* Clara Ferreira Alves
«Não tenho muito a dizer sobre a década. Já passou. O mundo mudou. Mudou mais em 10 anos do que costumava mudar em 20 ou 30, e não há nada que possamos fazer sobre isso, porque não há nada que nos interesse o suficiente para podermos fazer alguma coisa sobre isso. Ou não há nada que abra uma fenda no narcisismo e no egoísmo da era do mim a mim. As massas elevaram-se acima do anonimato e comunicam-se as respetivas irrelevâncias com o escrúpulo do entomologista. Nada fica acima da necessidade de partilhar, desvendar, mostrar. Uma qualidade que julgávamos inerente à liberdade chamada privacidade desapareceu, não por nos ter sido retirada por um sistema autoritário e repressivo mas porque decidimos coletivamente que não era mais importante do que a necessidade de partilhar e de receber em troca uma aprovação infantil e igualmente irrelevante chamada like. Queremos muitos likes e muitos seguidores, queremos amigos que nunca vimos e com os quais nunca falamos, falámos ou falaremos, milhares deles se possível, queremos mostrar-lhes o que fazemos, quando fazemos, onde fazemos, com quem fazemos. E contra quem ou a favor de quem estamos. E queremos também seguir e like muita gente que nunca vimos e cuja voz nunca ouvimos.
Se tivesse de destacar uma das características da década seria esta, a de que deixámos de estar interessados em falar uns com os outros, de ouvir o som das palavras, de comunicar oralmente. A comunicação escrita está destinada a desaparecer, mas a comunicação oral, tão velha como a espécie, parecia menos condenada. Não é verdade. Basta apreciar o modo como utilizamos o telemóvel. No tempo do telefone único, quando havia um telefone por casa, por família, por rua ou mesmo por aldeia, o telefone era o modo mágico de ouvir a voz de um parente ou de um amigo distante, e as pessoas corriam para o telefone cheias de vontade de ouvir. A carta não tinha o mesmo efeito imediato nem a proximidade ou afeto. Amos Oz, em “Uma História de Amor e Trevas”, um daqueles livros que valem bem um Nobel se o Nobel ainda tivesse validade intelectual, relata a voracidade com que os pais usavam o telefone em Israel, no princípio de Israel, para ouvirem uma voz amada. O telefone era o elo de ligação, o destruidor da distância e da saudade.
Hoje, quando alguém ainda se dá ao trabalho de ligar, de carregar uns números no teclado ou de ir à lista de contactos, espera durante dois toques e desliga. A razão por que nunca chegamos a tempo de atender a chamada é porque a chamada não foi feita para ser atendida. Foi feita para passar a mensagem: estou a fingir que quero falar contigo, só para dar essa impressão, mas na verdade espero que não atendas e que me ligues de volta, embora não tenha intenções de atender. Tudo isto pode e deve ser tratado por mensagens, de preferência no WhatsApp, embora não me apeteça escrever mais do que me apetece falar. O melhor será enviar um vídeo, ou um GIF, ou um emoji, e arruma-se assim a comunicação. Uma pessoa que tem a mania de enviar muitos emojis é uma daquelas pessoas que antigamente costumavam falar muito. Tagarela dos emojis. As pessoas dos vídeos são mais, dá menos trabalho, e um forward arruma as despesas de uma data de conversas ou votos de Boas Festas, aniversários, saudações, melhoras. Os vídeos de Natal, sobretudo os cómicos, circulam nos telemóveis à velocidade da luz, forwarded coletivamente e várias vezes. Nem uma palavra será pronunciada ou escrita, que sorte.
Existem também as pessoas que ficam ofendidas quando alguém lhes liga e espera ouvir o som da voz delas. Que maçada, esta gente espera que eu atenda e fale, que me dê ao trabalho de pronunciar palavras e entreter uma conversa? Pensam que estamos no século XX? Tenho lá paciência para isto, não atendo. E quanto aos números desconhecidos, ninguém atende números desconhecidos, porque são usados exclusivamente por empresas de marketing e escravos num call center que tão-pouco esperam que alguém lhes atenda o telefone ou nele permaneça depois de ouvir as palavras estou a falar da empresa X. O código dominante de comunicação é a imagem, fútil e fugaz, tão irrelevante como o arquivo digital desta Humanidade. Da civilização atual restarão as máquinas, os esqueletos obsoletos das máquinas, o lixo eletrónico. Não as palavras.
Igualmente detestado, o livro não utilitário entrou na fase terminal. A ficção é uma ficção. A poesia é uma relíquia. Tenho o hábito bizarro de me sentar a ler em coffee shops, que é como se chamam agora os cafés. No Starbucks, se alguém entrar com um computador e começar a usar a mesa como secretária, ligando meia dúzia de aparelhos uns aos outros e usando auscultadores para deixar de comunicar com o mundo em redor, estabelecendo o escritório, ninguém o incomoda. Mas se um incauto consumidor de expressos e latte puxar de um livro, é olhado com pânico geral. Um ritual se seguirá. O tipo do computador continua a falar para a Ásia, por exemplo, e a trabalhar em paz, enquanto o do livro notará que os empregados começam a tentar levar as chávenas ainda mal tenham sido bebidas, ou a garrafa de água meio cheia, ou o prato com as migalhas do croissant ou mesmo com um pedaço do croissant. Em Nova Iorque e em Londres, em todas as coffee shops, os serventes são estudantes digitais que limpam a mesa com denodo, e tudo o pano levou, olhando enfastiados o objeto de papel e perguntando, com acinte, mais alguma coisa? Tradução: põe-te a mexer daqui para fora, dinossauro. Não consomes e não ficas. Não se trata de defender o interesse do patrão, porque se pedirmos mais qualquer coisa, um segundo latte, o ódio aumenta. No banco do lado, o cliente do laptop com acessórios continua a tratar da vida dele, num isolado esplendor profissional, o expresso encomendado por beber, frio, pretexto para ocupar o lugar. Nestes rituais, por vezes, nem uma palavra é trocada, comunica-se por gestos. E panos. Há os que desatam a varrer os pés por baixo da mesa. Os livros não são bem-vindos. São um sinal datado. Um sinal de velhice. O futuro lê nas máquinas. E as máquinas leem a Humanidade.
Um dia, em breve, este lugar da antiga escrita será ocupado por um programa que desenhará um texto segundo um algoritmo que procurará satisfazer uns metrics num processo calculado para provocar um efeito previsto. E para os que estão preocupados com o planeta, não vale a pena. As máquinas suportam o calor e o frio, a extinção das espécies animais, a subida dos mares e dos rios e o envenenamento das águas e dos ares, a violência da Natureza. As máquinas nunca têm fome ou sede, dispensam abrigo. Talvez falem umas com as outras, mais do que nós falamos. Porque são inteligentes e imitam a Humanidade enquanto nós imitamos as máquinas.»
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