sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Ricardo Reis - Deixemos, Lídia, a ciência que não põe

* Ricardo Reis 

Deixemos, Lídia, a ciência que não põe

Mais flores do que Flora pelos campos,

        Nem dá de Apolo ao carro

        Outro curso que Apolo.

Contemplação estéril e longínqua

Das coisas próximas, deixemos que ela

        Olhe até não ver nada

        Com seus cansados olhos.

Vê como Ceres e a mesma sempre

E como os louros campos entumece

        E os cala pràs avenas

        Dos agrados de Pã.

Vê como com seu jeito sempre antigo

Aprendido no orige azul dos deuses,

        As ninfas não sossegam

        Na sua  dança eterna.

E como as hemadríades constantes

Murmuram pelos rumos das florestas

        E atrasam o deus Pã

        Na atenção à sua flauta.

Não de outro modo mais divino ou menos

Deve aprazer-nos conduzir a vida,

        Quer sob o ouro de Apolo

        Ou a prata de Diana.

Quer troe Júpiter nos céus toldados,

Quer apedreje com as suas ondas

        Neptuno as planas praias

        E os erguidos rochedos.

Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.

Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.

        Por isso as esqueçamos

        Como se não houvessem.

Colhendo flores ou ouvindo as fontes

A vida passa como se temêssemos.

        Não nos vale pensarmos

        No futuro sabido

Que aos nossos olhos tirará Apolo

E nos porá longe de Ceres e onde

        Nenhum Pã cace à flauta

        Nenhuma branca ninfa.

Só as horas serenas reservando

Por nossas, companheiros na malícia

        De ir imitando os deuses

        Até sentir-lhe a calma.

Venha depois com as suas cãs caídas

A velhice, que os deuses concederam

Que esta hora por ser sua

Não sofra de Saturno

Mas seja o templo onde sejamos deuses

Inda que apenas, Lídia, pra nós próprios

Nem precisam de crentes

Os que de si o foram.

s.d.

Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994). 

 - 162.

 

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