* Carlos Maria Bobone
Picuinhas, guloso, sensível e vaidoso até ao limite. Ao mesmo tempo, anormalmente inteligente e perspicaz, Poirot, criação perfeita de Agatha Christie, é referência obrigatória da literatura policial.
04 out 2020, 18:06
A 6 de Agosto de 1975 o New York Times abria com um estranho obituário. Agatha Christie tinha acabado de publicar Curtain: Poirot’s last case e o famoso detetive, que se deixara morrer no desenlace do mistério, tem direito a um elogio fúnebre nas páginas do jornal.
Esta despedida dá ideia do lugar que o pequeno detetive ocupou no imaginário contemporâneo: nunca personagem alguma tivera direito a um obituário no New York Times e mais nenhuma voltou a ter. Poirot, o grande detetive, conquistou o seu lugar entre as pessoas de carne e osso graças a umas brilhantes células cinzentas e à resolução dos mais intrincados mistérios.
Poirot teve direito a uma biografia escrita por Anne Hart e a uma imensa quantidade de adaptações televisivas. Tudo porque se há detetive que encarna na perfeição as delícias da literatura policial, esse detetive é Hercule Poirot.
Agatha Christie, na sua Autobiografia, conta que Poirot — que apareceu pela primeira vez no livro The Mysterious Affair at Styles, publicado em outubro de 1920 .. é escrito na esteira da literatura policial mais clássica: um detetive excêntrico, apressado na resolução dos casos pela competição com um inspetor da polícia menos capaz mas com mais meios ao seu dispor, e ajudado por um ingénuo seguidor que, como um provedor do leitor, obriga constantemente o herói a explicar os seus raciocínios.
[alguns dos melhores momentos de David Suchet como “Poirot”, na série televisiva feita a partir das histórias de Agatha Christie:]
Nisto, não é Poirot muito diferente do mais clássico dos clássicos, o detetive Sherlock Holmes; Agatha Christie, no entanto, dota o seu próprio detetive de uma subtileza que o torna, em certa medida, o oposto de Sherlock Holmes. Holmes é, nas obras de Conan Doyle, um positivista; Chesterton, num dos seus ensaios sobre literatura policial, já denuncia os limites de Sherlock Holmes: na verdade, não precisamos que o cérebro com as capacidades dedutivas mais exercitadas de que há memória seja ainda um apóstolo da ciência e da pura lógica sensível; não só a personagem se torna, mais do que coerente, redundante, como o próprio método diminui os mistérios. Não há nada de lógico em relevar pormenores desconsiderados; a notícia do mais vulgar, daquilo que escapa aos outros, é na verdade mais próprio de um cérebro imaginativo do que de um cérebro dedutivo. Agatha Christie percebeu isto ao fazer do seu detetive um homem ao mesmo tempo picuinhas e guloso, hiper-sensível e vaidoso até ao limite.
O que está em questão na vaidade é precisamente o exacerbar daquilo que aparentemente tem pouca importância. O orgulho de Poirot no seu cérebro torna-se ao mesmo tempo ridículo e interessante porque é uma variação pouco óbvia da personalidade interessada pelo pormenor. Da mesma maneira que Miss Marple é até um pouco aborrecida e tacanha, como se concentrasse a atenção naquilo que já não interessa, Poirot é um esteta dedicado aos pequenos prazeres – com uma óbvia ligação com a ideia de importância dada aos pormenores – e um vaidoso, isto é, alguém que remói os seus feitos (como os indícios) por mais tempo do que à partida seria necessário.
A vida de Poirot tem uma coerência surpreendente para uma personagem de ficção a quem a autora nunca dedicou uma biografia de facto. Embora Christie diga que já nos primeiros livros o imaginava velho, característica que as longas décadas de mistérios obrigaram a matizar, a verdade é que é possível traçar uma biografia coerente de Poirot sem grandes contradições entre os livros. Um antigo inspetor da polícia belga, refugiado em Inglaterra depois da invasão alemã na primeira guerra mundial, Poirot instala-se primeiro em Styles, lugar do seu primeiro mistério, e vai ganhando fama e dinheiro com a resolução de novos crimes. Começa por trabalhar para o governo, mas é como detetive privado que ganha a folga financeira que lhe permite viver com o requinte que deseja.
Poirot disserta várias vezes sobre os tipos de crimes e sobre a psicologia dos criminosos, sobre os tipos de arma usados nos crimes premeditados e nos crimes passionais, sobre os meios tipicamente femininos ou masculinos, mas pouco tem a dizer sobre a moral.
Com o passar dos anos, a galeria de personagens vai-se tornando mais complexa: Hastings, Miss Lemon, todos vão cumprindo os seus papéis no mundo de Poirot; o processo, no entanto, é sempre parecido e é esse que torna os livros de Poirot uns dos mais interessantes no que toca ao enredo policial propriamente dito. Pode haver detetives mais complexos, como Perry Mason ou o espião George Smiley; mas não histórias policiais com um enredo tão bem montado quanto as de Poirot.
A grande força dos enredos de Christie-Poirot está na montagem de uma galeria de personagens cheia de segredos, muitas delas dispostas a sacrificar reputações para proteger aqueles que amam, muitas outras a viver segundas vidas incógnitas, de tal maneira que os segredos se intrometem no crime e dificultam a sua resolução. O processo passa, assim, pela resolução de um encadeado de mal-entendidos e mistérios paralelos que tornam a História mais do que a resolução de um momento. Aquele que é o grande defeito da literatura policial – o facto de ser uma literatura concentrada num momento, de tal modo que toda a história funciona apenas como uma ferramenta para alcançar uma resolução – é nas histórias de Poirot ultrapassado pelo complexo de tramas paralelas que obscurecem a visão do detetive.
Agatha Christie tem sempre a preocupação de, não apenas encontrar um criminoso plausível, mas de encontrar o único criminoso possível. Ora, esta preocupação retira alguma arbitrariedade ao jogo de enganos e compromete o leitor com a história. A necessidade de termos aquele criminoso e não outro faz com que a resolução não se torne uma escolha da autora, a que o leitor assiste passivo, mas sim uma espécie de consequência necessária da história, que o leitor pode por isso descobrir.
▲ Os mistérios de Poirot são prova da capacidade de Agatha Christie resistir à cristalização do seu modo de raciocinar e implicam uma montagem que é, só por si, um tratado de engenharia
À medida que a mestria de Agatha Christie se foi aprimorando os casos foram, do ponto de vista técnico, ganhando cada vez mais complexidade. Dos casos em que um jogador de Bridge é assassinado numa sala fechada, tornando suspeitos apenas os 3 jogadores vivos, ao caso em que a culpa do narrador é escondida até ao fim, Agatha Christie vai explorando a sua capacidade inventiva num jogo de possibilidades cada vez menores, em que as possibilidades de resolução se vão tornando cada vez mais apertadas.
Dos grandes detetives que a ficção nos trouxe, Poirot é provavelmente aquele em que o magnetismo do crime produz menos efeito ao longo da vida. É certo que Poirot admira a “inteligência” de alguns crimes; no entanto, a ideia de impunidade para aqueles capazes de perceber as estruturas dos grandes crimes, a tentação do outro lado, tudo isso parece em Poirot – pelo menos até à sua morte – algo distante. A estrutura moral de Poirot, um refugiado, a quem o despeito de se encontrar sem emprego antes de abrir a sua agência podia levar para lados mais negros, é por isso bastante curiosa. Poirot disserta várias vezes sobre os tipos de crimes e sobre a psicologia dos criminosos, sobre os tipos de arma usados nos crimes premeditados e nos crimes passionais, sobre os meios tipicamente femininos ou masculinos, mas pouco tem a dizer sobre a moral.
Mais do que os mistérios, porém, fica a personagem. Poirot é ainda hoje o protótipo do detetive, a suprema demonstração do poder da inteligência, capaz de ver ao mesmo tempo com o máximo pormenor e a maior largueza.
A ideia de justiça em Poirot é bastante sui generis. Poirot não é propriamente um detective amoral, no sentido em que, ao contrário de Holmes, por exemplo, sofre com os crimes, mas é sobretudo um detective à maneira iluminista, isto é, alguém que acredita que o bem está no esclarecimento. Mais do que o bem, Poirot quer a verdade, e é dessa verdade que virá o bem. Juntam-se os pares amorosos tornados suspeitos pelos segredos, reconciliam-se pais e filhos, numa ideia de que o segredo e a ocultação acabam por provocar o mal, de um modo que a clareza impede.
Há casos de Poirot verdadeiramente ontológicos, prodígios de inventividade da parte da criadora e provas excecionais de inteligência da parte do detetive. Os crimes do ABC, Roger Ackroyd, o Crime do Expresso do Oriente, Cartas na Mesa, todos estes mistérios são prova da capacidade de Agatha Christie resistir à cristalização do seu modo de raciocinar e implicam uma montagem que é, só por si, um tratado de engenharia.
Mais do que os mistérios, porém, fica a personagem. Poirot é ainda hoje o protótipo do detetive, a suprema demonstração do poder da inteligência, capaz de fazer de uma figura de palmo e meio, de bigode levantado e sotaque carregado, um grande Homem, capaz de ver ao mesmo tempo com o máximo pormenor e a maior largueza.
observador.pt/especiais/cem-anos-de-hercule-poirot-a-historia-e-o-legado-do-genial-detetive/
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