quinta-feira, 25 de abril de 2019

Nuno Pacheco - No Dia da Liberdade ainda há uma ditadura que mexe: a dos idiotas


* Nuno Pacheco
O acordo ortográfico é bastante estúpido, mas quem decide aplicá-lo às cegas ainda é pior. Exemplo: um Baptista registado há décadas, agora passa compulsivamente a “Batista”.

25 de Abril de 2019, 7:30

O 25 de Abril, que hoje faz precisamente 45 anos, tem andado a subir e descer “escadas” contra vontade. Ora surge com minúscula, ora com maiúscula. Há gente muito abrilesca a rebaixar-lhe o A e gente menos dada a cravos a deixá-lo com a dimensão original. Não se entende nem se entendem. Porquê? Porque, sendo o acordo ortográfico (que está na origem da tais hesitações e trapalhadas) bastante estúpido, quem decide aplicá-lo às cegas ainda é pior.

Expliquemo-nos. Na Base XIX do dito, intitulada “Das Minúsculas e Maiúsculas”, diz-se textualmente que: “1º) A letra minúscula inicial é usada (…) b) Nos nomes dos dias, meses, estações do ano: segunda-feira; outubro; primavera.” Logo, abril. Porém, mais adiante, também se diz isto: “2º) A letra maiúscula inicial é usada: (…) e) Nos nomes de festas e festividades: Natal, Páscoa, Ramadão, Todos os Santos.” Ora considerando o dia de hoje como uma festa ou festividade, que o é, tal como o 1.º de Maio, grafemo-lo Abril. O que dá esta bela coisa: hoje, dia 25 de abril, festeja-se o 25 de Abril. Daqui a uma semana, no dia 1 de maio, festeja-se o 1.º de Maio. Por mais disparatado que isto pareça, e é, trata-se do que dispõe o malfadado acordo. Portanto, senhores: é 25 de Abril e 1.º de Maio, combinado?

Despachado o primeiro tema, vamos ao segundo, bem mais grave. Segundo uma notícia recentíssima do jornal digital ECO – Economia Online, parece que andam por aí a mexer nos nomes das pessoas a pretexto do acordo ortográfico. Imagine-se que alguém tem agora um filho e lhe quer dar o nome de Victor. Não pode, tem de ser Vítor, mesmo que bata o pé. Porquê? Por causa de uns idiotas. Mas o caso nem sequer é esse, é bem pior. Leia-se a notícia do ECO, assinada por Filipe Paiva Cardoso e datada de 21 de Abril: “Aquando da renovação do cartão cidadão (CC), ‘um número apreciável’ de cidadãos viram-se obrigados a trocar a grafia do seu nome para ficar em conformidade com o acordo ortográfico de 1990 pelo Instituto dos Registos e do Notariado (IRN). Se era Victor, passou Vítor. E se tinha Baptista no nome, passou a Batista. Num ápice, um Victor Baptista ficou Vítor Batista.” Claro que houve queixas. Cidadãos indignados recorreram à Assembleia da República, porque houve Baptistas, Victores e Lourdes que passaram, num ápice, a Batistas, Vítores e Lurdes. Que sucederia a Alçada Baptista se fosse vivo? Ou a Baptista-Bastos, que além do P ainda lhe levavam o hífen? Ou a Maria de Lourdes Pintasilgo, que perderia um U e ganharia um S?

Perante tamanha parvoíce, o grupo parlamentar do PSD quis indagar o que se passava; e recorreu ao Ministério da Justiça (que ainda tem cedilha, valha-nos isso). Que resposta teve? Ainda segundo o ECO, esta: “O IRN está vinculado a inscrever no Cartão do Cidadão o nome do interessado de acordo com a grafia que se encontra registada no Assento de Nascimento.” Então porque sucede o contrário? Aí, a tutela explica que na lei anterior a 2007 (ou seja, anterior ao malfadado acordo) “a atualização da grafia era obrigatória.” Era? Não se deu por isso. Nunca soube de nenhum caso. E nem os Baptista que conheço passaram a Batistas por via burocrática nem Sophia de Mello Breyner passou a Sofia de Melo Breiner. Que se saiba. Em “compensação”, a pobre Capela de São João Baptista, ao Chiado, foi pressurosamente “atualizada” para “São João Batista”. E muitos Baptistas ou Víctores, até em legendas de museu, perderam consoantes. Isto apesar de um dos papas do acordo, o brasileiro Evanildo Bechara, ter escrito no jornal O Dia (em 13/11/2011) que “essas exceções [referia-se a Assumpção ou Drummond] constituem nomes próprios, cuja fidelidade ao registro oficial sempre foi garantida pelos projetos ortográficos. Supõe-se que continuaria a ser garantida neste, não?

E continua mesmo. Porque na Base XXI do “acordo ortográfico” de 1990 (“Das assinaturas e firmas”) diz-se claramente: “Para ressalva de direitos, cada qual poderá manter a escrita que, por costume ou registo legal, adote [sic] na assinatura do seu nome.” O que dizem a isto os serviços? Nada, continuam a chacina. As consoantes são para abater, até ordem em contrário. Como as ordens são inexistentes ou flácidas, e clareza é coisa que nesta área não há nem se pretende que exista, vence a lei dos idiotas. Imagina-se o diálogo: “O senhor era Victor? Era, já não é, não pode ser, a lei não permite, agora passa a Vítor.” E se o infeliz tem o azar de ter apelidos de aparência antiga como D’Orey, Mont’Alverne, Torquato, Uchoa, Felgueiras ou até Queiroz (que o diga Eça, que já foi “traduzido” para Queirós), há-de ser bem pior.

Porque mesmo 45 anos passados sobre o 25 de Abril (com maiúscula, como já se provou) no Dia da Liberdade ainda há uma ditadura que mexe: a dos idiotas. Vai ser o cabo dos trabalhos livrarmo-nos dela. Coisa que será bem difícil enquanto não nos livrarmos do “acordo ortográfico”, esse incentivo ao disparate que alguns (por erro?) “batizaram” de lei.



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