terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Hamurábi Bezerra Batista - A história de José Martí contada em cordel


28 de janeiro de 2018 - 18h24 

  


 

A história de José Martí e da revolução cubana
 Autor: Hamurábi Batista

Ele veio à luz em Cuba
A 28 do mês
No final desse janeiro
Do ano 53
Do século dezenove
José Matí, havanês.
 Mariano era o seu pai
 De Valência natural
 Leonor Perez Cabrera
 A sua mãe afinal
 Foi jornalista e filósofo
 Poeta, e intelectual.
Desde a sua mocidade
Suas ideias eram várias
E demonstrou simpatias
Das mais revolucionárias
Que havia entre os cubanos
Germinando aquelas áreas.
 Quando tinha quinze anos
 Uma rebelião surgiu
 Em busca da independência
 O grito bravo e hostil
 Que libertou aos escravos
 Desafiando o poderio.
Foi Carlos Manuel de Céspedes
Quem essa façanha fez
A luta de várias décadas
Começou naquela vez
Daquelas grandes pelejas
Nós destacaremos três.
 Teve a Guerra dos Dez Anos
 Ou Grande Guerra chamada
 Também a Guerra Chiquita
 Durante um ano travada
 E a Guerra Hispano-Cubana
 Ou Guerra Chica falada.
Numa escola secundária
Que cursou na adolescência
Do mestre Rafael Mendive
Nutriu a grande influência
Contra o domínio espanhol
A total independência.
 Iniciou na política
 O seu ativismo honrado
 Nuns jornais separatistas
Diretamente empenhado
Mas seu professor Mendive
Foi preso e após deportado.
 Com a prisão de seu mestre
 Cristalizou sua luta
 Numa atitude rebelde
 Muito forte e resoluta
 Versus a Espanha invasora
 Acrescentando à disputa.
No ano 69
Aos seus dezesseis de idade
Publicou folhas impressas
E fez a publicidade
De ideias separatistas
E o rumo da liberdade.
 Distribuiu um periódico
 Numa intenção temporária
 Por esse motivo preso
 Em uma ação arbitrária
 Por divulgar conteúdo
 De ordem revolucionária.
Pelo invasor espanhol
Foi ele então condenado
A seis anos de prisão
Sob trabalho forçado
 Que acabou resultando
 Bastante debilitado.
Sendo assim que conseguiu
A um indulto obter
No ano 71
Para dalí ocorrer
Deportação para Espanha
Onde passou a escrever.
 Seu estilo idealista
 Mui presente e vigoroso
 O tornara conhecido
 E bastante estudioso
 E dedicou se ao Direito
 Com um zelo prestimoso.
Da República Espanhola
Viu sua proclamação
Quando escreveu sua crítica
À grande contradição
“Revolução na Espanha
E lá em Cuba a opressão.”
 No ano 74
 O doutorado ele fez
 Em Letras, Filosofia
 Como também fez em Leis
 Naquela universidade
 Que em Zaragoza perfez.
No ano 75
Para o México partiu
Se aproximando de Cuba
O objetivo incluiu
Com a população indígena
José Martí interagiu.
 Sendo assim intensificou
 O que batalhava em prol
 A luta contra o racismo
 E o clamor de sol a sol
 A exploração da igreja
 E o domínio espanhol.
Quando a Guerra dos Dez anos
Finalmente terminou
Seguindo destino a Cuba
Jose Martí regressou
E com Calixto Garcia
Ao Comitê que fundou.
 Um ano de seu regresso
 De novo foi deportar
 Quando da Guerra Chiquita
 Não pode participar
 Mas pros Estados Unidos
 Foi da Espanha pra lá.
Em Nova York entretanto
Ao Comitê organiza
O seu primeiro discurso
Nos States realiza
Forças revolucionárias
Num chamado prioriza.
 “Com lágrimas não se conquista
 Para os direitos o endosso
 Para o futuro sombrio
 Se abandonarmos o esforço
 Da nossa terra assolada
 E sufocada no fosso.”
Viajou pra Venezuela
No ano de 81
Achou com Simon Bolívar
A identidade em comum
“Os latinos das Américas
O povo todo é só um.”
 Far-se-ia a pátria livre
 E próspera a sua classe
 Se dos Estados Unidos
 A gente se afastasse
 E cultivasse o cultura
 Que ela mesma criasse.
Fundou o PRC
No ano 92
Escreveu um documento
Pra insurreição que propôs
Chamado de Montecristi
O Manifesto que expôs.
 E regressou para Cuba
 Do Haiti proveniente
 Quando seiscentos soldados
 De forma surpreendente
 Emboscaram-no num ataque
 Deveras muito potente.
Em 19 de maio
Foi baleado e abatido
Sendo depois destacado
Por mentor reconhecido
Da Revolução Cubana
Diretamente influído.
 José Martí das Américas
 Ele é de todos países
 Do continente é a voz
 Das lutas as mais felizes
 Pra derrotar o império
 As principais diretrizes.
Do imperialismo nascente
A denúncia efetivar
Das terríveis consequências
Que poderá provocar
Caso os revolucionários
Não consigam se ajuntar.
 “Pois o revolucionário
 Não busca por seu prazer
 Porém o lado que possa
 Habituar-se ao dever
 Pois os seu sonho de hoje
 É Lei que amanhã vai ser.”
“Ardentes e ensanguentados
Dos séculos, no caldeirão
Notou a ferver os povos
Ao dirigir sua visão:
No futuro a diferença
É resultante da ação.”
 FIM

http://www.vermelho.org.br/noticia/307060-1
De Vitória (ES),  Cláudio Machado para o Portal Vermelho


http://www.vermelho.org.br/noticia/307060-1

Gabriel Mithá Ribeiro - Como Saramago forçou Pessoa a converter-se ao comunismo 49 anos depois de morto

Especiais
LITERATURA

Gabriel Mithá Ribeiro
25/1/2018, 10:32296

O efeito literário tentado por José Saramago resulta num jogo de espelhos em que a ficção serve de escudo a ambições ideológicas panfletárias cujo valor intelectual e cultural é quase nulo.

Talvez por não ter resistido à beleza da capa amarela com o título manuscrito da nova edição da Porto Editora ou por outro qualquer desígnio decidi ler «O Ano da Morte de Ricardo Reis». A escrita de José Saramago embala desde a primeira página pela criatividade e qualidade da forma. Porém, quanto mais se avança na leitura mais se esboroa o valor intelectual do conteúdo. Isso pela impossibilidade de desfiliar a narrativa de certos traços políticos demasiado óbvios do contexto em que foi originalmente publicada: 1984. Tal facto cruza o livro de José Saramago com a premonição de George Orwell revertida no título do seu livro. «Mil Novecentos e Oitenta e Quatro» tipifica a manipulação da linguagem no duplo sentido em que o manifesto verbal tem uma relação inversa com o resultado prático da ação.

«O Ano da Morte de Ricardo Reis» joga numa variante dessa duplicidade: anuncia-se como ficção com contextualização histórica, porém faz um inverso. Retrata a Península Ibérica nos anos de 1935-1936. Entre inúmeras possibilidades de escolha, a máquina cultural ultra seletiva do estado difunde ativamente «O Ano da Morte de Ricardo Reis» pelo suposto valor intelectual e cultural, isto é, não estamos perante um objeto menor na construção da memória coletiva dos portugueses.

Ressalvo, todavia, não estar em causa a falsificação de factos históricos. Mas é justamente porque José Saramago os trata com rigor que não é tolerável que sejam conjugados com propósitos de adulterar o sentido do tempo histórico. Para isso, importa insistir na data da publicação original d’«O Ano da Morte de Ricardo Reis»: 1984.

Vivia-se no contexto da guerra fria (1945-1991) e, à época, era impensável a implosão da URSS, ainda que a pátria-mãe do comunismo se afundasse numa crise, mas que se assemelhava a uma pausa para regeneração após o auge da superpotência soviética na década de setenta. O paralelo com a superpotência rival justificava-se. Os EUA tinham atravessado uma crise profunda na década anterior condicionada pelo primeiro choque petrolífero (1973), pela derrota na guerra do Vietname (1973) e pelo escândalo do Watergate (1972-1974). Todavia, na década de oitenta, os EUA estavam de regresso ao papel de liderança no sistema internacional profundamente regenerados.

Portanto, o livro é produto de um contexto em que permanecia intacta a crença numa URSS que poderia reinventar-se, apesar de atolada na guerra do Afeganistão (o Vietname soviético) e da enorme discrepância entre o seu poderio militar e político e as profundas debilidades de uma economia estagnada pelo comunismo. A crença no ideal é transportada com tal intensidade para o livro a ponto da construção ‘ficcional’ ficar dominada por propósitos idênticos aos do filme «A Revolução de Maio» (1937), obra propagandista do regime de Salazar, realizada por António Lopes Ribeiro, ridicularizada n’«O Ano da Morte de Ricardo Reis» (1984). Contudo, o efeito literário tentado por José Saramago resulta num jogo de espelhos. Num e noutro caso, a ficção serve de escudo a ambições ideológicas panfletárias cujo valor intelectual e cultural é quase nulo, por muito que os formatos se escondam em muitas imagens, palavras ou enredos.

O que move uma e outra ficção é a conversão dos descrentes, por via de uma relação amorosa improvável entre os protagonistas, a um amor profundo a uma causa maior inicialmente rejeitada pelo lado masculino. Este enredo simplório tanto visa a conversão dos descrentes às virtudes da governação de Salazar (‘fascismo’), como às escolhas políticas não menos virtuosas de Saramago (comunismo). O que distingue o último é ter necessitado de mais de quatro décadas, de muita investigação de arquivo (sobretudo da imprensa), de um interminável arrazoado de 494 páginas e de uma grande ausência de pudor na artimanha da evangelização póstuma de uma das maiores (senão mesmo a maior) figura intelectual portuguesa do século XX, Fernando Pessoa, para pagar na mesma moeda à «A Revolução de Maio».

Para os que continuam e continuarem vivos, substantiva é a diferença entre a saúde mental de não ambicionarem salvar do ridículo a propaganda política de um filme de 1937 comparativamente à indigência mental de fazer ascender a propaganda política em livro de 1984 à categoria de obra-prima, peça essencial que justificou a atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 1998, portanto, após o colapso da URSS em 1991. A decisão da academia sueca conferiu a um extenso panfleto político rudimentar a dignidade de ser ensinado em universidades e escolas, por várias gerações, como suprassumo da lucidez intelectual. «Mas julgaes que n’isto se resume a litteratura portugueza? Não! Mil vezes não!» – escreveu José de Almada Negreiros em 1916-1917.

Em 1984, com a pátria-mãe do comunismo intacta, tal como as certezas num rumo da história que faria eclipsar o ideário ocidental capitalista decadente, José Saramago permite-se ironizar, recorrendo a estereótipos, sobre os comunistas com intuito de tornar óbvio o injustificado ridículo das críticas ao comunismo na época de Salazar. A questão é que o tempo está a transformar as ironias de 1984 num tiro que sai pela culatra. Entre os anos da escrita e a atualidade, por um lado, o comunismo sofreu um cataclismo e, para desgraça do autor, quem ler o livro no contexto do século XXI terá razões de sobra para fazer interpretações literais sobre o ridículo do comunismo que José Saramago esconde a coberto dos ridículos dos regimes conservadores da época. Por outro lado, hoje a relação dos europeus ocidentais consigo mesmos não é a mesma dos anos oitenta. Daí resulta uma erosão significativa da construção intelectual de José Saramago, sintoma infalível de má literatura.

«O Ano da Morte de Ricardo Reis» confere sentido irónico, com sabor a ridículo, ao facto de ter existido, na Europa dos anos trinta do século XX, um punhado de movimentos políticos preocupados em defender uma (subentende-se) indefensável civilização ocidental. Como a atualidade pós-guerra fria foi recolocando o assunto na ordem do dia, a suposta obra-prima de José Saramago fica sem pé. Pelo menos para uma parte dos portugueses e europeus é hoje mais do que legítimo rejeitar que o estado, por via do sistema de ensino, lhes impinja, e à respetiva descendência, uma obra que destrata a sua inteligência e convicções. Só um estado autoritário ou totalitário insiste em impor-se com obras como a de José Saramago à pluralidade da vida social, algo com que não se incomodam as atuais elites intelectuais e culturais.

Não sendo viável apontar outros aspetos de um livro extenso, sublinho que a aproximação ao epílogo (entre as páginas 449 e 494) desfaz as dúvidas. O ponto de referência da entrada no epílogo são as referências a Miguel Unamuno, intelectual nacionalista que teve papel ativo no início da guerra civil da sua Espanha (1936-1939). O português José Saramago esgrime argumentos pró-esquerda fortíssimos contra uma figura histórica de direita, mas de um tempo histórico que não é o seu. Na prática, José Saramago faz-se autor de uma vitória apoteótica de um intelectual vivo sobre um intelectual morto. Nem sei se é possível encontrar uma designação que disfarce a indignidade da ‘técnica’ literária.

Miguel de Unamuno é, na leitura de José Saramago, a personificação do mal, entre os que melhor representa o óbvio lado mau que atenta contra a vida do povo sofredor, fazendo parelha com a igreja, as chefias militares e a demais elite rica nacionalista espanhola, conjunto que começa a ser retratado através dos que se exilaram em Lisboa no Hotel Bragança ou que se exibiam nos «Estoris» durante a guerra civil, nos bairros da gente rica da linha de Cascais. Depois, com a força da sua pena literária, José Saramago invade mesmo a Espanha durante a guerra civil – mas em 1984… – em defesa dos que congregam todas as virtudes: a Frente de Esquerda que estava a ser derrotada. A esta, José Saramago abençoa as atrocidades praticadas pelos seus, atrocidades tidas como selváticas se perpetradas pelos conservadores, com uma descrição pungente do que se passou na praça de touros de Badajoz (p.466, mas que deve começar a ser lida pelo menos a partir da p.462).

Nesse olhar seletivo sobre a violência que nada deve a um sofisticado panfleto soviético, é claro que n’«O Ano da Morte de Ricardo Reis» o repugnante Victor, intelectualmente limitado e com intenso cheiro a cebola, só poderia ser quem é: agente da PVDE [antecessora da PIDE]. Com uma imaginação literária que não dá para mais, José Saramago quis fazer história e, parece que a contragosto, teve de compor um ramalhete de personagens ajustado à utopia em que se destaca Lídia, mulher do ‘povo’ com hábitos de vida desempoeirados e sem estudos, o reverso das elites. É uma empregada de hotel carregada de dignidade e de bons sentimentos, em especial em relação ao seu irmão resistente comunista, Daniel Martins, no epílogo morto na rebelião da marinha no Tejo [8 de setembro de 1936].

Lídia, incansável trabalhadora cuja simplicidade, lucidez e amor desinteressado, que se se submete ao prazer carnal do parceiro, acabam por converter à causa comunista o médico Ricardo Reis, homem rico, conservador e poeta recém-chegado do Brasil nas últimas semanas de 1935 por causa da morte do seu criador, Fernando Pessoa. O último tem direito a circular entre os vivos mais nove meses após o funeral por existir um tempo equivalente para o abandono definitivo da vida ao que existe na sua entrada, os nove meses de gestação. O morto, Fernando Pessoa, vai acompanhando a conversão de Ricardo Reis às virtudes do comunismo que o último, ou ambos, carregam para a eternidade quando finalmente se fecham no túmulo em 1936.

A obsessão de José Saramago com uma certa ideia de ‘povo’ em 1935-1936, tipificando-o em Lídia, tem o senão de ignorar que a I República (1910-1926) tinha caído dez anos antes precisamente por desprezar um povo conservador, rural e católico. Esse mesmo povo que, em 1917, tinha gerado o fenómeno popular das aparições de Fátima, marco na reconstrução identitária dos humildes por si mesmos contra humilhações impostas pelo radical anticlericalismo republicano. A peregrinação a Fátima de 1936 não escapa à sátira de José Saramago. Como bom comunista, é tão incapaz de retratar o que funda a dignidade do povo (com tudo o que de ambíguo isso comporta), quanto extraordinariamente hábil em fabricar um tipo de ‘povo’ que quase só existe na cabeça do escritor.

Considerando que o clímax d’«O Ano da Morte de Ricardo Reis» é a conversão de Fernando Pessoa, por via do heterónimo Ricardo Reis, quarenta e nove anos depois de morto aos encantos do comunismo, estamos perante uma grosseria intelectual bem mais corrosiva para a cultura e identidade portuguesas do que a propaganda do Estado Novo com o filme «A Revolução de Maio». No mínimo, o filme de 1937 e o alter-ego em livro de 1984 deveriam ter o tratamento que merecem em universidades e escolas: exemplos de ridículo intelectual.

http://observador.pt/opiniao/como-saramago-forcou-pessoa-a-converter-se-ao-comunismo-49-anos-depois-de-morto/

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Federico García Lorca - CASIDA DE LA MANO IMPOSIBLE



Gravura de Anne-Marie Kornachu


* Federico García Lorca

CASIDA DE LA MANO IMPOSIBLE 

Yo no quiero más que una mano,
una mano herida, si es posible.
Yo no quiero más que una mano,
aunque pase mil noches sin lecho.

Sería un pálido lirio de cal,
sería una paloma amarrada a mi corazón,
sería el guardían que en la noche de mi tránsito
prohibiera en absoluto la entrada a la luna.

Yo no quiero más que esa mano
para los diarios aceites y la sábana blanca de mi agonía
Yo no quiero más que esa mano
para tener un ala de mi muerte.

Lo demás todo pasa.
Rubor sin nombre ya, astro perpetuo.
Lo demás es lo otro; viento triste,
mientras las hojas huyen en bandadas.


Carmen Rosário Montesino
28 de Janeiro de 2011 · 

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Catarina Pires - Quanto é que levas ?

* Catarina Pires

«Prostitutas das nove às cinco.» Era este o título de uma reportagem que ficou por escrever quando eu era pouco mais do que estagiária, já lá vão quase vinte anos. Uma manhã, fui para o Intendente. Almirante Reis acima, Almirante Reis abaixo, antes de ganhar coragem para falar com aquelas que me tinham levado ali.

A certa altura, um homem, velho, sujo, pequeno: «Quanto é que levas?» Eu, de repente, depois do espanto, a coragem: «Sou jornalista, podemos conversar?» Não pudemos. Ele fugiu a correr. Queria perguntar-lhe o que procurava, o que fazia com as mulheres a quem pagava por sexo, como as tratava, era de igual para igual?, quanto pagava?, que idades preferia?, usava preservativo?, era casado?, tinha filhas?, e, se sim, como encararia se, em vez de mim ou das mulheres a quem recorria para ter sexo a troco de dinheiro, fosse a filha dele ali, Almirante Reis acima, Almirante Reis abaixo. Fiquei sem respostas.

É sempre aquele homem que me vem à cabeça quando oiço falar na legalização da prostituição. «Quanto é que levas?»

Sou mulher. Sou feminista. Defendo a liberdade de cada um fazer o que quer da sua vida. Defendo que no meu corpo mando eu. Luto todos os dias pela igualdade de género. E sou contra a legalização da prostituição. Não aceito que, por ser mulher, um homem assuma que eu existo para lhe satisfazer as necessidades sexuais e me pergunte: «Quanto é que levas?»

O primeiro argumento apresentado pela Juventude Socialista para a legalização da prostituição é o de que esta deve ser encarada como uma questão de liberdade de escolha individual e do direito de as pessoas poderem dispor do seu próprio corpo como bem entenderem. Quase me convenciam. É um facto que algumas pessoas se prostituem por opção. E podem fazê-lo. A prostituição não é crime. A lei portuguesa não atenta, pois, contra essa liberdade.

No entanto, a esmagadora maioria das pessoas que se prostituem ou são prostituídas – esmagadora maioria essa feita sobretudo de mulheres – não o fazem por liberdade de escolha, mas sim por falta dela. É esta maioria que precisa de respostas. Não precisa que lhe perguntem: «Quanto é que levas?»

Por isso é que sou contra a legalização da prostituição. Melhor dizendo, sou contra a legalização do lenocínio, que é, na prática, a grande mudança que a legalização da prostituição trará. É feia a palavra lenocínio. E a sua prática é crime. De acordo com o artigo 169º do Código Penal, «quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos». Pena agravada caso o crime seja cometido «por meio de violência ou ameaça grave; através de ardil ou manobra fraudulenta; com abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho; ou aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima».

Legalizar a prostituição não protege as pessoas que se prostituem ou são prostituídas, antes converte chulos e proxenetas criminosos em respeitáveis empresários ou empresárias; não combate o tráfico de seres humanos (96 por cento do qual se destina à prostituição), antes lhe abre ainda mais as portas (e não me venham falar da Nova Zelândia, cujo modelo de legalização inspira a proposta da JS. É uma ilha isolada e com menos de cinco milhões de habitantes, não comparável a Portugal, ponto estratégico de confluência entre os continentes americano, africano e europeu); não resolve problemas de saúde pública nem promove a educação sexual, antes normaliza a ideia de sexo enquanto serviço (desde que paguem, podem servir-se), perpetuando as relações assimétricas de género e a violência contra as mulheres.

Se fosse hoje, aquela pergunta – quanto é que levas? – não teria ficado sem resposta.


Catarina Pires, jornalista e autora do livro Cinco Conversas com Álvaro Cunhal.

https://www.tsf.pt/delas/interior/amp/quanto-e-que-levas-prostitutas-das-nove-as-cinco-8944828.html

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Correia da Fonseca - Talvez um activo em risco



  • Correia da Fonseca 

Talvez um activo em risco
Era um programa habitado pela inteligência e que, transmitido pela RTP2 compreensivelmente por volta da meia-noite dos domingos, terminou agora, esgotadas as treze emissões desde o início previstas. Intitulava-se «Raízes», nele não acontecia mais que uma conversa entre Maria João Seixas e o prof. José Pedro Serra, e quase sempre isso era acontecer muito. Nesta última emissão, falou-se a dada altura da destruição da biblioteca de Alexandria, situada no tempo há bem mais que um par de séculos, e foi então que José Pedro Serra referiu uma projectada ou já por ele empreendida «História Mundial da Destruição dos Livros». Não deixaram de ser então lembrados os autos-de-fé nazis em que foram queimados, em ambiente de sinistra festa, não apenas os livros de Thomas Mann, como Maria João Seixas recordou, mas também obras de outros autores ideologicamente mais à esquerda. E também deverá ter sido referida, ainda que sem as demoras que o assunto justificaria, a institucionalizada acção censória durante a ditadura que Abril derrubou.
Outra «História Mundial»
Por essa altura, talvez muitos telespectadores tenham recordado o «Fahrenheit 451», romance de Ray Bradbury, e/ou a sua notável adaptação ao cinema feita por François Truffaut. Era uma estória terrível, situada entre a advertência e a previsão, que talvez ficasse bem como capítulo último e já profético da tal «História Mundial da Destruição dos Livros»do professor José Pedro Serra. Entretanto, porém, o que decerto é o pior de tudo é que essa destruição não é um caso de pessimista «ficção científica»: prossegue de facto na vida real, ainda que nem todos dêem por isso ou se preocupem. Quando se admite que a leitura de livros nos ecrãs dos computadores pode substituir a leitura de livros em papel sem perda de leitores em número e qualidade, é de facto da destruição dos livros que estamos a falar, semelhantemente ao modo como «e-mails» e «sms»s estão a acabar com as cartas tradicionais excepto quando elas mantêm valor documental como acontece (ainda?) no chamado mundo dos negócios e nas funções oficiais. E para avaliar o que fez o livro pelo avanço civilizacional e pelo progresso das gentes bastará talvez lembrar o relativamente breve período de tempo decorrido entre Gutenberg, falecido já na segunda metade do século XV, e o decisivo «boom» intelectual do século XIX. Em verdade, trata-se de um precioso activo humano que pode estar ameaçado. É claro que o eventual abandono do livro ou a sua decadência como instrumento cultural, isto é, como veículo de entendimento do mundo e da vida, não implica necessariamente o advento da ignorância como dominadora de quase tudo, ainda que certas formas de ignorância mascarada sejam hábeis a avançar. Porém, a expressão «barbárie informatizada» ameaça por vezes vir a ter algum significado concreto. Em verdade, a imaginada «História Mundial da Destruição dos Livros» tem um sentido profético que só por leviandade se desvalorizará. O que é inquietante quando nos lembramos de que também poderia ser imaginada uma «História Mundial da Leviandade Humana».

http://www.avante.pt/pt/2303/argumentos/148337/

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Olhares .. sobre a emigração portuguesa em França




EI-LOS QUE CHEGAM*
QUINTA-FEIRA, 10 DE SETEMBRO DE 2015
PUBLICADO POR RICARDO M SANTOS

“São esquisitos, baixos e com bigodes e barbas. Chegam, na esmagadora maioria, homens. Elas, quando vêm, cobrem os cabelos com panos e não usam saia acima do joelho. Muitas são proibidas pelos maridos de cortarem o cabelo. Por vezes, eles ameaçam-nas com uma chapada ou um murro; elas, subservientes, baixam a cabeça e colam as mãos ao ventre. Trazem com eles uma paixão fervorosa pela religião. Usam colares com o símbolo das suas crenças e são capazes de dar mais do que têm para que o seu local de culto, na sua terra natal, tenha um relógio ou um telhado novo. Rezam, pelo menos, de manhã e à noite. Se puder ser, ao final da tarde, cumprem mais um ritual.

Chegam sem falar uma palavra da nossa língua. Parece que fogem de uma guerra qualquer lá no país deles, da fome e da miséria. Não têm, por isso, noção de amor à nação. Fogem em vez de defenderem o seu país e lutarem por uma vida melhor lá, na terra deles, vêm para aqui sujar o nosso país com a sua imundície. Atravessam países inteiros a pé ou à boleia para chegarem aqui. Pagam milhares para saírem do seu país e vêm ficar na miséria. Alguns têm muitos filhos, muito mais do que aquilo a que estamos habituados. Deixam-nos sozinhos ou com os irmãos mais velhos, que não vão à escola. Mas são muito trabalhadores.

Bem, na verdade, não roubam exactamente o nosso trabalho, porque aqui há leis que não nos permitem trabalhar 18 horas diárias, embora isso exista e dê jeito a alguns patrões. Mas de certeza que nos roubam qualquer coisa. São diferentes de nós e isso causa-nos má impressão.

Não são muito limpos, cospem para o chão e as suas maneiras em público deixam muito a desejar. Vivem em bairros de lata que mais parecem campos de refugiados. Não sei como conseguem. Se é para viverem na miséria, mais valia ficarem na terra deles.”

Diário de um Parisiense,1969

*Embora pudesse ser um relato verdadeiro, demonstrativo da nossa estupidez colectiva, este texto é ficção. É da minha autoria. Não está em mais lado nenhum que não no blogue nem é excerto de coisa alguma. 

* Foto de  Gérald Bloncourt (http://bloncourtblog.net/2014/07/l-immigration-portugaise.html)
* Texto original de Ricardo M. Santos em 
http://manifesto74.blogspot.pt/2015/09/ei-los-que-chegam.html




http://www.bloncourtblog.net/2014/07/l-immigration-portugaise.html


quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Alexandre O’Neill - TOMA TOMA TOMA

* Alexandre O’Neill

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra,
contundentes, contundidos, esmocados,
com vozes de cana rachada e um toma toma toma
de quem não usa a moca para coçar os piolhos,
mas para rachar as cabeças.

O padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, a velha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista,
tramavam para nós a estafada estória
da nossa própria vida.

Mundo de pasta e de trapo
que armava barraca em qualquer canto
e sem contemplações pela moral de classe
nem as subtilezas de quem fica ileso
desancava os maus e beijocava os bons.

Ainda prefiro os bonecos de cachaporra.

Ainda hoje esbracejo e me esganiço como esses
matraquilhos da comédia humana.