* Domingos Lobo
Quando se fizer a história, séria e objectiva, dos anos 1930/74, das lutas populares, da resistência e da militância antifascista em Portugal, essa tarefa terá, necessariamente, de se debruçar sobre o espólio literário dos autores ligados ao neo-realismo; penetrar esse profundo manancial antropológico, político e social que esses corpos textuais expressam e configuram, com rara acuidade, como nenhum outro movimento artístico/literário entre nós o fez. Só desse modo se poderá compreender a essência do que foi o fascismo luso e das profundas cicatrizes que ele inculcou no tecido social do país, a sua feroz, tentacular desumanização.
Contributo inestimável, em termos culturais e sociológicos, o que os autores neo-realistas nos legaram, na denúncia da opressão, na inquirição e transposição ficcional da realidade desses anos de cerco e ignomínia, na definição de atmosferas, vivências, interioridade de universos e acervo social, no rigor da reconstrução histórica, na descrição das relações entre opressores e oprimidos, na conceptualização da luta de classes – legado que essas obras, com raras excepções, amplamente incorporam.
A obra ficcional de Álvaro Cunhal/Manuel Tiago é hoje considerada pela crítica um dos vectores centrais do nosso neo-realismo; uma literatura fortemente influenciada pelo desejo, pela urgência de contar, de expressar a verdade e as recorrências de um tempo de lacraus e, no dizer de Urbano Tavares Rodrigues, uma peculiar, e profunda «experiência do humano»; ficção que se inscreve no vasto território de uma arte da clareza e da intervenção social.
O texto de Cunhal sobre o neo-realismo, as suas linhas programáticas e estéticas, publicado sob o pseudónimo António Vale, com o título Cinco Notas Sobre Forma e Conteúdo, saído na Vértice, em 1954, veio estabelecer em definitivo, corrigindo alguns desvios, as linhas fundamentais do movimento. Ao defender o uso funcional da obra de arte, a aproximação desta ao real, reflectindo a sua cosmocidade, Cunhal tenta transpor a criação literária para o domínio do social, integrando-o na análise dos quotidianos das massas proletárias. Ou seja, tratou-se de elaborar os princípios definidores de uma arte de inserção (no real, no social, no político) e não de exclusão desses fenómenos; uma arte que não reflectisse apenas a visão das elites e das classes dominantes, mas uma arte que servisse domínios mais vastos das lutas dos trabalhadores, emancipadora, democrática e de vanguarda. Assim, e segundo Cunhal, era necessário definir novos e mais poderosos recursos formais capazes de exprimir os riquíssimos ideais dos nossos dias.Objectivo, claro, actualíssimo.
O autor de Partido Com Paredes de Vidro defende, conceptualmente, uma arte que se situe no âmbito da luta contra o capitalismo neoliberal, globalizado e imperialista mas, simultaneamente, reflicta os problemas sociais do proletariado, correspondendo às relações dialécticas existentes entre as forças de produção.
A obra literária de Álvaro Cunhal parte da memória de uma vida vivida no gume da navalha, mas plena, para nos contar os medos, as angústias e a luta corajosa de um punhado de homens e mulheres que souberam, nas duras condições da luta clandestina e das prisões, resistir aos algozes e resgatar, em Abril de 1974, o nosso direito à voz, à cidadania e à Liberdade. À busca de um tempo «inteiro e justo».
Alheia aos bastidores das tricas literárias caseiras, a ficção de Cunhal revela-se logo após a Revolução, com Até Amanhã, Camaradas (romance que, ombreando comSubterrâneos da Liberdade na determinante da resistência ao fascismo, contém, na incursão narrativa, em relação ao texto de Jorge Amado, a autenticidade do factual e do vivido, no sentido expresso por Nathalie Sarraute) e determina-se, desde esse momento, território pessoalíssimo e singular no panorama literário português dos anos 1970, colocando-se a par de algumas das vozes centrais de uma, provável, embora diversa nos seus propósitos estéticos e programáticos, 3ª. vaga neo-realista, que a denúncia da guerra colonial, através do texto literário, havia tornado visível e actuante: Álvaro Guerra, Modesto Navarro, Fernando Assis Pacheco, José Martins Garcia, José Manuel Mendes, João de Melo, António Lobo Antunes, Carlos Coutinho; mas próxima, na elaboração dos sintagmas romanescos, nos planos efabulatórios, na sintaxe, nos elementos discursivos, no modo como expressa e denuncia a opressão fascista, de algumas vozes tutelares da prosa e da poesia, vindas da resistência e seus companheiros de geração, dos anos 1930/40: Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, José Gomes Ferreira, Manuel do Nascimento, Papiniano Carlos, Manuel da Fonseca, Armindo Rodrigues, Luís Veiga Leitão, Joaquim Namorado, Daniel Filipe, entre outros.
Cunhal surge, neste contexto, como uma voz descomplexada, com uma escrita clara e despojada, de cariz vincadamente anti-burguês, política e partidariamente comprometida, afirmando-se, no desassombro da denúncia, livre e liberta dos constrangimentos que a censura havia imposto aos autores neo-realistas, embora em obras comoCinco Dias, Cinco Noites ainda permaneçam traços de umcódigo de alusões que tentava contornar os censores apelando, nos seus núcleos simbólicos, à cumplicidade do leitor. Temos, desse modo, um discurso que não escamoteia o real, que não esconde as suas origens doutrinárias e de classe, que se assume como contributo ideológico no combate ao fascismo.
Álvaro Cunhal escreveu ficção no pleno sentido do contador, aquele que nos alforges da memória traz a bagagem transmissível, primordial, que abre e amplia, pela revelação factual, horizontes críticos e analíticos sobre a história de 50 anos de fascismo; porque viveu experiências humanas, sociais e políticas raras e sobreviveu a um tempo de mordaça, de nojo e opressão e, desse tempo de pedras, nos disse da coragem, das quotidianas invenções do sol (como o fez Luís Veiga Leitão), acreditando na mudança possível, na esperança e no futuro. Um escritor que o foi pela urgência de contar, de narrar, através dos prodígios que a palavra opera, essa experiência, essa invulgar visão do mundo, e desse singular percurso nos quis deixar perene testemunho.
Dizem alguns...
Dizem
alguns que tu
foste uma lenda arrancada
das páginas da história. Que a tua
palavra ardia
como uma tocha. às vezes
como uma lança cravada
na carne da ignomínia.
Eu diria
apenas que foste
a encarnação de um sonho. o rosto
humano da utopia.
Albano Martins 1
1 (poema publicado na revista «As Artes Entre As Letras» nº.148, assinalando os 10 anos da publicação e, simultaneamente, da morte de Álvaro Cunhal)
http://www.avante.pt/pt/2169/argumentos/136091/
Sem comentários:
Enviar um comentário