segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O rapaz e o pombo, de Cristina Norton

Viram por aí o Hitler?

Eu sei, querida tia, que estou a fazer publicidade indireta a uma editora que não é a nossa preferida. Mas trata-se de obra meritória, para mais de amiga meritória, para mais tia de dois dos nossos meritórios bloguistas. E assim sendo, e porque isto é a sério, depois da capa do livro mudo o registo e quase choro. Ora vejam
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Aos poucos nada nos resta. Nem a memória. Mas talvez reste sempre, no fundo de nós, na alma (que é o que nos anima) as sensações, os sentimentos, a comoção.
Eu chorei a ler este livro.
Quem é o rapaz? E quem é o pombo? E a irmã do rapaz? E toda a gente que os rodeia? Não são ninguém que possamos recordar. Apagam-se da memória, como se aguaram as lembranças da avó do rapaz, de tal modo confunde filha e neta e nem o marido reconhece.
Que pessoas são estas que fugiram? De que fugiram?
Ah! É tão fácil afirmar que fugiram de um louco, de um regime louco, de um país louco que encerrou milhares de pessoas em campos de concentração, onde além da escravatura do trabalho se faziam experiências médicas com crianças como se fossem ratinhos de laboratório. Como fizeram com a irmã do rapaz do pombo, a que mais tarde se juntou aos avós, na Holanda e refez a vida sem que a sua antepassada, a única que lhe restava, soubesse ao certo quem era ela.
É fácil dizer que era disso que fugiam. Mas não é só disso que se foge.
Hoje também se foge de barbáries iguais ou semelhantes, na Síria, nas terras do Daesh; hoje matam-se yazidis (curdos que praticam uma religião fundada no zoroastrismo da Mesopotâmia) como se matam cristãos sírios, como na época em que se passa ação do livro se matavam judeus e ciganos, além de toda a espécie de opositores ao regime nazi.
Talvez não com a burocracia e o método que a Cristina descreve quando se refere ao campo de Westerbork, na Holanda, mas com a mesma maldade, a mesma ausência de humanismo.
É disso que fugiam eles e fugimos nós. De sermos apenas eine stück, o raio de uma peça, “algo sem valor, nem humano, nem material, um objeto sem alma”.
Fugimos desse mundo sem amor, sem fraternidade, sem humanidade, sem caridade, que tal como o respeito, a partilha e a solidariedade vêm do amor, como também escreve a Cristina.
Confesso que não sei ao certo, mas presumo que ela conhece os locais que descreve. A Alemanha, a Holanda, com a cidade de Amsterdão e o lado improdutivo e cinzento onde ficou o campo Westerbork. O terrível campo de Auschwitz. Lisboa, como é óbvio e a Argentina, que também é óbvio. Mas todo o romance refere estas paragens não se detendo demasiado nelas. É na paisagem humana, a maioria das vezes sem glória nem beleza, que toda a ação se passa.
Nos medos
Nas esperanças
Nas angústias
Nas inocências
Nos fingimentos
Nas maldades
Nos crimes
Na heroicidade
Na resistência
Na desistência
Depois da tareia emocional que qualquer leitor levará ao ler esta obra, há um final, muito pessoal da autora para nos deixar knocked out. KO! É quando revela que os avós paternos e diversos tios e tias, primos e primas viveram num gueto em Lódz, na Polónia, e morreram em Auschwitz – pouco antes do final da guerra. Há um ajuste da Cristina com a História. E é justo que haja. Todos nós somos o produto de vivências anteriores, das histórias que nos contaram na meninice, dos mitos que incorporámos, dos caminhos que percorremos e vimos percorrer.
E foi assim que a autora, ainda menina, ouviu uma história real que a horrorizou. É a chave do livro. Uma história de uma mulher que esteve e sobreviveu a Auschwitz e mais tarde se encontrava com a mãe de Cristina (que ainda tive o prazer de conhecer) em Buenos Aires. É uma história dura, horrenda… Ainda agora imagino o horror que foi para ela, aos 10 anos, como mesmo passados 70 anos é uma inominável surpresa para quem a lê. Não como passada com uma protagonista imaginada, mas com uma mulher que a Cristina nos diz: eu conheci-a, foi ela quem me contou. A brutal violência – talvez uma violência necessária, pois de outro modo estaria esquecida – para quem a ouve não passa com o tempo.
A personagem que no romance se chama Rute (e depois muda de nome por razões que a narrativa explica) é alguém que fascina o rapaz do pombo, apesar de bastante mais velha. É alguém que consegue fugir a Auschwitz por estar apaixonada. É alguém que aceita um casamento de conveniência para fugir aos nazis. Mas o destino e a necessidade de ser útil colocam-na na boca do lobo e apesar de poder estar a salvo, não se salvou.
Ter-se-ia de poder falar com os sobreviventes que conseguiram contar as experiências, como Primo Levi em ‘Se Isto é um Homem’, se mais sorte teve quem morreu ou quem sobreviveu. Quanta carga aguentamos na vida? Quantas memórias? Que tipo de memórias? Porquê eles e não nós? Sobretudo se agora, decorridos mais de 70 sobre o fim da guerra, nós que não a vivemos, ainda lhe sentimos o sabor amargo, o cheiro fétido, a repulsa.
Pior! Reconhecemos personagens de então em personagens de hoje.
Pior ainda! Verificamos que muitos daqueles que por nós passam, que connosco falam ocasionalmente estariam dispostos a aplaudir em Nuremberga ou na Piazza Vittorio Emanuel novos Hitler e Mussolini. Compreendemos que é esta a condição humana perene e insistente. E que a atualidade deste livro está na atualidade que vivemos – há mais de 70 anos e que vivemos hoje.
Há uma espécie de intermezzo na obra que é a história de umas férias de Lilo Pupppel (outra personagem de vida real e nome fictício) e sua mãe. Lilo era amiga da irmã do rapaz do pombo e tomara-lhe conta do cão numa das alturas em que a família do protagonista tenta sem sucesso fugir da Alemanha. (E será o rapaz protagonista? Ele, afinal, representa todos os que sofreram e os que ainda sofrem).
De qualquer modo Lilo e a mãe vão até a uma pequena ilha de Itália. Talvez já nenhuma rapariga se contente em ter um burro como prenda; talvez já não haja meninas casadoiras, como a irmã de Lilo, capazes de todos os dias se arranjarem na esperança de ver chegar o namorado ao cais da estação de comboios, regressado da frente de onde nunca chegou, onde combatera pelo exército de Hitler, convencido que lutava pelo país. Mas os sentimentos, sejam os de alegria, sejam os daquele horror na Áustria ocupada que leva instintivamente a mãe a tapar os olhos à filha, seja o ódio entre famílias ou dentro das famílias que exiladas na Argentina eram por ou contra Hitler – tudo isso existe em novas modalidades e novas formas de ser.
Achamos, arrogantemente, que o passado não volta. Mas o passado, como escreveu William Faulkner, nunca está morto. Na verdade, nem sequer é passado – acrescentou o escritor. Também este passado está entre nós, aqui recordado pela Cristina Norton num livro sensível, verdadeiro, duro e corajoso na forma como não separa artificialmente bons e maus. Como se verifica que alguns dos nossos podem ser piores do que os deles.
Num livro que me surpreendeu – e eu conheço-a há muitos anos e este é o segundo livro (dos 10 que escreveu) que tive o prazer de apresentar – porque nunca me imaginei tão próximo dela nos sentimentos que estas memórias me despertam; nos sobressaltos que ainda me provocam.
Diz-se que Deus escreve direito por linhas tortas. Se assim é, ainda bem que o faz. Eu queria apresentar este livro, porque eu sempre quis que a Cristina escrevesse este livro. E este é o tempo, basta olhar à volta para vermos que este é o tempo em que ainda havemos de olhar como o tempo feliz.
Perdoem-me o pessimismo mas não consigo dizer que este é um livro sobre o passado. Ele é, como todos os livros que interessam, intemporal. É sobre como cada um reage às adversidades e ao destino. E, no fim, o que importa é o caminho e a amabilidade que se teve no trajeto.
No fim é o amor que nos salva.
Muito obrigado, querida Cristina por teres escrito estas páginas.
http://www.escreveretriste.com/2016/10/viram-por-ai-o-hitler/

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