* Oliver Harden
Em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, José Saramago propõe uma visão do deserto que transcende sua dimensão geográfica, conferindo-lhe um significado existencial e simbólico. Para o escritor português, o deserto não é apenas a vastidão árida e desolada que habita a imaginação coletiva, mas um estado de espírito que se manifesta na ausência daquilo que verdadeiramente nos define enquanto humanos. Neste sentido, o deserto torna-se a metáfora por excelência para a falta de encontro, de diálogo e de solidariedade entre os homens.
Saramago inicia sua reflexão desconstruindo o entendimento usual do termo: o deserto não é meramente um espaço físico marcado pela inospitalidade, mas um território existencial onde a humanidade se ausenta. Ele emerge, portanto, sempre que os vínculos que nos conectam aos outros são rompidos ou negligenciados. Trata-se de um lugar, ou antes de um estado, onde não há trocas de afeto, onde predomina o egoísmo, e onde a compaixão cede espaço à indiferença.
No entanto, Saramago nos adverte que o deserto não está confinado às paisagens desabitadas ou às regiões remotas da geografia física. Pelo contrário, ele frequentemente se insinua nas multidões, nas cidades vibrantes, nos lares aparentemente preenchidos de vida. A secura do deserto manifesta-se na solidão experimentada em meio à companhia, na ausência de empatia que permeia relações superficiais e no isolamento que ressoa, paradoxalmente, nas redes de interconexão tecnológica do mundo contemporâneo.
Este deserto espiritual, segundo Saramago, é a antítese daquilo que nos define enquanto seres humanos. Ele é a negação da nossa capacidade de amar, de nos abrir ao outro, de sermos solidários. É a recusa do diálogo e da comunhão, o exílio voluntário daquilo que dá sentido à nossa existência. Assim, a metáfora do deserto revela a aridez existencial que nos consome quando nos apartamos daquilo que é essencialmente humano.
A reflexão de Saramago ganha especial relevância no contexto da modernidade, marcada por uma fragmentação crescente das relações humanas. Em um mundo saturado de conexões virtuais e, simultaneamente, esvaziado de proximidade emocional, o deserto surge como a condição latente de nossa época. Paradoxalmente, quanto mais nos interligamos por meio das tecnologias, mais distantes nos tornamos no plano afetivo, alimentando a aridez espiritual que Saramago denuncia.
Diante desse cenário, a reflexão saramaguiana nos desafia a resgatar aquilo que pode extinguir o deserto interior: o reencontro com nossa própria humanidade. Este resgate exige a reconstrução de laços autênticos, pautados pelo diálogo, pela escuta genuína e pela solidariedade. Impõe-nos a tarefa de transformar o deserto, de romper sua esterilidade, devolvendo-lhe a fertilidade das relações humanas e a vitalidade dos afetos.
Portanto, ao reinterpretar o conceito de deserto, Saramago nos impele a pensar em alternativas para superar o vazio de um mundo individualista. Ele nos convida a imaginar e a construir uma realidade onde o deserto seja apenas uma paisagem geográfica – nunca um estado de espírito. Somente assim podemos aspirar a uma existência plena de significado, onde a humanidade, na sua essência mais nobre, prevaleça sobre a aridez do deserto existencial.
2024 12 16
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