Entre
1950 e 1984 a componente jornalista de Gabriel García Márquez era uma parte
muito importante do autor de Cem
Anos de Solidão. A prova está na reunião de 50 textos do Nobel colombiano
em O Escândalo do Século.
21 Maio 2019 — 15:54
Nenhum
leitor fica indiferente à prosa do escritor Gabriel García Márquez e ainda mais
quando se trata da escrita enquanto jornalista, a profissão que o colombiano
mais gostava e que o volume que chega às livrarias na próxima semana mostra em
50 exemplos de todo o género.
Intitulado O Escândalo do Século, reflete uma grande parte da vida profissional de Gabo, o diminutivo que os mais próximos lhe chamavam, e resulta de uma seleção feita pelo seu editor Cristóbal Pera. Diga-se que Gabriel García Márquez disse uma vez que desejava ser lembrado pelo jornalismo: «Não quero que me recordem por Cem Anos de Solidão, nem por aquilo do Prémio Nobel, mas sim pelo jornal.»
Apesar
de se poder colocar em dúvida a questão da (des)importância do Nobel e do valor
da literatura para si, é preciso não esquecer que García Márquez só se tornou
conhecido no mundo inteiro devido ao romance extraordinário Cem Anos de Solidão e ao Prémio da
Academia Sueca em 1982. E aí a produção jornalística ganhou outro valor ainda
maior.
Nascido
em Aracataca em 1927, Márquez foi batizado "pai do realismo mágico
latino-americano", o responsável pelo grande boom da literatura daquele continente em todo o mundo. Aliás,
nesta recolha surge um texto, A Casa
dos Buendía, que fornece pistas para a escrita desse romance. Que começa
assim: "Quando Aureliano Buendía regressou à povoação, a guerra civil
tinha terminado. Talvez ao velho coronel nada restasse da áspera peregrinação.
Restava‑lhe apenas o título militar e uma vaga inconsciência do seu desastre."
Quanto
aos outros 49 textos, há de tudo para mostrar a capacidade narrativa do
escritor colombiano. Uma importante introdução de Jon Lee
Anderson, esclarece o propósito da maior parte dos artigos reunidos em O Escândalo do Século, reafirmando
o prazer de García Márquez no jornalismo: "Afora tudo isto, Gabo foi
jornalista; o jornalismo foi de certa maneira o seu primeiro amor e, como todos
os primeiros amores, o mais duradouro. Esta profissão proporcionou ‑lhe o
primeiro sustento como escritor, coisa que ele recordou sempre; a sua admiração
pelo jornalismo chegou ao ponto de proclamar em certa ocasião, com a sua
generosidade característica, que era 'o melhor ofício do mundo'".
Na
introdução do editor, encontram-se também testemunhos desse amor: "Sou um
jornalista, fundamentalmente. Toda a vida fui jornalista. Os meus
livros são livros de jornalista, embora se veja pouco." Explica
Cristóbal Pera que a seleção de cinquenta textos de Gabriel García Márquez,
publicados em jornais e revistas entre 1950 e 1984, são "escolhidos entre
a monumental Obra Periodística em
cinco volumes compilados por Jacques Gilard e tem o propósito de levar aos
leitores da sua ficção uma amostra do seu trabalho na imprensa e em revistas,
fruto do ofício que sempre considerou a fundação da sua obra."
Para
Pera, os leitores da sua ficção "encontrarão em muitos destes
textos uma voz reconhecível", bem como a "formação dessa voz
narrativa através do seu trabalho jornalístico". Como afirma
Gilard, refere o editor, "o jornalismo de García Márquez foi
principalmente uma escola de estilo e constituiu a aprendizagem de uma retórica
original". Não deixa de referir que "alguns dos seus primeiros contos
precedem as suas crónicas na imprensa, mas o jornalismo foi o ofício que
permitiu a Gabriel García Márquez deixar os seus estudos de Direito, começar a
escrever em El Universal de Cartagena e em El Heraldo de Barranquilla, e viajar
até à Europa como correspondente de El Espectador de Bogotá. No seu regresso, e
graças ao seu amigo e colega jornalista Plinio Apuleyo Mendoza, prosseguiu o
seu trabalho jornalístico na Venezuela em revistas como Élite ou Momento, até
se instalar em Nova Iorque, como correspondente da agência cubana Prensa
Latina."
A
partir daí abandona temporariamente o ofício para escrever Cem Anos de Solidão e o resto é
história:
O
DN faz hoje a pré-publicação de um dos textos incluídos emO Escândalo do Século.
PRECISA‑SE DE UM ESCRITOR
Por
Gabriel García Márquez
"Perguntam ‑me com frequência o que é que me faz mais falta na vida, e eu
respondo sempre a verdade: «Um escritor.» A piada não é tão parva como parece.
Se alguma vez me deparasse com o compromisso inevitável de escrever um conto de
quinze páginas para esta noite, recorreria às minhas incontáveis notas
atrasadas e tenho a certeza de que chegaria a tempo à tipografia. Talvez fosse
um conto muito mau, mas o compromisso seria cumprido, que ao fim e ao cabo é a
única coisa que quis dizer com este exemplo de pesadelo. Em contrapartida, não
seria capaz de escrever um telegrama de parabéns nem uma carta de pêsames sem
dar cabo do fígado durante uma semana.
Para
estes deveres indesejáveis, como para tantos outros da vida social, a maioria
dos escritores que conheço quis apelar aos bons ofícios de outros escritores.
Uma boa prova do sentido quase bárbaro da honra profissional é sem dúvida esta
nota que escrevo todas as semanas, e que por estes dias de outubro vai fazer os
seus primeiros dois anos de solidão. Só uma vez faltou neste canto, e não foi
por culpa minha: por uma falha de última hora nos sistemas de transmissão.
Escrevo‑a todas as sextas‑feiras, das nove da manhã até às três da tarde, com a
mesma vontade, a mesma consciência, a mesma alegria e muitas vezes com a mesma
inspiração com que teria de escrever uma obra‑prima.
Quando
não tenho o assunto bem definido deito‑me mal na noite de quinta‑feira, mas a
experiência ensinou‑me que o drama se resolverá por si só durante o sono e que
começará a fluir de manhã, a partir do instante em que me sente diante da
máquina de escrever. Não obstante, tenho quase sempre vários assuntos pensados
antecipadamente, e pouco a pouco vou recolhendo e ordenando os dados de
diferentes fontes e verificando‑os com muito rigor, pois tenho a impressão de
que os leitores não são tão indulgentes com as minhas argoladas como talvez o
fossem com o outro escritor de que preciso.
O
meu primeiro propósito com estas crónicas é que todas as semanas ensinem alguma
coisa aos leitores comuns e correntes, que são os que me interessam, embora
esses ensinamentos pareçam óbvios e talvez pueris aos sábios doutores que tudo
sabem. O outro propósito - o mais difícil - é que estejam sempre tão bem
escritas como eu seja capaz de fazer sem a ajuda do outro, porque sempre achei
que a boa escrita é a única felicidade que se basta a si própria. Impus‑me esta
servidão porque sentia que entre um romance e outro me restava muito tempo sem
escrever, e pouco a pouco - como os jogadores de beisebol - ia perdendo o
aquecimento do braço. Mais tarde, essa decisão artesanal converteu‑se num compromisso
com os leitores, e hoje é um labirinto de espelhos do qual não consigo sair. A
não ser que encontrasse, claro está, o escritor providencial que saísse por
mim. Mas receio que já seja demasiado tarde, visto que as únicas três vezes que
tomei a determinação de não escrever mais estas crónicas mo impediu, com o seu
autoritarismo implacável, o pequeno argentino que também eu tenho dentro.
A
primeira vez que o decidi foi quando tentei escrever a pri‑ meira, depois de
mais de vinte anos de não o fazer, e precisei de uma semana de galeote para a
terminar. A segunda vez foi há mais de um ano, quando estava a passar uns dias
de descanso com o general Omar Torrijos na base militar de Farallón, e o dia
estava tão diáfano que apetecia mais navegar do que escrever. «Mando um
telegrama ao diretor a dizer que hoje não há crónica, e pronto», pensei, com um
suspiro de alívio. Mas não consegui almoçar por causa do peso da má consciência
e, às seis da tarde, fechei‑me no quarto, escrevi numa hora e meia a primeira
coisa que me ocorreu e entreguei a crónica a um ajudante de campo do general
Torrijos para que a enviasse por telex a Bogotá, com o pedido de que a
mandassem de lá para Madrid e para o México. Só no dia seguinte soube que o
general Torrijos tivera de ordenar o envio de um avião militar ao aeroporto do
Panamá, e dali, de helicóptero, ao palácio presidencial, de onde me fizeram o
favor de distribuir o texto por algum canal oficial.
A
última vez, faz agora seis meses, que descobri ao acordar que já tinha maduro no
coração o romance de amor que tanto tinha ansiado escrever desde há tantos anos
e que não tinha outra alternativa senão nunca o escrever ou submergir‑me nele
de imediato e a tempo inteiro. Não obstante, na hora da verdade, não tive
tomates suficientes para renunciar ao meu cativeiro semanal, e pela primeira
vez estou a fazer uma coisa que me pareceu sempre impossível: escrevo o romance
todos os dias, letra por letra, com a mesma paciência, e oxalá com a mesma
sorte, com que as galinhas debicam nos pátios, e ouvindo cada dia mais perto os
passos temíveis do animal grande da próxima sexta‑feira. Mas aqui estamos outra
vez, como sempre, e oxalá para sempre.
Eu
já suspeitava que nunca escaparia desta jaula desde a tarde em que comecei a
escrever esta crónica na minha casa de Bogotá e a terminei no dia seguinte sob
a proteção diplomática da Embaixada do México; continuei a suspeitá‑lo na
estação de telégrafos da ilha de Creta, uma sexta‑feira do passado mês de
julho, quando consegui entender‑me com o funcionário de turno para que
transmitisse o texto em castelhano. Continuei a suspeitá‑lo em Montreal, quando
tive de comprar uma máquina de escrever de emergência porque a voltagem da
minha não era a mesma do hotel. Acabei de suspeitá‑lo para sempre faz apenas
dois meses, em Cuba, quando tive de trocar duas vezes as máquinas de escrever
porque se negavam a entender‑se comigo. Por último, levaram‑me uma eletrónica
de costumes tão avançados que acabei por escrever à mão num caderno de folhas
quadriculadas, como nos tempos remotos e felizes da escola primária de
Aracataca.
Todas
as vezes que acontecia um destes percalços apelava com mais ansiedade aos meus
desejos de ter alguém que se encarregasse da minha boa sorte: um escritor.
Contudo, nunca senti essa necessidade de um modo tão intenso como um dia de há
muitos anos em que cheguei à casa de Luis Alcoriza, no México, para trabalhar
com ele no guião de um filme. Encontrei‑o, consternado, às dez da manhã, porque
a cozinheira lhe tinha pedido o favor de escrever uma carta ao diretor da
Segurança Social. Alcoriza, que é um escritor excelente, com uma prática
quotidiana de caixa de banco, que tinha sido o escritor mais inteligente dos
primeiros guiões para Luis Buñuel e, mais tarde, para os seus próprios filmes,
tinha pensado que a carta seria um assunto de meia hora. Mas encontrei‑o, louco
de fúria, no meio de um montão de papéis rasgados, nos quais não havia muito
mais que todas as variantes concebidas da fórmula inicial: pela presente tenho
o prazer de me dirigir a V. Ex.a para...
Tentei
ajudá ‑lo, e três horas depois continuávamos a fazer rascunhos e a rasgar
papel, já meio bêbedos de genebra com vermute e empanturrados de chouriços
espanhóis, mas sem ter conseguido passar além das primeiras letras
convencionais. Nunca esquecerei a cara de misericórdia da boa cozinheira quando
voltou para vir buscar a sua carta às três da tarde e lhe dissemos sem pudor
que não tínhamos conseguido escrevê‑la. «Mas é muito fácil - disse ‑nos ela,
com toda a sua humildade. - Olhe lá.» Nessa altura começou a improvisar a carta
com tanta precisão e tanto domínio que Luis Alcoriza se viu em apuros para a
copiar na máquina com a mesma fluidez com que ela a ditava. Naquele dia - como
ainda hoje - fiquei a pensar que talvez aquela mulher, que envelhecia sem
glória no limbo da cozinha, fosse o escritor secreto que me fazia falta na vida
para ser um homem feliz."
O Escândalo do Século
Gabriel
García Márquez
Editora
D. Quixote Gabriel García Márquez revela o 'Escândalo do Século'
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