* Luís Francisco
Sempre que
ouvia a estimativa de 8.000 mortes portuguesas na Guerra do Ultramar, Pedro
Marquês de Sousa, tenente-coronel do Exército, sentia-se desconfortável. Quase
cinco décadas após o fim do período colonialista, Portugal continuava a não
ter, sequer, um balanço fiável das vítimas mortais do conflito que desgastou o
País durante mais de uma década e esteve, em última análise, na origem do
movimento militar que depôs o regime do Estado Novo, em 1974. Depois de muito
trabalho de investigação, o investigador e também professor na Academia Militar
chegou a números bem mais pesados: morreram quase 10.500 militares portugueses
em Angola, Guiné e Moçambique. No total, incluindo as baixas dos movimentos
independentistas e entre a população civil, a guerra em África fez quase 45 mil
mortos e 53 mil feridos. "E podem ser mais", assegura o autor do
livro Os Números da Guerra de África, publicado pela Guerra & Paz. Uma obra
que compila de forma exaustiva números durante tanto tempo esquecidos ou varridos
para debaixo do tapete da burocracia. "Enquanto professor na Academia
Militar, sempre incentivei os meus alunos a debruçarem-se sobre a Guerra
Colonial. Eu próprio senti a necessidade de mergulhar no assunto. A estimativa
de 8.000 mortes era injusta; não cobria, sequer, as baixas militares
portuguesas, muito menos as perdas entre os movimentos independentistas e na
população civil. "Pelas contas de Pedro Marquês de Sousa morreram 10.425
militares portugueses, 6.000 civis e 28.226 elementos dos movimentos separatistas.
As estimativas de feridos graves apontam para 31.300 na tropa lusitana, 12.200
entre os civis e 9.450 nos movimentos de libertação.Estes números não são – nem
podiam ser – definitivos, mas são uma base de trabalho fiável, construída com a
consulta dos documentos da época disponibilizados pelas hierarquias militares –
embora na Marinha haja ainda documentos classificados, a que os investigadores
não têm acesso. É inevitável a perplexidade: como é que nunca tinha sido feito
um levantamento rigoroso das baixas na Guerra de África? "Eu já não estou
no ativo e não passei pela guerra – tenho 53 anos –, mas como militar há um
embaraço… A sociedade portuguesa não conhece bem este conflito. Talvez não
tenha ainda decorrido tempo suficiente para se criar um distanciamento que
permita a abordagem científica do tema."A força dos números
A guerra em
África foi o maior conflito da História recente de Portugal e teve um peso
impressionante sobre o desenvolvimento do País nas décadas de 60 e 70 – a
compra de corvetas para a Marinha implicou pagamentos até 1981. Na fase final
do conflito, estavam destacados 163 mil militares no Ultramar, um esforço de
guerra nunca visto num País que na altura tinha cerca de 8,5 milhões de
habitantes. Pedro Marquês de Sousa faz a radiografia da organização, da
logística, das atividades e das baixas desta imensa força militar. Mas analisa
também o efeito que a guerra teve na metrópole, nas contas públicas (mais de 3%
do Orçamento era encaminhado para o esforço militar e em 1973 o conflito
absorveu cerca de 3,5 mil milhões de euros, feita a conversão para a moeda e a
realidade atual), na sociedade portuguesa. Até em aspetos que pouco pareceriam
ter a ver com o conflito: os casamentos de homens com menos de 20 anos, por
exemplo, duplicaram após o início da guerra, em Angola, corria o ano 1961. A
ideia era evitar o destacamento para África por ter uma família para sustentar,
mas não funcionou.Em 1962, mais de 15% dos incorporados eram analfabetos. Um
número que caiu para menos de metade no fim da década, mas com efeitos
perversos, do ponto de vista do Estado Novo. Explica o autor: "À medida
que o conflito se foi prolongando, os oficiais milicianos [o serviço militar
obrigatório era responsável por 90% do contingente das unidades regulares] já
tinham cultura política, absorvida nas universidades numa década muito ativa a
esse nível. Ora pôr
estes homens a liderar unidades de combate numa guerra em que não acreditavam não podia dar bom resultado…"
230 mil
"fugiram" à guerra
E estes eram os
que iam para a guerra. Porque um dos dados que mais surpreenderam o
investigador foi mesmo o de faltosos e desertores. O regime escondeu durante
muito tempo a verdadeira dimensão desta recusa de pegar em armas, que explica
também a dimensão avassaladora de outro fenómeno que marcou a demografia
portuguesa neste período: a emigração (triplicou no período da guerra). Na
década de 70, um em cada cinco jovens (20%) que deveriam apresentar-se à
inspeção militar já não se encontravam em Portugal. Registaram-se 202 mil
faltosos, a que se juntam 20 mil refratários e cerca de 9.000 desertores – ou
seja, quase um quarto de milhão de jovens portugueses (230 mil)
"fugiram" à tropa.Nos teatros de operações, e apesar do recrutamento
maciço, havia, ainda assim, poucos soldados, na maioria mal treinados, mal
armados e equipados, sujeitos a condições miseráveis e a uma máquina de guerra
obsoleta e incompetente. "Os militares sentiram na pele a incapacidade do
poder político para gerir a guerra. Não é por acaso que foram eles a depor o
regime, aliás como já tinha acontecido depois da I Guerra Mundial, embora aí
num sentido político completamente inverso", analisa
Pedro Marquês
de Sousa. O autor adianta que fica ainda por fazer o trabalho de comparar a
guerra de África com outros conflitos similares, envolvendo tropa regular de um
lado e forças de guerrilha do outro. Como o do Vietname, por exemplo.Mas há
números que nos dão algumas pistas também nessa vertente. Em Angola, Guiné e
Moçambique havia 5 soldados portugueses para cada combatente dos movimentos de
libertação. No Vietname (EUA vs. guerrilha norte-vietnamita), essa relação
chegou a ser de 9 para 1, na Argélia (França vs. independentistas argelinos)
era de 50 para 1. E em nenhum destes conflitos as forças regulares levaram a
melhor. Mesmo recorrendo a meios de ética militar muito para lá do duvidoso.
"Não se falava muito nisso, mas quando se perguntava se as tropas
portuguesas usaram napalm nos teatros de guerra em África, a resposta era
normalmente ‘nim’…", salienta Pedro Marquês de Sousa. "Neste livro,
pelos números apresentados, fica bem evidente que se utilizou. Muito."
Fonte: Luís
Francisco, artigo em 10/10/2021 (Visão)
https://www.sabado.pt/vida/detalhe/quantos-morreram-na-guerra-colonial
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