segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

À conversa sobre os problemas que nos põe o teatro de Harold Pinter

AqTranscrição nem sempre fiel mas aprovada pelos participantes do que foi dito no Rivoli- Teatro Municipal do Porto no dia 27 de Março de 2002, numa sessão em que foram lidos os textos O Exame, A Nova Ordem Mundial, Língua da Montanha e Conferência de Imprensa pela Assédio e pelos Artistas Unidos.
Paulo Eduardo Carvalho - Permito-me partir de O Exame (The Examination), que aceitei reescrever em língua portuguesa, para um espectáculo produzido pelo Cão Solteiro, estreado em Agosto do ano passado, em Lisboa, com encenação de Nuno Carinhas. Este texto em prosa, datado de 1955, parece-me sintetizar, no seu invulgar excesso verbal, uma visão muito recorrente na dramaturgia de Pinter das relações humanas como uma busca de domínio e de controlo - fala-se aqui diversas vezes em "prevalecer", "posição vantajosa", "prevalência", em imposições e concessões, jogos de domínio e de sobrevivência. Igualmente expressiva é a falta de dados biográficos sobre as personagens desta ficção e a ambiguidade do que dizem ou fazem, um território dramatúrgico que, como o próprio Pinter já uma vez sugeriu, "é não só merecedor de exploração, mas que é obrigatório explorar". Fala-se muito em O Exame do silêncio, das diversas qualidades do silêncio, da sua utilidade como arma de controlo, do seu poder político e subversivo. Kullus é "convocado" para um "Exame" ou "interrogatório", num tipo de situação dramática que antecipa muitos dos interrogatórios de peças futuras de Pinter, desde as mais políticas como Um Para O Caminho (One for the Road, 1984) ou Língua Da Montanha (Mountain Language, 1988) até aquelas mais discretamente conjugais, mas não menos políticas por isso, como Cinza Às Cinzas (Ashes to Ashes, 1996). Mas é, sobretudo, da gestão do silêncio por Kullus que nos fala este narrador, das suas viagens "de silêncio em silêncio", da "intensidade" do seu silêncio, de um silêncio, por vezes, "demasiado fundo para qualquer eco", do efeito desconcertante do silêncio e do modo como este narrador/inquisidor, de retórica tão singular, acaba "isolado, fora do... silêncio". Se invocarmos a sugestão de Pinter de que o discurso "é um constante estratagema para cobrir a nudez", poderemos sugerir, como hipótese de leitura, que o narrador desta estranha ficção acaba condenado pela qualidade mais vulnerável do seu próprio "silêncio", aquele que se traduz numa torrente de linguagem. O Exame encena ainda uma espécie de minúsculo drama sobre deslocações territoriais e derrotas psicológicas. A vitória artística de Pinter é traduzir esta visão do mundo em termos dramáticos e visuais, e daí a importância da rigorosa geometria espacial, em O Exame, entre porta, lareira, janela, banco, cortina e quadro...
Ao fazermos Cinza Às Cinzas tínhamos pensado articular esta peça com A Nova Ordem Mundial (The New World Order, 1991) e Língua da Montanha (Mountain Language, 1988), dois textos representativos da já referida produção dramática "ostensivamente" política de Pinter. A Nova Ordem Mundial é um retrato brutal da tortura, mas, uma vez mais, a estratégia do dramaturgo passa por uma interrogação funda da linguagem e do que ela significa: nesta peça, a linguagem surge reduzida a uma espécie de bélica exibição destrutiva. Num momento muito particular do texto, um dos torcionários funde o amor e a morte, numa demonstração perturbadora de que torturar pessoas pode ser uma experiência mais extática e transcendente do que o amor entre os seres humanos. Mais uma vez, a peça funciona porque o dramaturgo escolhe como estratégia e perspectiva a perversão no uso da linguagem, tanto através do questionamento dos seus modos de produzir sentido como através da dramatização da situação mais extrema de ausência de sentido, traduzida aqui na ausência de reciprocidade: o homem vendado não pode falar. Língua Da Montanha é uma peça longinquamente inspirada pela experiência de supressão da língua curda, embora o seu tema seja, nas palavras do próprio dramaturgo, "a supressão da linguagem e a perda da liberdade de expressão". Esta apresentação sublinha a sua relevância, contrariando a divisão fácil entre "Eles" e "Nós", isto é, as tiranias moralmente falidas e as supostamente superiores democracias ocidentais. Tal como em A Nova Ordem Mundial, fala-se aqui do arbítrio do poder e da tendência para suprimir quaisquer perspectivas que contradigam a ortodoxia dominante. E tal como em Cinza Às Cinzas, nesta peça Pinter executa habilmente uma fuga ao realismo, transmitindo ao público, através de vozes gravadas, os pensamentos dos prisioneiros e visitantes impedidos de comunicar, sugerindo também, deste modo, que a linguagem, além de ser o instrumento do opressor, pode também ser o veículo para a salvação das vítimas. Mais uma vez, e para além das eloquentes imagens teatrais sugeridas pelo dramaturgo, é quase a nível microscópico que se denuncia a perversão linguística: as referências ao "crime" e ao "pecado" estão aqui como subtis metonímias da Igreja e do Estado, do mesmo modo que, numa das cenas, o cenário de amor evocado pelo diálogo entre os amantes surge estilhaçado pelo modo como abusivamente as autoridades aplicam o verbo "foder".
Jorge Silva Melo - Uma das coisas que eu acho mais curiosas na história teatral dos textos de Pinter pelo mundo, tirando Inglaterra, onde foi regularmente feito por um muito grande encenador, Peter Hall, é que ele foi quase desconhecido pelos chamados grandes encenadores do continente (aquilo com que os ingleses designam o que está abaixo do Canal da Mancha, esse lugar para eles estranho onde não se comem ovos estrelados ao pequeno almoço). Os continentais e os encenadores ignoraram, à excepção, creio eu, de Roger Planchon (que fez uma famosa encenação de No Man's Land) e dum enorme conflito que ficou histórico com Luchino Visconti que encenou em Roma Old Times. Todos os outros foram encenadores do continente chamados 'rotineiros'. Ou esse laborioso e sempre atento Claude Régy que descobriu Pinter em França, como descobriria mais tarde Motton, Harrower, Fosse. Porquê? Porque Pinter nascido, crescido dentro do teatro, actor (daquelas companhias de reportório inglesas onde começavam a ensaiar à segunda-feira uma peça, à noite representavam outra e ao sábado estreavam a que tinham começado a ensaiar na segunda-feira.), Harold Pinter nasce nesse teatro, com digressões, convenções e nesse reportório convencional - peças policiais, pequenas comédias de boulevard ou regionais, alguns clássicos feitos no mesmo esquema segunda-feira-sábado. Harold Pinter escreve-encena. É o encenador absoluto das peças que escreve, não só porque também as dirigiu no palco. A sua escrita condiciona de tal forma as coisas, é de tal forma meticulosa - não é só nas rubricas, mas na própria escrita - que os encenadores quase não têm nada que fazer a não ser aquilo de que não gostam: seguir à letra, obedecer. Há uma observação muito curiosa do Peter Stein - citado por Michael Billington na sua excelente biografia de Harold Pinter - que ao ver na produção original The Homecoming, no Aldwych, em Londres, numa encenação do Peter Hall, terá confessado: "Isto é o que eu quero fazer" (Stein era ainda assistente de Kortner e aprendiz do seu apolíneo classicismo), "é o que eu quero fazer, mas não com estas peças onde não tenho nada a fazer, está tudo feito. Quero aplicar esta secura, esta nitidez aos clássicos." E daí a pouco tempo ele está a fazer o Príncipe de Homburgo, o Peer Gynt e com o tal distanciamento semi-irónico, a tal frieza objectiva que Harold Pinter tem sempre nos seus textos. E o primeiro Botho Strauss (na altura dramaturgista de Stein) muito terá importado - sem, contudo, nunca o referir - da análise, do laconismo e do sentido da ambivalência do real de Harold Pinter, em peças como Die Hypochonder de 1971 e Bekannte Gesichter, Gemischte Gefühle de 1974. Aliás, a estreia de Harold Pinter na Scahubühne será precisamente com The Homecoming dirigida, muitos anos depois, pelo assistente dilecto de Stein, Jürgen Kruse. Se Harold Pinter se entendeu bem com Peter Hall e com Claude Régy, é sintomático o seu publicitadíssimo conflito em 1973 com Luchino Visconti que dirigia no Teatro Argentina de Roma Old Times. Trata-se de uma peça estranhíssima, belíssima, um dos seus textos maiores: um homem e duas mulheres, e há uma "cena primitiva" em que um homem viu em tempos, num cinema de bairro, um filme de Carol Reed, Odd Man Out - em português o filme chamava-se Casa Cercada. Enquanto se procuram os indícios do passado, há uma única certeza: na sessão de cinema, duas arrumadoras entregam-se a jogos eróticos. Na acção da peça nós não chegamos a perceber se aquelas duas amigas (a esposa e a melhor amiga) foram ou não amantes, talvez tenham sido, a palavra inglesa é girlfriend (colega? companheira? companheira de quarto? amante? Namorada?). Estamos na situação muito proustiana. Como na Recherche, um livro que há muito tempo obceca Pinter, e sobre o qual trabalhou num guião para Losey, não está o homem a mais naquelas relações? Visconti, encenador, tinha de dizer alguma coisa, interpretar o mistério, a ambivalência do texto. E esclareceu e pôs as duas mulheres aos beijos, as actrizes Adrianna Asti e Valentina Cortese. Pinter soube disto, meteu-se num avião, foi a Roma e proibiu as representações. Enquanto, na belíssima encenação de Peter Hall o que se passava - ou tinha passado - entre Dorothy Tutin e Vivien Merchant permanecia no reino do incerto e do improvável (aquilo sobre o que não há provas.), uma opção era tomada em Roma: o "encenador do continente" é suposto explicar, e não apenas ser um executante. Na música clássica, até há pouco tempo, também o bom maestro era aquele que só punha claramente em som o que era garatuja de compositor. É assim o encenador em Inglaterra ou nos Estados Unidos. E há brilhantes encenadores dessa limpeza, desta secura, desta modéstia, deste amor não narcisista. A sua oficina é artesanal, muitas vezes técnica, a sua direcção seguramente pragmática. Na tradição continental é ao contrário: colonizados por Reinhardt, os encenadores sentem-se na obrigação não apenas de pôr uma obra de pé mas de acrescentar um ponto como quem um conto conta. Ao encenador é pedida uma marca, uma visão, quando não "um mundo". Ora Pinter escreve-encena, os seus textos são modestos exercícios já no palco, não se prestam a cambalhotas estilísticas. Por exemplo, exigem dos encenadores coisas de que estes se libertaram (no continente) a partir dos anos 60: mesas, cadeiras e portas. Quase não há, no "grande teatro de encenador" essas coisas banais de que é feito o teatro de boulevard, mesas, cadeiras e portas. Pinter coloca-nos a nós, filhos incertos do teatro da encenação, no coração deste enigma: que teatro é este já escrito-encenado, que textos são estes já determinadamente encenados? Como é que é possível termos ainda cadeiras e mesas e sofás, ou seja aquilo que foi vulgarizado pela sitcom, como é que é possível falar de um mundo através desses elementos tão banalizados actualmente.
Por se colocar ostensivamente ao invés das directrizes da comunidade dos encenadores, este teatro - também do ponto de vista cénico - interessava-me. Interessava-me um teatro que vem do teatro mas não necessariamente do teatro - ultraromântico? - de efeito cénico à la Max Reinhardt. Pinter, vindo do teatro de reportório, vindo de um teatro popular, é muitíssimas vezes mais grosseiro, muitíssimo mais teatralão do que aquilo que nós imaginamos. Christine Boisson, que em França fez, na encenação do próprio Pinter na Comédie Française o Cinza Às Cinzas, diz que "foi uma enorme surpresa, julgava que ele me ia exigir as pausas que estão lá escritas, que me ia exigir frieza, clareza na elocução. Não, quis emoção, vivacidade, desrespeito absoluto por estas coisas." É talvez assim o Pinter encenador. Não o Pinter escritor. O Pedro e eu vimos o ano passado o One For The Road representado pelo próprio Harold Pinter numa encenação de Robin Lefebvre. Era estranho, porque era também teatralão, quase teatro popular, teatro antiquado, uma amiga nossa disse-nos no outro dia que aquilo até lhe fazia lembrar o teatro de paróquia. Era antiquado e representadíssimo, tudo apontado e bem sublinhado.

Recentemente vimos No Man's Land, uma das suas peças mais enigmáticas (o John Gielgud fê-la durante dois anos em Londres e em Nova Iorque e disse, "eu já representei isto duzentas e quarenta vezes e ainda não percebi o que é que se se passa"), fascinante, um jogo. É uma peça equivalente, no mundo do Pinter, ao Endgame do Beckett. Passa-se entre quatro homens, é tudo muito estranho embora não pareça, com os mesmos jogos de dominação das outras peças, na mesma sala das outras peças, só que aqui é uma sala em Hampstead Heath, num bairro mais do que muito elegante de Londres, com boa biblioteca e boa lareira, mas é o mesmo ambiente de dominação ou talvez não, talvez fim de vida, talvez não de fim de vida, como no Endgame, com a qual tem algumas semelhanças (e tantas diferenças desde logo ao nível da sua inserção no "real" e na "tradição teatral"). Eu tinha visto a produção original, dirigida pelo Peter Hall, com o John Gielgud e o Ralph Richardson em 1975 e, tanto quanto me lembro, era um espectáculo de uma elegância extraordinária, longuíssimo, miraculoso, cheio de enormes silêncios, suspensões. Como o Peter Hall consegue ainda fazer, realmente suspenso. Há uma cena em que o Ralph Richardson ia pousar o copo na lareira, não alcançava, caía ao chão de bêbedo: mas tudo com imenso tempo, em câmara lenta sem o ser, era suspenso, dir-se-ia um Ariel da Tempestade. Na recente encenação do próprio Harold Pinter com o Corin Redgrave e o John Wood a fazerem os papéis do Gielgud e do Richardson, este momento era grosseiro, sublinhado, apoiado, como se ouvesse medo em poetisar o real. O que é curioso. Senti uma espécie de vontade de teatro popular nestes esquemas enigmáticos. É curioso pensar que o Beckett teve a mesma vontade: quis tanto que as suas peças, que pareciam tão enigmáticas, tão estranhas, tão etéreas, fossem representadas por palhaços, por cómicos. É isso que, se calhar, os encenadores que não são o próprio Pinter não conseguem, receiam ainda, na elegância da própria escrita do Pinter, descobrir. Isso é uma das tarefas que eu gostava de vir descobrindo nestes três anos que me propus, dentro dos Artistas Unidos e com vários amigos, entre os quais aqui os Assédio, a Solveig Nordlund ou os Actores Produtores Associados, ir trabalhando várias peças do Pinter até conseguirmos ser realmente vulgares e grosseiros. Para vos dar ainda um exemplo da eficácia teatral do Pinter e de como ele condiciona a encenação: um daqueles problemas que os actores têm. desde que há actores e que fazem rir: "O que é que se faz quando o público ri? Ataca-se logo a frase a seguir ou espera-se que comece a morrer a gargalhada?" Há duas escolas: a que espera que comece a morrer a gargalhada é a escola mais popular - e os mais sérios, os que dizem que não, tem de se falar mesmo que o público ria, "nós não sabemos que ele está a rir", são as duas teorias, ouve-se este discurso sempre que há uma coisa que provoca risos. N´ O Amante, e eu descobri isso aqui na estreia, o problema é resolvido de uma forma absolutamente genial: a personagem repete a frase, ou seja, ela vai falar por cima da gargalhada, mas, se os espectadores não ouvirem, também não perdem nada e percebem sim que é apenas a repetição. A sua escrita é tão meticulosa.

Este carácter meticuloso do Pinter, às vezes, leva-o, em peças como Traições que, a meu ver, é uma peça nos limites do maneirismo, leva-o, dizia eu, a um malabarismo, um virtuosismo nos limites do oco. Traições é uma peça que vai andando para trás, vai fazendo um flashback, o que no teatro é muito difícil, porque em princípio nós queremos saber o que se passa depois e não antes. Aqui, as cenas vão recuando no tempo até à origem da traição da mulher que dormiu com o melhor amigo do marido. É de tal forma hábil, tem uma tão grande capacidade de escrita, que às vezes há um narcisismo técnico, que Pinter se desvia nesse seu namoro consigo próprio. É dificílimo traduzir Pinter. É um prazer quando se encontra a solução mais simples. E é curioso que os tradutores de Pinter sejam fiéis: Alessandra Serra em Itália, Eric Kahane em França e desde o início. Hoje vinhamos no comboio, o Pedro e eu, a discutir uma frase de Old Times em que o homem diz para a mulher: "your friend, a girl, a girlfriend". Não é difícil: friend é amiga - mas alto aí, já estamos a dizer que ela é uma ela, e o texto procede como um crescendo de informação: "your friend, a girl, your girlfriend". Como é que vamos fazer este crescendo, manter a insinuação final de que ela é amante, girlfriend - "Alguém, uma rapariga, a tua amiga"? Talvez. Veremos. Mas esta dificuldade em traduzir é também um desafio à concisão em português, onde a escrita é tantas vezes tão prolixa. Encontrar uma língua portuguesa para Pinter - como Artur Ramos e Salazar Sampaio a encontraram na felicíssima tradução de Feliz Aniversário?
PEC - Ocorre-me, desde logo, a extraordinária semelhança que, a esse nível, se verifica com a escrita de Samuel Beckett, precisamente o autor que assombrou o início da carreira do dramaturgo britânico. Recordo-vos que En attendant Godot estreara em Paris em 1952, Waiting for Godot em Londres em 1955, enquanto que a primeira peça de Pinter num palco londrino, The Birthday Party, data de 1958. Surge, assim, como natural que uma escrita que se apresenta nalguns aspectos tão ambígua, com personagens tão despidas de biografia, com situações por vezes aparentemente tão inexplicáveis - refiro-me a Pinter - tenha sido, no início da sua carreira, aproximada à de Beckett, autor que ele admirava verdadeiramente. Há mesmo relatos de um conhecimento muito inicial, por parte do actor (e aspirante a escritor) Pinter, da escrita de Beckett como ficcionista, ainda antes de o dramaturgo irlandês ter começado a escrever para teatro. Trata-se, portanto, de algum modo, de uma sombra legítima. As semelhanças na tradução do universo pinteriano e do universo beckettiano prendem-se com a brevidade do enunciado, com esse extremo e cristalino rigor comum aos dois territórios dramatúrgicos, características que, obviamente, na transferência para uma qualquer outra língua, levantam inúmeros e variados problemas. Isto conduz-me a uma outra questão que é a de interrogar os próprios mecanismos de composição do texto dramático pinteriano: como é que o dramaturgo chega a uma peça? Aquilo que o próprio Pinter sugere, na entrevista a propósito de Cinza Às Cinzas - por muito mitificado que possa ser este tipo de confessionalidade - é que parte para a composição de cada nova peça de uma forma extremamente intuitiva e compulsiva, embora reconheça que, depois de preenchida a página em branco - ele próprio fala desse fascínio pela página em branco - há um imenso trabalho de formalização, de reescrita original. O facto incontestável é que a leitura de qualquer texto de Pinter confronta o leitor - bem como o potencial actor e encenador - com uma aparência incontornável de exactidão e precisão formal. A reconstituição de tudo isto numa outra língua implica, por exemplo - não só a nível do pequeno enunciado, mas a nível da própria arquitectura da peça - um cuidado extremo com o jogo de ecos, isto é, as variadas utilizações e recuperações de uma determinada palavra ou expressão. Mesmo num texto tão barroco, tão exuberante na sua retórica e, imediatamente, tão pouco pinteriano como O Exame, este jogo de ecos e de recuperação de enunciados surge já como um determinante mecanismo estruturador, antecipando a construção de algumas das suas peças futuras.
Gostaria, contudo, de sugerir que as dificuldades envolvidas numa qualquer operação de reescrita de um destes textos para português são quase sempre dificuldades que beneficiam o texto. Dito de outro modo: essa dificuldade presente na reescrita de um texto para língua portuguesa traduz-se numa espécie de resistência produtiva, o tipo de resistência que obriga a um maior envolvimento com o texto. Um qualquer outro texto que surja ou que se imponha como menos rigoroso, como aparentemente mais arbitrário nas suas soluções, é um texto que não terá, talvez, as mesmas condições para se entranhar tanto. Esta resistência levará necessariamente, nalguns casos, ao abandono ou à modificação de alguns jogos previstos, embora se possam criar outros em substituição, por vezes com compensações muito interessantes e enriquecedoras para a língua e para a própria cultura teatral de chegada. Acrescentaria que a resistência de que venho falando encontra semelhanças a nível do próprio jogo da representação e da encenação. Toda esta ambiguidade, de que o Jorge falou a propósito de muitas das peças de Pinter, obriga os nossos actores - os actores da nossa tradição, a existir alguma, com o tipo de formação e de experiências teatrais que os constituem - obriga-os, dizia, a um exercício peculiar de entranhamento de um universo dramatúrgico que, noutros casos, não surge, ou surge de um outro modo, porque essa resistência não é tão evidente. Tive a oportunidade de acompanhar, ainda que irregularmente, a evolução dos ensaios do Cinza Às Cinzas - experiência que constituiu, no percurso da Assédio, uma singularidade, na medida em que, pela primeira vez, dois intérpretes chamaram a si a responsabilidade por configurarem aquilo que pode ser a direcção ou, talvez melhor, neste caso, a orquestração de um espectáculo - e posso testemunhar que muito do jogo passou por um conjunto de tacteantes gestos exploratórios. Não porque não se tenham clarificado antecipadamente um conjunto de pressupostos e de premissas dramatúrgicas, mas porque os intérpretes partiram para o texto sem uma qualquer interpretação definitiva, uma qualquer ideia chave, e, muito claramente, sem a intenção expressa de expor uma encenação. O que pretendo sugerir é que esta estratégia parece ter surgido em resultado de uma exigência muito concreta, daquilo a que o próprio texto parecia convidar. E os actores, no seu esforço simultâneo de dirigir e de interpretar, andaram muito tempo a navegar em termos de registo. Este é um daqueles universos dramatúrgicos onde parece saber-se sempre muito pouco do que acontece antes de se passar a acto, antes de uma efectiva corporização. Tornou-se nítido durante os ensaios - e isto não se deveu a nenhum tipo de preguiça anterior em termos de trabalho dramatúrgico - que só na passagem a acto, só no exercício de dar corpo e forma àquelas palavras, é que determinados jogos e determinadas situações começaram a ganhar um sentido e a ficção dramática criada por Pinter foi encontrando condições para um diálogo produtivo com os futuros espectadores.
JSM - Em Portugal a tradição da representação é ultra-romântica, um valor expressivo da ultra-explicação. Ora, aquilo que Pinter pede é o contrário. Mais inglês, sorumbático e impassível não há. Se não for representado com essa impassibilidade e essa fleuma britânica, aquilo não existe. Não sei se o Método se pode aplicar a estes diálogos "Yes?"/"Yes." Tão caros ao nosso Autor. Não acredito em Anna Magnani a fazer Pinter. É que não é o não-dito que está presente: é o incerto, o ignorado. Apenas o que se passa durante - e essa acção não é ponta de iceberg psicológico, apenas o rolar de bolas numa mesa de bilhar sem que tenha havido ou sido vista a tacada de motivação.
Pedro Marques - É muito interessante voltar a O Exame porque, de certa forma, o texto renasce 29 anos depois no Um Para o Caminho. A situação do examinado que se defende com o silêncio e do examinador cheio de palavras, essa luta. É como se o silêncio também fosse uma arma. No Um Para O Caminho assistimos a várias cenas de um torturador com o seu torturado, onde o torturado não diz quase nada, e onde a questão que se levanta é: como é que nós conseguimos fazer com que aquela pessoa que é examinada, que não disse nada durante a peça toda, consiga sair vencedora? Pinter chama Victor à vítima... Como é que é possível? A resposta está talvez neste O Exame que termina com o narrador a dizer que o quarto já passou a ser de Kullus.

E o quarto leva-me à página em branco que o Paulo Eduardo referiu. O quarto pinteriano atravessa toda a sua obra. A primeira peça chama-se The Room. Estabelece-se logo aí esta relação entre o quarto/pessoa-que-domina-um-espaço e a pessoa que vem de fora para ser examinada ou para abalar a ordem estabelecida anteriormente. É interessante ver a evolução dos quartos no teatro de Pinter. Começa por ser o tal quarto em The Room (uma obra que ecoa estranhamente como o Ruínas). Tal como na peça de Sarah Kane, em The Room a acção é interrompida por um súbito acto de violência, espancamento do cego que vem revelar dolorosas memórias de infância.

Em Feliz Aniversário já se consegue identificar uma casa que será depois invadida por duas personagens (podiam ter saído da peça seguinte) que, entrando nas memórias mais íntimas dos moradores, são convidadas para uma festa de aniversário e acabam por levar um dos moradores. Só podemos perceber a perplexidade do examinado Stanley pelo seu balbuciar, pelas perguntas dos examinadores e pela advertência final de Pete (outro morador) quando vê Stanley ser levado pelos homens e grita na soleira da porta para fora de casa "Não deixes que eles te digam o que tens de fazer!"

N'O Serviço, estamos numa subcave com um elevador que envia ordens arbitrárias, em princípio ordens para a morte de uma pessoa, mas, em vez disso, pedidos de pratos de comida, uma espectacular metáfora sobre a arbitrariedade das nossas vidas. Em seguida, o quarto torna-se numa Hothouse, literalmente "estufa", explicitamente uma câmara de tortura, Câmara Ardente, mais um cenário que dá conta de uma sociedade inquisitória. Logo a seguir, The Caretaker (O Encarregado), onde estamos no quarto de um porteiro/encarregado-de-um-prédio, posição naturalmente subalterna mas que mesmo assim joga os seus jogos de poder, dominar ou ser dominado. Onde o dominado, desta vez, nem sequer sabe a sua identidade. Pelo meio, Pinter escreve um guião de cinema, The Servant, que, sendo embora adaptação de um romance de Robin Maugham, podemos ver como uma extensão de The Caretaker: um mordomo ganha progressivamente território, desfazendo as relações anteriormente estabelecidas. Depois, Pinter começa a analisar o casal: aquilo que faz as pessoas ficarem juntas, partilharem o mesmo 'quarto'. Em O Amante, Pinter mostra engenhosamente as mecânicas do sexo e do amor através de uma peça que nos revela claramente dois quartos, que obrigam a dois comportamentos. Uma indicação da vida esquizofrénica que um casal suporta. O comportamento do marido responsável, trabalhador, pontual, Richard, que se desdobra em Max, o amante, conquistador, terno, que nunca se encontrará com Sarah no quarto, nem nunca virá senão à hora do chá.

Em The Homecoming, Pinter sugere-nos uma casa onde se sente as gerações que lá passaram: há duas personagens mais velhas, carregadas de memórias, se calhar não muito exactas, mas que vão sedimentando no espectador uma compreensão dos conflitos gerados. A ordem desta casa é alterada quando o filho de um deles vem inesperadamente com a mulher passar uns dias a casa do pai. Depois, Pinter escreve mais uma peça (originalmente para televisão) chamada The Basement (A Cave) e termina aquilo a que eu gosto de chamar o ciclo dos quartos.
A seguir, foge deliberadamente dos quartos e escreve duas peças com títulos que à partida podem revelar uma nova preocupação: Landscape e Silence. Segue-se Há Tanto Tempo (Old Times), onde o quarto é o mesmo, onde as memórias partilhadas sugerem confusões e equívocos, mas onde acontece uma coisa curiosa: o quarto é sempre o mesmo, mas a disposição da mobília é invertida de um acto para o outro, sugerindo uma inversão na ordem dos valores, nas hierarquias. Pinter irá retomar a temática dos quartos em Traições, mas aqui a ordem está desfeita, a peça anda para trás e o quarto é um apartamento de amantes, sem futuro nem passado, que surge assim como um desencantado quarto em ruínas de uma relação desfeita, também ela sem passado nem futuro.
Até que chega a Um Para o Caminho, em que o quarto onde Nicolas interroga as suas vítimas está num prédio onde se produzem mais atrocidades, mais interrogatórios, violações, e que é o quarto de um pai (e de quem fala em nome do pai de uma das vítimas, Gila). Se calhar uma sala parecida com a sala onde esta conhecera o seu marido Victor. A sala da autoridade. É engraçado perceber como ele parte de um quarto/página-em-branco. Porque, no teatro, aquilo corresponde à página em branco, serão as três paredes, a mesa e umas cadeiras - para pôr pessoas em conflito. Torturadores e torturados.
JSM - Se Pinter quase nunca foge desse esquema, e se Beckett quase nunca lá vai, o certo é que Pinter escreve Silence e Beckett para o fim da vida escreve o Eh Joe, onde podemos ouvir um eco do Serviço. Como podíamos pensar num espectáculo destes autores que muitos querem que ignorem a política, com, na primeira parte Um Para o Caminho e na segunda Catástrofe de Beckett. Mas, tal como há vários Becketts (e ele próprio insistia no circo), há um outro Pinter, popular, que foi ao longo dos tempos mantendo uma escrita paralela com esta das peças-verdadeiramente peças de personagens. Sobretudo no início mas não só, Pinter foi escrevendo breves sketches de revista, e cada vez mais esses textos parecem mais pertinentes dentro da sua obra. São pequenos, brevíssimos textos, alguns dos quais foram recentemente feitos em duas montagens pelo Cão Solteiro (mas também houve outros creio eu que feitos pelo TEP há pouco tempo, e o Rogério de Carvalho também fez uns em Almada). E em Janeiro deste ano ele escreveu um novo sketch, retomando a via extremamente mordaz, satírica, a traço grosso, incisiva, grosseira. Foi escrito em Janeiro e estreado a 8 de Fevereiro em Londres. Nós lemo-lo, a Joana Bárcia e eu, na Capital no mesmo dia. Chama-se Conferência de Imprensa e a tradução é do Pedro Marques.
http://www.artistasunidos.pt/publicacoes/707-a-conversa-sobre-os-problemas-que-nos-poe-o-teatro-de-harold-pinter

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