sábado, 29 de dezembro de 2012

Gomes Leal - A Canalha (excerto)



 * Gomes Leal  (1848.1921)

Eu vejo-a vir ao longe perseguida,
Como dum vento lívido varrida,
Cheia de febre, rota, muito além ...
- Pelos caminhos ásperos da História - 
Enquanto os Reis e os Deuses entre a glória
Não ouvem a ninguém.

Ela vem triste, só, silenciosa
Tinta de sangue, pálida, orgulhosa
Em farrapos, na fria escuridão ...
Buscando o grande dia da batalha.
- É ela, é ela, a lívida Canalha !
Caim é vosso irmão !

Eles lá vêm famintos e sombrios
Rotos, selvagens, abanando aos frios,
Sem leito e pão, descalços, semi-nús ...
Nada, jamais, sua carreira abranda.
- Fizeram Roma, a Inglaterra e a Holanda,
E andaram com Jesus.

São os tristes, os vis, os oprimidos.
- Em Roma são marcados e batidos,
Passam cheios de vastas aflições.
Nem das mesas llhes deitam as migalhas.
Morrem sem nome, às vezes, nas batalhas,
E andaram nas sedições.

Vêm varridos do lívido destino.
Em Roma, a velha Grécia, erram. sem tino,
Nos tumultos, enterros, bacanais ...
Nas praças e nos pórticos profundos,
E disputam. famintos e imundos,
O lixo aos animais.

São os párias, os servos, os ilotas.
Vivem nas covas húmidas, ignotas,
Sem luz e ar; arrancam-lhes as mães.
- Passam curvados, nas mãos geladas.
E, depois de já mortos, nas calçadas,
Devoram-nos os cães.


(...)

Vão há muito, na sombra foragidos,
Pelas neves, curvados e transidos,
Enquanto Deus se aquece nos seus Céus.
Vem do Sul uma lúgubre toada,
E escuta-se Rousseau, na água-furtada,
- Gritar - Que me quer Deus ?

Erguem-se ébrios de mortes, de vinganças
Assoma lá ao longe um mar de lanças,
Ressoam sobre os troncos os machados.
E a Europa vê passar, cheia de assombros,
Ferozes, em triunfos, aos seus ombros,
- Seus reis esguedelhados.

À voz das legiões rotas, sombrias,
Desabam pelo mundo as monarquias.
Tremem os graves bispos. - E depois ...
Que mais farão ? perguntam desolados.
- Vão ser, inda depois, crucificados
Os deuses e os heróis.

... ... ... ... ... ... ... ... 
... ... ... ... ... ... ... ... 

Vai prolongada a dissonante orgia.
No silêncio da noite intensa e fria,
Vem uns ecos perdidos de batalha,
Como uns ventos do norte impetuosos.
- São os passos, nas trevas, vagarosos,
Os passos da canalha

Eles vêm de mui longe, mui distantes
Como sonoros batalhões gigantes,
Como ondas negras dum sinistro mar,
Numa viagem trágica e sem glória.
- Há muito, pela noite da História,
Que os oiço caminhar.

Quem sabe se virão ? ... É longa a estrada
Desta comprida e áspera jornada.
Quem sabe quando, enfim, descansarão ?
As pedras atapetem-lhes com flores.
Lá vêm queimados, rotos, vencedores,
Altivos e sem pão ! ...

Não raiou ainda o dia da justiça.
Mas, breve, talvez se oiça a nova missa,
E a Liberdade enfim junte os seus filhos.
Vão talvez vir os tempos desejados!
- E, então, por vossa vez, ó reis sagrados,
Saúde aos maltrapilhos !


Leal, Gomes - Antologia Poética, Guimarães Editores, Lisboa, 1999
Foto Victor Nogueira
1789 - a queda da bastilha

1871 - Comuna de Paris
1917 - assalto ao palácio de inverno

volpedo - o quarto estado

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