O que dizer deste livro?
03/12/2016 por Daniela Major
Sttau Monteiro escreve-o em 1961 mas podia perfeitamente escrevê-lo em 71 ou 81 ou 91. O livro, na realidade, começa quase sem época. Isto é, a expressão Estado Novo nunca é referida e a primeira referência a um tempo é uma menção à guerra colonial. Assim se percebe, juntamente com a introdução de Pedro, o período em que as personagens vivem. Isto não é de menos pois a indefinição revela já algo do carácter generalista da história. Pessoas como o Gonçalo, a Teresa, o António e, graças aos céus, o Pedro, vão sempre existir.
O livro é profético. Sttau Monteiro via claramente o fim do Regime apesar do mesmo só vir a cair 14 anos mais tarde num belo dia de Abril. Contudo, o que está em causa não é “apenas” o fim do regime em Portugal mas a questão da classe. Aquilo a que Sttau Monteiro chama a “lógica de classe”, ou seja, a injustiça que é conscientemente perpetuada por uma classe privilegiada que despreza os que não nasceram com tais privilégios. Parafraseando o Gonçalo, as classes altas arranjam sempre mecanismos para se proteger, superando inclusivamente os próprios regimes que as suportam e que elas suportam. Este livro não é mais do que a velha história dos mais fortes a baterem nos mais fracos e a conseguirem safar-se com isso. Ou quase.
É desta forma que Gonçalo se torna cada vez mais insuportável. Por detrás da ideia muito badalada que anuncia que ser cínico é que é bom, percebemos que se encontra alguém vazio de ideias, amargo, a quem nada – desde a amante até ao bentley – faz feliz. Gonçalo é uma personagem trágica porque é claramente um homem com um grande intelecto mas absolutamente vazio de tudo o que faz com que a vida valha a pena.
António faz a manobra contrária. Começando como insuportavelmente patético, vai crescendo em dignidade, apesar de ser constantemente repisado por tudo e todos. Mas se no princípio o leitor não lhe dá o benefício da dúvida, no fim já se coloca completamente do lado dele. António inspira pena e, para qualquer leitor atento, raiva. É mesmo para ficarmos zangados com o destino dele, de nos rebelarmos contra a injustiça de uma sociedade que detesta e despreza os seus Antónios.
Alexandra é a personagem menos conseguida. Não se entende bem se Sttau Monteiro nutria mesmo um verdadeiro desprezo por uma mulher que faz o que ela faz ou se acredita que o sistema que vitima e mata António é o mesmo que retira a dignidade a Alexandra. É possível que assim seja, mas podia estar mais bem demonstrado. Todas as diatribes sobre a “condição de pega” tornam-se cansativas e repetitivas.
Inicialmente eu fui no engano ingénuo de achar que Gonçalo tinha um bom fundo. De que ele se encontrava com o António porque gostava dele ou dos tempos em que tinham sido colegas. Pensei até que poderia haver algum tipo de sentimento escondido por Alexandra, por debaixo de todo aquele cinismo horroroso. Não, o Sttau Monteiro não esconde. O que parece, é. E Sttau Monteiro sabia, percebia perfeitamente, que aquele sistema ali representado, aquela burguesia maldosa, fútil e indiferente ia acabar. Ou devia acabar.
Pedro e Gonçalo lembram-me duas diferentes frases. Sartre escreveu uma vez : “Ce sont les enfants sages, Madame, qui font les révolutionnaires les plus terribles. Ils ne disent rien, ils ne se cachent pas sous la table, ils ne mangent qu’un bonbon à la fois, mais plus tard ils le font payer cher à la société. Méfiez-vous des enfants sages!”
Pedro é claramente um destes enfants sages de Sartre. O contraste entre Pedro, um enfant sage, e os colegas revolucionários é óbvio. Pedro, apesar de “burguês”, percebe bem o que está em causa e que a mudança, a chegar, não é uma mudançazinha individual que vai facilitar a vida aos medíocres. É uma mudança a sério, que vai mudar tudo, tudo para àqueles que realmente importam.
Gonçalo, por outro lado, lembra-me o Major Gervásio dos Capitães de Abril de Maria de Medeiros. A determinada altura, Salgueiro Maia zanga-se com ele e critica-lhe o cinismo inútil. Gonçalo é precisamente isso: um cínico inútil.
Haveria benefícios em por os alunos do 12º ano a ler este livro. O Felizmente, há luar é muito mais “politicamente correcto” no verdadeiro sentido do termo; isto é, o Felizmente, há luar é indisputável, é a luta do individuo contra a tirania. A Angústia para o jantar é um livro muito mais complexo que faria os alunos enfrentarem a sua própria maneira de ser de uma forma muito mais activa. Ou seja, a Angústia para o Jantar engana-nos porque torna a personagem aparentemente mais simpática, a personagem principal, num homem completamente irrascível e repugnante. Em alguém que somos obrigados a criticar muito mais fortemente porque ele próprio é muito mais realista do que o Principal Sousa ou o D. Miguel Forjaz do Felizmente, há Luar. Merecemos estar armados contra os Gonçalos desta vida.
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