quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Retalhos da Vida de Um Médico, de Fernando Namora

  • Domingos Lobo 


Crónicas do País da fome, do medo e da ignorância


Iniciando-se nas letras com As Sete Partidas do Mundo (1938), um romance da adolescência perpassado pelo estilo e influência da narrativa psicologista da Presença, Fernando Namora só em 1941, com o livro de poemas Terra, título que inaugurou a colecção Novo Cancioneiro, afirma a sua voz, pela mão do seu amigo e companheiro em Coimbra, João José Cochofel, no movimento neo-realista iniciando, já com alguma identidade discursiva, um estilo seguro, tematizando nesses poemas narrativos as feridas que o fascismo ia inculcando no tecido social, mormente nas comunidades rurais do Norte do País, realidade que o autor de Fogo na Noite Escura (1943) conhecia por origem e vivência. Este seu livro, o terceiro de poesia na obra do então jovem autor, será prelúdio de um processo de escrita que atingiu, dentro da estética neo-realista, embora com pontuais desvios de modo e rigor de análise, mais de 30 títulos publicados, entre romances, contos, crónicas e poesia, tornando-se Namora um escritor com raro acolhimento público, sucesso editorial que só encontra paralelo com a obra de Alves Redol.

A prosa romanesca de Fernando Namora pauta-se por uma adesão, expontânea e sem mácula, ao mundo dos outros. A sua experiência como médico rural, uma espécie de João Semana do século XX, pelas serras e aldeias raianas da Beira Baixa e, mais tarde, no Alentejo, permitiu-lhe construir uma obra banhada de atmosferas dramáticas, que o permanente optimismo do autor consegue modelar, arejar pelo pícaro, pela abordagem desconstrutiva do insólito que descreve.

Os graves problemas sociais das populações com as quais se cruza e contacta nas suas andanças de médico rural, esse estágio de quase submissão feudal que percepciona, permite-lhe reflectir nos textos um mundo fechado, imerso em brumas sebásticas, temente e conservador, que vive cercado de crenças ancestrais, de miséria, de ignorância, de obscurantismo – de medo.

O traço nítido, uma capacidade discursiva fluente e formalmente descomplexada, uma linguagem próxima do léxico comum, com uma impressiva componente poética, os comentários prosaicos que a pontuam, ilidindo o fluxo ficcional, são elementos que tornam esta escrita acessível a um vasto universo de leitores que em Namora encontram um autor próximo, sensível e preocupado com as grandes questões sociais do seu tempo.

Em Retalhos da Vida de Um Médico, percorremos os itinerários do país salazarento, interior, doente, matreiro e desconfiado, país das homílias da conformação, das leiras da fome, das casas celtiberas, da insalubridade quase medieval, da rudeza elementar e da transcendência. O jovem médico, acantonado em Monsanto, nessa que foi, no desvario folclórico do fascismo, a aldeia mais portuguesa de Portugal, percorre veredas, socalcos, caminhos abertos nas faldas da serra por onde as mulas, os burros e os carros de bois se esgueiram entre ventos e chuva, para socorrer os pacientes que o procuram quase sempre em situação extrema, quando desenganados de charlatães, bruxedos e mezinheiros, muitas vezes para apenas confirmar o óbito. Um povo triste e desamado.

A primeira série de Retalhos, publicada em 1949, fala-nos do período inicial das vivências do médico-escritor num meio que lhe é austero, da desconfiança dos aldeões, das aldeias e casebres perdidos nas serranias e lameiros das terras beirãs, numa escrita intimista, feita de fragmentos, de memórias, de perplexidades perante a dura realidade que o cerca, levando-o a questionar-se sobre a sua condição de médico e a valia da ciência numa sociedade fechada sobre os seus próprios mitos, ignorância e cupidez. Narrativas construídas a partir de apontamentos, de referências autobiográficas, nas quais o autor expressa as suas angústias, cansaços, incredulidade.

Raras estórias em Retalhos, da 1.ª série, se estruturam como contos, mas antes como se de uma narrativa-inquérito (sobre o País interior, as condições sócio-políticas que o cercam e inibem) se tratasse; de um percurso memorialístico, de tempo e circunstâncias singulares vividos no Portugal profundo, tolhido pela miséria e pela rudeza da vida e do trabalho. Romance-inquérito, lhe chamou Óscar Lopes, mas este Retalhos, contado na primeira pessoa, em discurso claro e apodíctico, aproxima-se, pelo menos nos textos da 1.ª série, de um diário, fragmentado e não cronológico, de uma experiência profissional que marcaria profundamente o autor e percorreria indelével grande parte da sua obra ficcional posterior.

Com vinte e quatro anos medrosos e um diploma de médico, tinha começado a minha vida em Monsanto. Ali, a província bravia despede-se da campina, ergue-se nos degraus das fragas para olhar com altivez as serras de Espanha, enquanto o friso de planaltos que corre as linhas da fronteira espreita as surtidas do contrabando e a fuga dos rios. Prosa eficaz, segura, por vezes carregada de humor, picaresca, de um pícaro que não define individualmente o camponês, como em Aquilino Ribeiro, mas que em Fernando Namora adquire um sentido mais amplo e colectivo, que é quase amargo, desarmado, dorido olhar sobre a pobreza circundante.

A 2.ª série de Retalhos da Vida de Um Médico, publicada em 1963 estrutura-se de modo autónomo do 1.º volume. O médico-escritor está já no Alentejo, o sol e as planuras dos lugares do Sul permitem-lhe que o verbo se abra, se expanda em ressonâncias menos circulares, a realidade é diversa, a luta e o querer dos homens mais determinada e consciente, embora a miséria persista. A forma narrativa também muda. Entre a 1.ª série e a 2.ª há uma diferença de 14 anos e neste período o autor publica outros textos (alguns títulos serão afins de Retalhos)A Noite e a Madrugada (1950); Deuses e Demónios da Medicina (1952); O Trigo e o Joio (1954); O Homem Disfarçado (1957); Cidade Solitária (1959); As Frias Madrugadas (1959), que marca o regresso de Namora ao registo poético; Domingo à Tarde (1961).

O modo fragmentário da narrativa dos textos incertos na 1.ª série transforma-se num modo discursivo mais depurado, exigente em termos formais e orgânicos. As fímbrias brumosas que atravessam a 1.ª série dão lugar a uma intervenção mais explícita sobre o que denuncia e o autor opta pela forma do conto clássico para expressar o estupor, a procura de si mesmo e da matéria inesgotável do sofrimento humano, como refere Eduardo Lourenço. Alguns dos contos desta série serão exemplares de um modo mais evoluído de efabulação, de textura amadurecida no âmbito do discurso ficcional neo-realista: O Influente; O Homem que Queria Morrer Apenas Uma Laranja, estão nesse grupo de contos de modelar apuro e exigência estética e conceptual.

Retalhos da Vida de Um Médico é um exemplo do texto clássico do neo-realismo e uma das obras fundamentais da literatura portuguesa do século XX. Um documento raro, sensível e lúcido sobre a realidade profunda do Portugal fascista; país de silêncios, de medos e de revoltas crescendo no meio dos trigais que Namora, sem contemplações, põe a nu – país de ocultas misérias denunciado pela pena de um autor que nestes textos se revela indignado com o sofrimento dos seus concidadãos, e é esse modo de dizer a revolta, de a tornar humana e lídima, que torna estes textos actuais e de uma indefectível universalidade.

A presente edição da Caminho concentra num único volume as duas séries de Retalhos, mantendo os prefácios de Eduardo Lourenço e Gregório Marañón, constantes de edições anteriores.

Retalhos da Vida de Um Médico, de Fernando Namora – Editora Caminho, 2016 – Organização de José Manuel Mendes


http://www.avante.pt/pt/2244/argumentos/143073/

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