quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

poesia de manuel antónio pina



* Manuel António Pina

TRANSFORMA-SE A COISA ESCRITA NO ESCRITOR


Isto está cheio de gente
falando ao mesmo tempo
e alguma coisa está fora de isto falando de isto
e tudo é sabido em qualquer lugar.


(Chamo-lhe Literatura porque não sei o nome de isto;)
o escritor é uma sombra de uma sombra
o que fala põe-o fora de si
e de tudo o que não existe.


Aquele que quer saber
tem o coração pronto para o
roubo e para a violência
e a alma pronta para o esquecimento.


~~~~~~~~~~~

Tenho a sensação de não estar onde não estou,
de já ter passado qualquer coisa que já se passou,
e de ter a sensação passada de sentir-me a não estar lá,
suspenso sobre a Literatura.


~~~~~~~~~~

Kindergarten


As filhas brincam fora de o quê, 
que infinitamente se interroga?
O fora de elas é dentro
de que exterior centro?

Quem está lá aqui
assistindo a isto e a mim,
e às filhas brincando e ao jardim?
Que coisa essencial em qualquer sítio perdi?

Também eu ou alguém brincou há muito tempo
em outro jardim, brincando.
Sem que palavras lá estando?
Fora de que memória não me lembrando?


~~~~~~~~~~~~

Teoria das cordas

Não era isso que eu queria dizer, 
queria dizer que na alma 
(tu é que falaste da alma),
no fundo da alma e no fundo
da ideia de alma, há talvez
alguma vibrante música física
que só a Matemática ouve, 
a mesma música simétrica que dançam
o quarto, o silêncio,
a memória, a minha voz acordada, 
a tua mão que deixou tombar o livro
sobre a cama, o teu sonho, a coisa sonhada;
e que o sentido que tudo isto possa ter
é ser assim e não diferentemente, 
um vazio no vazio, vagamente ciente 
de si, não haver resposta
nem segredo.


~~~~~~~~~~~~~~~~~~

O nome do cão

O cão tinha um nome
por que o chamávamos
e por que respondia,

mas qual seria
o seu nome
só o cão obscuramente sabia.

Olhava-nos com uns olhos que havia
nos seus olhos
mas não se via o que ele via,
nem se nos via e nos reconhecia
de algum modo essencial
que nos escapava


ou se via o que de nós passava
e não o que permanecia,
o mistério que nos esclarecia.

Onde nós não alcançávamos
dentro de nós
o cão ia.

E aí adormecia
dum sono sem remorsos
e sem melancolia.

Então sonhava
o sonho sólido que existia.
E não compreendia.

Um dia chamámos pelo cão e ele não estava
onde sempre estivera:
na sua exclusiva vida.

Alguém o chamara por outro nome,
um absoluto nome,
de muito longe.

E o cão partira
ao encontro desse nome
como chegara: só.

E a mãe enterrou-o
sob a buganvília
dizendo: " É a vida..."


~~~~~~~~~~~~~~~~~

O segundo gato 

Em cada gato há outro gato 
um pouco menos exacto 
e um pouco menos opaco. 

Um gato incoincidente 
com o gato, iridescente, 
caminhando à sua frente 

ou a seu lado, 
espírito alado 
do que é terrestre no gato. 

É o segundo gato 
que permanece acordado 
com o gato afundado 

em sono abstracto, 
aos seus pés enrolado, 
espécie de gato do gato. 

Ou que, mais tardo, 
deambula pela sala 
enquanto o gato se lava, 

às vezes assomando 
nos olhos do gato 
como um passado imóvel e 

enclausurado. 
O próprio gato 
não sabe 

que anda por ali 
algo que não cabe 
dentro nem fora de si. 


~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Cálculo e elegia

Quantos dos que conheci
(se é que sempre os conheci)
homens, mulheres
(se é que ainda vigora esta diferença)
passaram este limiar
(se é isto limiar)
atravessaram esta ponte
(se ponte se lhe pode chamar) – 

Quantos após uma existência mais curta ou mais comprida
(se é que para eles persiste a diferença),
boa porque começou,
má porque teve um fim
(se é que não queriam tê-lo dito inversamente), 
se encontraram na outra margem
(se é que se encontraram
e a outra margem existe ) –

Certeza alguma me é dada
da sorte que os espera
(se comum destino há
ou mesmo até um destino) -

Tudo
(se com esta palavra não crio limites) 
deixaram para trás / (se é que não à frente) –

Quantos não saltaram do tempo vertiginoso 
para cada vez mais ternamente ao longe se sumirem
(se é que adianta crer na perspectiva) – 

Quantos
(se é que a pergunta tem sentido, 
se é que é possível alcançar a soma derradeira
antes que o que conta a si também se conte ) 
caíram nesse sonho mais fundo
(se é que não há outro mais fundo ainda) –

Adeus.
Até amanhã. 
Até à próxima. 
Já não o querem
(se é que não) repetir. 
Adstritos a um interminável
(se é que não outro) silêncio. 
Ocupados só com aquilo
(se é que só) 
a que os obriga a ausência.


~~~~~~~~~~~~~~~~~~

Schweizer Hof Hotel

Já aqui estive, já fiz esta viagem, 
e estive neste bar neste momento
e escrevi isto diante deste espelho
e da minha imagem diante da minha imagem.

Não mudou nada, nem eu próprio; a mão
escreve os mesmos versos no papel obscuro.
Que aconteceu então fora de tudo?
De que esquecimento se lembra o coração? 

Algum passado, alguma ausência, 
se passam talvez a meu lado, 
talvez tudo exista exilado
de alguma verdadeira existência. 

E eu, os versos, o bar, o espelho, 
sejamos só imagens noutro espelho
diante de algum Deus em cujo lasso 
olhar se fundem outro e mesmo, tempo e espaço.

Sem comentários: