segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A classe operária não vai ao paraíso

25 de dezembro de 2016 - 19h42 

A classe operária não vai ao paraíso


 

Tudo miúdo, até a vida.

(Do conto “O pano vermelho”)

Ao que me consta, foi Amando Fontes com Os Corumbas, romance de 1933 sobre o calvário e a desagregação de uma família sergipana na cidade grande pré-industrializada, que introduziu a fábrica (e, por extensão, o proletariado) na literatura brasileira. Quase meio século depois, o mineiro Roniwalter Jatobá amplia o tema apenas sugerido por Amando Fontes e faz da exploração do operário - o migrante nordestino que fugiu da seca e da miséria para viver na periferia de São Paulo - o leitmotiv de sua obra, sobretudo deste No chão da fábrica - contos e novelas (Editora Nova Alexandria, SP, 2016), que acaba de sair do pátio da indústria de personagens miúdos, derrotados e desencantados em que se transformou a ficção desse autor que deixou o interior da Bahia, onde foi chofer de caminhão, para ser também operário na maior metrópole do Brasil.


No chão da fábrica - contos e novelas é a reunião de três livros anteriores de Jatobá: Sabor de química, de 1976; Crônicas da vida operária (1978) e a novela, visceral e dolorosa, Tiziu (1994). Em comum com as três a utilização do peão de fábrica como personagem coletivo de uma tragédia brasileira: a impiedosa exploração do trabalhador iludido com as promessas jamais cumpridas do “milagre brasileiro”, a maior peça de marketing político da ditadura militar instalada no país em 1964. De milagre mesmo para os deserdados da sorte, os humilhados e ofendidos de Roniwalter Jatobá, só a capacidade de sobrevivência em meio às condições mais adversas e o apego à esperança quando todas as portas para uma vida melhor parecem trancadas por dentro, para que os pobres não possam entrar na Terra Prometida da justiça social.

Tanto em Amando Fontes quanto em Roniwalter Jatobá, a fábrica tem um quê de ente naturalista, como sua sirene apitando, engolindo e vomitando homens. Em Os Corumbas: 

Manhã.

Homens entroncados, sujos de pó, chegam junto às caldeiras da Têxtil, empurrando vagonetes de lenha. Lavados de suor, os foguistas não descansavam, jogando grandes toros em meio ás labaredas. Todas as máquinas da Fábrica se moviam, num barulho ensurdecedor.

E ainda:

A grande chaminé da Têxtil vomitava no espaço rolos fumo negro.

Um silvo curto e agudo anunciou a hora do almoço. E logo - como um bando de reses famintas que tivessem rebentado as cercas do curral - de todos os cantos surgiram centenas de operários a correr. Meninos, homens, mulheres. Uns, ganhavam o largo portão da frente; outros se lançavam para o vasto pátio da Fábrica, na ânsia de obter um bom lugar sob as árvores. Os mais retardados contentavam-se com o se abrigar em qualquer parte onde o sol não batesse bem a prumo.

Agora, Roniwalter Jatobá, a fábrica parecendo um campo de concentração (“A fábrica”):

A construção da fábrica tomava tudo, cerca de arame com quatro fios, farpados. Só se ouvia de longe o barulho de concreto sendo despejado no chão, serras elétricas, serrotes comuns serrando madeira; enxadas e pás tinindo de manhã à noite. Fizesse sol ou chuva. Aquilo nunca parava. Crescia, sim.

A fábrica sugando as últimas forças do homem e, depois, o descartando como o bagaço da laranja (em “Odília”):

Lembro do meu homem que a fábrica de química em tão pouco tempo, em cinco anos, por muito, definhou como um trapo ou pano de prato de fustão ruim que se gasta no trabalho diário e caseiro.

A fábrica envenenando, a prestações, os trabalhadores (em “Nos olhos, gases e batatas”):

Segunda de noite, a fábrica: seção F5, Nitroquímica, o gás rondando os olhos, entrando nas vistas marejadas, cegueira. A voz do feitor apressando, o sinal de saída demorando a tocar lá fora, os minutos se segurando, a dor nas vistas.

E ainda (em “Tiziu”):

O gás de química voava no espaço do galpão queimando em todos os cantos e penetrando até debaixo do pano grosso do macacão azul de brim.

Na novela “Tiziu”, mais um crime: o barracão da fábrica era feito de telhas de amianto.

Vemos ainda o operário afastado do trabalho, irremediavelmente doente e desprezado pelas pessoas sãs, do conto “Sabor de química”, que desabafa ante o desprezo dos demais:

Cuspo meu câncer nos pés deles.

Crônica da vida infeliz

Num clima em que a questão social parece ainda um caso de polícia como na República Velha (1889-1930), a carteira de trabalho, assinada, era o único salvo-conduto do trabalhador. A carteira de identidade de nada valia. O importante era estar trabalhando para provar que não era vagabundo (em “Trabalhadores”):

[...] Empregado. Carteira profissional só esperando a promessa que depois de todos os exames ficaria assinada, fichada, o carimbo da firma estampado dentro dela, aí, já podendo andar de cabeça erguida dentro dos bares, sem precisão de correr ao menor movimento de carro de polícia, assombrado.

O medo do desemprego assombrava a todos na fábrica. Todos temiam o facão, gíria para a dispensa na próxima leva de demissões (em “Trabalhadores”):

Fiquei dois anos e meio, novecentos dias esperando, toda manhã, em ser posto pra fora, vendo o medo passeando em todos, assim esperando, assim trabalhando. O coração palpitando forte na chegada da manhã; na hora de marcar o ponto, o dia inteiro assustado nos chamamentos para qualquer coisa que partisse de chefe, feitor, o pensamento voltado pra casa, ali no serviço corrido, na família, lá longe em outros bairros.

A pobreza, a exploração, o trabalho sem direito a domingo e feriado, os baixos salários, a constante ameaça de demissão, a família crescendo, os filhos nascendo e precisando das coisas, tudo isso dá no trabalhador uma tristeza de chorar, como na música “Gente humilde”, de Garoto, Vinícius de Moraes e Chico Buarque, a mesma gente humilde que também na ficção de Roniwalter Jatobá mora nos subúrbios (em “Domingo tem cinema):

[...] a gente perde o gosto pelas coisas, vai definhando, se acomoda num canto, só não chora porque é feio. Mas que dá vontade, isso dá.

A mutilação de membros aleija e inutiliza os trabalhadores mais distraídos (em “A mão esquerda”):

E foi passando na cabeça o meu choro, o sangue melando a máquina, o azul dela, fui sentindo vergonha, não me veio um tico de nada de ódio da prensa, da prensa que me deixou com tocos nos dedos, um homem aleijado, inutilizado como dizem por aí, não, não senti raiva cega da máquina, só da minha fraqueza, do meu medo, do meu descuido, do choro, essa mão, agora, pois vê, pesada e quieta como se não parecesse minha.

Na grande cidade e no pátio da fábrica, todos são joões, joões ninguém (em “Trabalhadores”):

Éramos três joões que se perderam por aí, nesse São Paulo sem datas, os dias parecidos, todos iguais, cada um de nós carregando sua sina traçada desde o nascimento ou muito antes, nos rostos suas esperanças estampadas e trazendo de outras erras seus sonhos, cada um indo e vindo na marcação de seu destino.

Porém, apesar de toda a vida de sacrifícios, de todo cansaço e de todo sofrimento, a esperança resiste, como um pássaro que pousa sobre uma prensa desativada, ou o homem do conto “O trem, a estação... todos os dias”, do livro Crônicas da vida operária, que observa a cidade e os companheiros taciturnos dentro o trem lotado que traz os operários de volta para casa, após a jornada de trabalho exaustiva:

[...] aí não dá pra perder a fé e não me vejo mais só no mundo.

Para o crítico literário Fábio Lucas, autor de O caráter social da ficção no Brasil, alguns contos de Roniwalter Jatobá “se apresentam como uma crônica da vida infeliz”. E assim é. O escritor mineiro empunha sua pena para tomar o partido dos pequenos, dos mais fracos, dos explorados e o faz com ardor militante, sem contudo cair nas armadilha sectária e maniqueísta do chamado “realismo socialista”. Por isso mesmo, como observou outro crítico, Celso Frederico, professor da USP, sua obra “possui um inestimável valor documental”.

Roniwalter Jatobá resgatou a agruras do operário brasileiro, mas não esgotou o tema, pois, como diz Tiziu (apelido de um trabalhador que volta mutilado para a sua terra natal, na Bahia, sem nada no bolso e com as mãos vazias, após 25 anos de dura labuta em São Paulo), “dois olhos não conseguem presenciar tudo o que se passa no mundo”.

Na ficção, dura e crua de Roniwalter Jatobá, a classe operária não vai ao paraíso, desce ao inferno da exploração do trabalho e rola no limbo da lenta e progressiva derrocada de seus sonhos.

Como disse Rubem Braga, numa crônica, “a vida é triste, Sizenando.”




 
*Eliezer Cesar é jornalista, escritor e mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia

http://www.vermelho.org.br/noticia/291469-1

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