José Tagarro – "Auto-retrato" (1929), Museu Nacional de Soares dos Reis
* Mário Cláudio
Mais jovem do que se pinta, carrega a marca da labuta dos mondadores, homens de nuca tisnada num padrão de sulcos coriáceos, e de empinado traseiro, a devolvê-lo ao chimpanzé, nosso avoengo. O Tejo reconhecê-lo-á como filho, e os mineiros como irmão, votado a duas festas existenciais, a do desenho em que teima como um rupestre, e a da patuscada sazonal de eiroses e vinho tinto.
Avesso a fundas amizades, e a tratos prolongados, apenas uma vez por ano o descortinam, de cabelo abrilhantinado, no baile da Sociedade Filarmónica Cartaxense. Aí alternará a sua gráfica intuição com a aprendizagem do tango, solitário sempre, e da raça dos que parecem muito mais velhos do que as folhas correspondentes do calendário. Os passos esboçados à cadência do bandoneão, e o tosco arrebatamento da rapariga que ele aperta contra o peito, quedam-se aquém das evoluções do lápis, e do cheiro das tintas.
O autorretrato desenraíza-o da planície, e deixa-o a pairar entre as imagens de si. Antes de descer à vala comum dos ilustradores a nanquim, ou dos cartazistas a guache, uma vertigem o acomete. Mira-se ao espelho, indeciso entre reflexo e tela, e a nuvem azul de que emerge tem o tempo contado para a sua fixação.
Canhoto que a escola bem-pensante não foi capaz de corrigir, suspende-se da incerteza do crayon para entender a ousadia do seu gesto. O olhar vagueia-lhe pela indizível aguada, matéria do terceiro dia da Criação. Talentosíssima na sua dança, a pequena executa um ocho no chão de serradura empapada das chuvas, e ele despede-se pouco depois. Guardou na malinha de trolha os pincéis, as espátulas, os frascos, os panos, e uma navalha.
Meio pronto, o quadro aguarda o momento em que o escritor de causas extintas, obedecendo a um impulso em plena pandemia, se abeira de quantos comtemplarem um outro, ou a si mesmos se contemplarem, salvando a vida de se apagar.
https://expresso.pt/opiniao/2020-10-02-Jose-Tagarro
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