ENSAIO
Por sobre este cenário quase arqueológico, paira o imenso dossel de
betão por onde deslizam milhares de veículos, milhões de cavalos embutidos em
motores.
7 de
Abril de 2019, 7:01
Foto
ÁLVARO DOMINGUES
“Dizia eu que a paisagem é uma forma de evidência do
lugar que está longe de se confinar a uma visão idílica dos seus componentes.
(…) as paisagens literais ou metafóricas representadas dão conta de
diversíssimas formas de o humano se auto-perceber. É na literatura que tal
também acontece” (1)
Procurando outros
assuntos, encontrei este texto de Helena Buesco sobre a paisagem na literatura.
Buscando por uma coisa, encontrei outra, como os Três Príncipes de Serendip — de tanto sucesso que Horace
Walpole teve com esta história, se cunhou a palavra inglesa serendipity: descobertas afortunadas que
aparecem quando se procuram outras. Como Serendip é a denominação dos árabes
antigos para o Sri Lanka e o Sri Lanka é Ceilão e Ceilão é a Taprobana, fica
esclarecido o maravilhoso que tal lugar encerra, o que aí se pode encontrar e o
que está ainda além.
Dizia então a Helena que a
paisagem é uma forma de evidência do lugar e dos humanos se autoperceberem pela
forma como experienciam, narram, vivem ou representam esses lugares. Certeiro,
a literatura é uma forma de pensar que nos faz muita falta.
Neste lugar parece que
tudo se derreteu pela sobreposição dos tempos e pela multiplicação dos espaços.
No início era um velho caminho, torto e mal calcetado como foram os caminhos ao
longo de milhares de órbitas que o planeta conta. Veio depois o caminho da
água, pedra sobre pedra para apoiar caleiras (de pedra) por onde corria uma
levada. Desta água das pedras se tirou um fio para uma bica. No descanso da
jornada, animais e bestas bebiam e descansavam antes de retomar o caminho e a
caminhada. Podiam ser os Príncipes de Serendip, fixados no destino da viagem e
retidos ali no momento em que uma princesa passou e lhes trocou os planos e as
voltas. Vede nobres senhores, disse ela, que bela paisagem que daqui se avista,
subi ao aqueduto, subi e esguardai que frondoso vale, o rio ao fundo, os campos
de meu pai. E eles subiram. Quando desceram, nem princesa, nem as moedas nos
alforges. Em vão procuraram por ela. Tudo o que tinham planeado ficava por ali,
por aquela bica dos maus encontros.
Passaram muitos anos,
muita enxurrada pelo caminho, mulas, dias de sol escaldante, poeira, viajantes,
mulheres que vinham lavar roupa no tanque que havia atrás, gado e procissões.
Certo dia foi uma
nervoseira de máquinas que não tinha termo. Escavadoras, camiões, gruas,
guindastes. Uma longuíssima e larga estrada começava a sobrevoar o caminho das
pedras. Era o gigantesco viaduto. Por força da obra, o aqueduto ia-se
desfazendo e as pedras amontoavam-se no estaleiro (os ductos nem sempre se dão
uns com os outros quando se misturam com prefixos e perdem o c antes do t).
Concluída e descofrada a
obra de arte auto-estradal, o caminho foi reposto, empedrado novo e passeio
generoso como mandam as regras do conforto e da segurança de circulação de
peões; o aqueduto foi reconstruído numa versão ruiniforme tosca que lhe aumenta
a sensação de intemporalidade. Ficaram alguns panos de um muro que havia e a
bica, qual pequeno templo desidratado. Atrás do muro existem tanques novos e
cordas para estender roupa a secar. Os tanques estão secos e as cordas, vazias,
apesar de a corrente de ar e a protecção da chuva favorecerem tais funções. Não
há nada que não se acabe.
Por sobre este cenário
quase arqueológico, paira o imenso dossel de betão por onde deslizam milhares
de veículos, milhões de cavalos embutidos em motores. O caminho está um
sossego, nem um cavalo; passa-lhe quase tudo por cima. Entre a caleira de pedra
e a cobertura que vai ganhando uma patine cor de ferrugem, fica um desligamento
que aumenta a força cenográfica do acontecimento havido neste lugar. O ruído
contínuo do tráfego e a reverberação acústica completam os efeitos especiais
desta ambiência, da sua luz.
Paisagem não há. Se alguém
subir ao aqueduto, não verá o frondoso vale, o rio ao fundo, os campos do pai
da tal princesa. Se se esticar muito, é capaz de dar com a cabeça no betão.
Das diversíssimas formas de o humano
se auto-aperceber, como escrevia H. Buesco, vive aqui uma paisagem
ausente sem sinal de visões idílicas. A autora cita Almeida Garrett, para
exemplificar algumas tonalidades românticas sobre desencantamentos:
(…) em verdade não sei explicar a impressão que me
faz uma ruína neste estado. Desafinam-me os nervos, vibram-me numa discordância
e dissonância insuportável. Queria ver estes altares expostos às chuvas e aos
ventos do céu — que o sol os queimasse de dia, — que à noite, à luz branca da
lua, ou ao tíbio reflexo das estrelas, piasse o mocho e sussurrasse a coruja
sobre seus arcos meio caídos. (…) Quero-me ir embora daqui!
Contudo, o que existe é
suficientemente potente para convocar imaginários sobre este olhar oblíquo para
a intersecção desnivelada, a ruína velha e a nova estrada. Pobre Garrett,
escapou-se-lhe o genius loci,
desmaravilhou-se o olhar romântico para o lugar. O passado fixou-se, o grande
lençol do tempo deixou aqui uma prega esquecida, um poema de pedras velhas que
inquieta os humanos e o modo como percebem os mochos, as corujas e muita
ratazana que aqui anda.
1. Helena Carvalhão Buescu
(2012), Paisagem Literária:
Imanência e Transcendência, in C. reis; J.A.C. Bernardes; M.H. Santana
(coord), Uma Coisa na Ordem das
Coisas — Estudos para Ofélia Paiva Monteiro, Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, pp. 193-202, p.202
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