quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

O rumor vivo da esperança na obra de Papiniano Carlos

N.º 1825 
20.Novembro.2008

  • Domingos Lobo 

«SONHAR A TERRA LIVRE E INSUBMISSA»

Estou a reler, tantos anos volvidos, Terra Com Sede, numa cuidada 2ª. Edição, de 1969, da Editora Inova. Foi este um dos livros que escolhi para me resgatar, por instantes breves mas absolutos, ao absurdo da guerra colonial, quando o fascismo salazarento me impôs guia de marcha e o Vera Cruz me despejou no sofrido chão de Angola.
É estranho e salutar a um tempo, rever estas histórias e relembrar, em nostalgia mansa, os meus deslumbrados 20 anos, quando trazia os medos à ilharga – imperceptíveis e inconscientes – mas transportava aos ombros, incrédulos, os sonhos todos do mundo e verificar agora, na serenidade dos meus sessenta e picos, que este livro também fala disso, de gente que mesmo amordaçada, mesmo sentindo a pata bestial da opressão sobre os seus dias cercados, não deixou de cantar, de sorrir, de sonhar.

Terra Com Sede traz atado à prosa enxuta do nosso mais pujante neo-realismo, uma galeria diversa e fecunda de personagens vivas, excessivas, brilhantes, saídas dos montes, das praças, dos escusos sombrios dos casebres de aldeia: alegres, tristes, ébrios de vinho e sonhos – como o João Travanca do conto «Nana é Tocador de Harmónica» – trágicos, estranhos, perdidos em lugares onde «o Diabo folga à noite», com lágrimas de dor e raiva mas com o coração ligado à voz e a alma a transbordar de uma incansável esperança.
Terra Com Sede é o livro de um poeta maior que transportou para a prosa a claridade solar do verso transgressor, corajoso e límpido e a preencheu de vozes múltiplas, intensas, num uníssono e vigoroso coro colectivo, trazidas desse universo real e doloroso, desse chão de lava em que mourejava este povo humilhado e sofrido. A saga heróica que este livro releva, está patente no conto Eu Sou o Chico Miana, onde o autor, com ortoépico comedimento, ergue a figura de um herói popular, como uma exemplar rarefacção e mestria oficinal. Neste livro magnífico a sintaxe, a expressividade do léxico popular, transforma-se, ganha uma outra sonoridade, uma impressiva loquacidade como só encontramos em Aquilino Ribeiro.

Depois, esta fala, por vezes áspera e rude, vivifica-se, torna-se música dulcíssima para contar aos mais novos, de forma apaixonadamente pedagógica, em vibratto jubiloso, as histórias fantásticas de A Menina Gota de Água, ou percorre-nos as veias do corpo como quem viaja pelas águas do Amazonas, pelo Volga, pelo Nilo, pelo Yang Tsé, nessa fabulosa Viagem de Alexandra, que já anda, se as contas me não falham, pelos bem puxados 20 mil exemplares – é obra!

A poesia, essa, comecei por ouvi-la, cantada de forma sublime pelo Coro da Academia de Amadores de Música, com arranjo e partitura do nosso querido Fernando Lopes-Graça. A poesia, plana ou heróica, lírica ou épica, só se ergue plena em sua função metamórfica, se dita ou cantada pela voz do Povo. Esse emotivo encontro aconteceu numa sessão semi-clandestina organizada pela também semi-clandestina APTA – Associação Portuguesa de Teatro de Amadores, no salão dos Bombeiros, em Loures. Após o vibrante Acordai!, fez-se um breve silêncio para homenagear Catarina Eufémia e o maestro deu os tons e o coro começou a entoar, quase em surdina, os primeiros versos de Canção: «Na fome verde das searas roxas/passeava sorrindo Catarina», Catarina enfrentando os esbirros, as espingardas, o sol doido num céu inclemente, sangrando dir-se-ia, mas sem vergar, peito e corpo de mulher e mãe, de multidão, contra o medo, contra a servidão, trinta balas/ te mataram a fome, Catarina. Estávamos em Setembro, 1971, andava o Outono a insinuar-se no descarnado das árvores, num frio ténue. Só tivemos Primavera em Abril, 3 anos depois.

Da poesia de Papiniano Carlos lembro esse livro primeiro, de um realismo ardente mas jubiloso, de cadência assumidamente tradicional, mas já com ardis nas intenções doutrinárias detectáveis no sub-texto: Mãe-Terra, de 1949. Um nostálgico e sentido apelo às raízes mas corajoso na implícita denúncia. Mas, para mim, de todos o mais formalmente conseguido, rigoroso e maduro, de um descomplexado companheirismo geracional e político, por onde caminharam as vozes de Luís Veiga Leitão, Egito Gonçalves e tantos outros, representando já um grau superior da arte onde se fundem, em sagaz conciliábulo, uma linguagem iluminada e crítica, o lírico e o deslumbre das paisagens naturais e humanas (esse território perene de todos os afectos, onde o olhar do poeta se demora sensitivo), que transforma esta poesia num dos momentos mais raros no nosso neo-realismo. Falo, naturalmente, desse belíssimo Caminhemos Serenos.

Caminhemos serenos
Sob as estrelas, sob as bombas,
sob os turvos ódios e injustiças,
no frio corredor de lâminas eriçadas,
no meio do sangue, das lágrimas
caminhemos serenos.

De mãos dadas,
através da última das ignomínias,
sob o negro mar da iniquidade
caminhemos serenos.
Sob a fúria dos ventos desumanos,
sob a treva e os furacões do fogo
aos que nem com a morte podem vencer-nos
caminhemos serenos

o que nos leva é indestrutível,
a luz que nos guia connosco vai.
E já que o cárcere é pequeno
para o sonho prisioneiro,
já que o cárcere não basta
para a ave inviolável,
que temer, ó minha querida?
Caminhemos serenos.

No pavor da floresta gelada,
através das torturas, através da morte,
em busca do país da aurora,
de mãos dadas, querida, de mãos dadas
Caminhemos serenos


Este livro de 1957, mas ainda hoje actualíssimo na frontalidade serena com que assume a urgência da dignidade do humano, na forma como expressa e capta o real armadilhado, nos modos de dizer a esperança e a coragem, de descascar subtilmente a violência dos dias amargos e das dores surdas. Um livro claro, ácido por vezes, certeiro, à espera que a ele regressemos com vagar para podermos recuperar o ânimo e o sentido do caminho justo que, por vezes, na voragem destes dias azedos, nos parece fugir do chão.

Entre o território (difícil) da literatura para a infância e juventude, o conto, a dramaturgia, a poesia e, a espaços, o ensaio (Papiniano Carlos dirigiu, em tempos ainda mais agrestes, a secção crítica da Vértice), o seu labor literário não esmorece e continua pujante de inventiva e criatividade. Aos 89 anos, vivendo arredado dos círculos literários (que, de resto, nunca o seduziram) Papiniano Carlos continua o projecto iniciado em 1942, com Esboço: sem desfalecimentos nem cedências. Escreve contra o silêncio. Escreve para transformar a vida, dar-lhe, através da palavra, um rosto mais humano e justo, dado que «agora, amigos, com a noite, eu vos falarei longamente – e estou cheio de esperança». ~

Que a tua fala perdure longamente, para que possamos juntos, de novo, sonhar a terra livre e insubmissa – que esse sonho se transfira do rumor aceso dos teus versos para o real da vida.

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