochas leva o morto 
e não deixa pegadas. 
Chama que não se apaga 
dos olhos 
do menino. 
É noite — há de lembrá-la escura e fria 
até o fim 
dos seus dias [seriam tantos]. 
De alguma forma estive lá — Atávicos olhos 
meus.



*

Ambidestros tigres
circunscrevem na selva ilícita
seus territórios.
Sitiados bichos procuram 
_linha de fuga 
utópica 
antes que o fogo adentre
e o círculo se expanda
e o não 
lugar para onde se ir 
se instale no olhos e paralise.



*

Um dia, cantaremos o espinho na carne 
do homem.
E todas as gangrenas 
do ser.
Cantaremos o sangue nos olhos das mães
e o revés do rebento
da flor. A canção do intercepto. 
A inominável dor.


*

Viver é esse navio, carregado de especiarias
que cruza oceanos.
Se chega ou se naufraga, já não importa. Tudo 
se perde no caminho. 
Um rastro breve de perfume de rosas 
e sândalo. Cheiro de terra
armazenado em frascos pequenos. Potes
de cascas e sementes — que não germinarão.
Tudo será tragado pelo grande abismo. 
Ninguém
fará o inventário da tua viagem.
As noites sem estrelas. Dias de sal. E o sol 
sobre a pele branca. A pele fina. A pele
que se desprende. A carne viva. 
As águas-vivas. As águas mortas. Os ossos.
E esse poema já não sabe o fim
a que se destina. 
— Por que esse navio carregado de especiarias 
atravessou meus olhos?


*

Então uma palavra engolirá outra 
palavra 
que engolirá outra 
palavra 
até que reste apenas 
uma 
palavra 
que será devorada 
pelo silêncio
[metálico fio de costurar bocas] 
Para que os olhos cantem.

Do Portal Vermelho

http://www.vermelho.org.br/noticia/262011-11

Sem comentários: