sexta-feira, 7 de outubro de 2016

E agora José, de que lado você samba?

 30 de setembro de 2016 - 17h27 






"Alencar não é misógino, as mulheres alencarianas são mais interessantes que a Capitu" - Cena da série Capitu


Estamos no século 21... em Literatura, como lidar com isto: “Tia Nastácia era uma negra de estimação”, comentário de Monteiro Lobato; “Abolir a escravidão não é bom nem para o Brasil nem para os escravos, pois os escravos brasileiros vivem melhor que os operários da Inglaterra”, personagens de José de Alencar se justificam com argumentos assim; mulheres banais ou letais, como são as mulheres de Machado de Assis; homossexuais perversos, como aparecem em Aluísio de Azevedo e Adolfo Caminha; ... como resolver essas polêmicas sem condenar a Literatura? Não se trata mais de ser politicamente correto ou não – racismo, misoginia e machismo, homofobia, antissemitismo... os nazismos nunca se justificam – trata-se, antes de tudo, de definir o que é Literatura.




Há muitas concepções do termo “Literatura”; em um deles, Literatura é resistência às massificações do capitalismo e às opressões fascistas. Essa identificação entre literatura e ideologia política é bem antiga: sua formulação filosófica mais citada, o famoso ensaio “Lírica e sociedade”, de Teodoro Adorno, é de 1957; para nós, os brasileiros, Carlos Marighella (1911-1969), enquanto político e poeta, talvez tenha sido sua melhor epifania. Nessa concepção política de literatura – mais ética do que estética –, há ênfase nos conteúdos literários – os significados da obra –, uma vez que, desse ponto de vista, apenas esse aspecto das obras torna-se pertinente para a militância.


Isso faz do escritor arma de luta ideológica; espera-se dele que, para lutar, ele seja “bom” – “bom” enquanto pessoa, mas não “bom” necessariamente enquanto escritor –. Parece ingenuidade, mas essa ideologia literária é mais resistente do que parece. Ninguém perde tempo com poetas como Baldur von Schirach, um dos líderes da juventude hitlerista, todavia, não é raro encontrar explicações para o fascismo de Ezra Pound. Schirach é poeta medíocre, ninguém perde tempo com ele. Pound, porém, é um dos grandes nomes da poesia do século passado; parece que poucos se conformam com a ideia de que um grande poeta pode ser, eventualmente, um fascista. Nessa concepção de literatura, “Parque industrial”, de Patrícia Galvão, deveria ser o melhor romance feito no Brasil; o melhor poema brasileiro deveria ser “O operário em construção”, de Vinícius de Moraes.

Desse ponto de vista, parece difícil aceitar que um dos grandes escritores da nossa literatura infantil – quem inventou o Sítio do Pica-Pau Amarelo – tenha sido racista. Acusar José de Alencar de racismo também procede – na época de Alencar já havia a poesia negra de Luiz Gama, nunca houve desculpas para escravocratas –; além disso, para muitos, deve ser prazeroso vingar-se das leituras obrigatórias de “O Guarani” e “Senhora”, feitas na adolescência. Entretanto, Alencar não é misógino, as mulheres alencarianas são mais interessantes que a Capitu; Guimarães Rosa é bem mais racista do que José de Alencar, basta conferir contos como “Lélio e Lina”, “Lão-dalalão (dão-lalalão)”, “São Marcos” – neles há posturas mais ofensivas que os comentários escravocratas de “O tronco do ipê” –. Em meio aos patrulhamentos, muitas autoras brasileiras laureadas por feministas foram donas de casa; muitos poetas brasileiros, tão sensíveis, são machistas – “que me perdoem as feias, mas beleza é fundamental” –; ... a lista dessas “impropriedades” pode não terminar nunca...

Em busca de soluções, a menção a Pound vem a calhar novamente. Octavio Paz, Augusto e Haroldo de Campos, José Lino Grünewald e todos os que se interessam por Pound, interessam-se por sua poesia, não por seu fascismo; Augusto de Campos, quando fala de Dante Alighieri, fala do autor da “Vida Nova” e da “Divina Comédia”, não do monarquista; se Nero tivesse sido bom poeta, certamente seria matéria nos cursos de Estudos Clássicos. Ao que tudo indica, na Literatura, os fazeres literários vêm antes dos fazeres políticos.

Todavia, cabe indagar: separar poetas e prosadores de suas ideologias faria do estudo da Literatura uma disciplina alienada e alienante das condições sociais da produção dessa mesma Literatura? Em palavras mais diretas, esse ponto de vista faria, da Literatura, uma matéria burguesa? Estudar o fazer literário apenas enquanto forma literária seria uma concepção crítica de direita?

Se as formas literárias forem identificadas aos embelezamentos da palavra – o beletrismo –, acompanhados de esvaziamento do conteúdo, certamente que se trata de estudo bastante estéril. Todavia, as formas literárias podem ser utilizadas para desenvolver a inteligência e a criatividade; os estudos literários podem, sem se afastarem da História da Literatura, ser aproximados da Educação Artística. Em outras palavras, trata-se de ensinar, nas escolas, a fazer poesia e outras formas literárias em prosa, além de dissertações.

O soneto, por exemplo, pode ser definido formalmente, em linhas gerais, como poema de quatorze versos de dez sílabas, com acentuações tônicas e rimas predeterminadas, dispostos em dois quartetos e dois tercetos. Em meio a tantas coerções, o soneto pode parecer difícil de ser feito, entretanto, ninguém faz sonetos contando sílabas. Cada verso metrificado tem uma prosódia própria – uma certa “música” particular – por meio da qual o poeta se põe a compor. Os músicos conhecem esses procedimentos muito bem; percussionistas costumam memorizar divisões complicadas por meio de solfejos rítmicos – as talas indianas são aprendidas assim –. Basta memorizar essas fórmulas prosódicas para começar a compor sonetos, madrigais, versos livres, etc.

Além do mais, o soneto tem suas histórias temáticas, dos sonetos renascentistas e barrocos aos sonetos experimentais da pós-modernidade. Na história temática do soneto, há muitos poetas célebres, entre eles: há os sonetos racistas de Gregório de Matos e os sonetos contra racistas de Luiz Gama; há os sonetos machistas de Vinícius de Moraes e os sonetos gays de Glauco Mattoso.

Por tudo isso, aprender a fazer sonetos – ou outras formas literárias –, implica em aprender a metrificar, mas também implica em desenvolver visões críticas a propósito dos temas abordados pela Literatura. Desse modo, longe de transformar os estudos literários em matéria reacionária, o ensino das formas literárias como educação artística pode compensar, sem se desviar das questões temáticas, a ênfase dada na ética dos autores, que tanto os compromete como seres humanos. 


Fonte: Carta Maior

http://www.vermelho.org.br/noticia/287543-1

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