sexta-feira, 26 de junho de 2020

Pedro Cardim Para uma visão mais informada e plural do padre António Vieira

* Pedro Cardim

25.06.2020 às 9h30

A estátua de Vieira retrata de uma forma caricatural a colonização portuguesa na América e o papel desempenhado pelo jesuíta, em especial no que respeita aos ameríndios. Aqueles que se revêem nesta estátua demonstram ignorar grande parte da investigação mais recente sobre o tema

Omonumento em honra do padre António Vieira, erigido em Lisboa defronte da igreja de São Roque, não faz jus à sua figura. Vieira merecia ser recordado por uma intervenção artística que desse melhor conta da riqueza da sua obra e da complexidade da sua vida.

Antes de mais, porque representar António Vieira segurando numa cruz e rodeado de crianças indígenas é uma forma caricatural de retratar o Brasil colonial e a ação que Vieira nele desempenhou, em especial no que respeita às populações ameríndias. A estátua nada diz sobre o que realmente se passou ali a partir de 1500. Desembarcados na América do Sul, os portugueses levaram a cabo uma "conquista", ou seja, a apropriação – frequentemente violenta – de terras que eram dos povos autóctones.

Depois de consolidarem o seu domínio sobre as primeiras parcelas de terra, as autoridades portuguesas, seculares e religiosas, definiram a forma como iriam lidar com os autóctones da América. Quanto aos indígenas que foram submetidos pelos portugueses, as autoridades coloniais trataram-nos como miserabile personae, como uma espécie de crianças ou de pessoas desprovidas de autonomia e de autossuficiência. Foram vistos como seres que careciam da tutela dos colonizadores, acabando por ser reduzidos a uma condição de menoridade, cívica, jurídica e política. No que respeita aos muitos povos indígenas que viviam nas vastas áreas que escapavam ao controlo dos conquistadores e que contra eles resistiam, foram encarados como "selvagens", "rebeldes" e inimigos.

Foi com base na ideia de que os indígenas eram miserabile personae que se conformou o relacionamento entre os colonizadores e as populações autóctones que não foram consideradas inimigas. A esses indígenas foi dada a possibilidade de entrarem na sociedade colonial, mas impôs-se-lhes como condição a sua subordinação aos portugueses e a sua submissão a um intenso processo de conversão ao catolicismo.

António Vieira é produto desta maneira de entender os povos ameríndios e identifica-se plenamente com ela. À semelhança do que vários missionários antes dele tinham feito, Vieira também promoveu a deslocação maciça de comunidades indígenas e a sua concentração em aldeias situadas nas proximidades das zonas de colonização, aldeias essas administradas pelos próprios jesuítas e por outras ordens religiosas.

E para que é que serviam essas aldeias? Serviam, antes de mais, para impor aos indígenas, muitas vezes com violência, o modo de vida português e a religião católica. Além disso, o sistema das aldeias impunha aos "índios aldeados" um regime de trabalho obrigatório. Tanto os jesuítas, quanto os colonos que viviam nas redondezas serviam-se dos "índios aldeados", empregando-os quase sempre nas ocupações mais aviltantes como trabalhadores forçados. Quando eram pagos, os indígenas recebiam um salário em geral miserável. Um exemplo: em 1654 Vieira estabeleceu um acordo com o governador e as câmaras do Maranhão para regulamentar o trabalho compulsório dos "índios aldeados". Segundo esse acordo, os índios realizariam seis meses de serviço por ano nas propriedades dos moradores e receberiam, em troca, pouco mais de dois metros de pano por mês...

A par do trabalho pago desta forma miserável, os índios concentrados nas aldeias foram também frequentemente mobilizados contra os inimigos dos portugueses, como os holandeses ou os franceses. Além disso, os colonos também os utilizaram na luta quer contra os escravos negros que fugiam das zonas coloniais e que se concentravam em quilombos, quer contra os demais povos indígenas que resistiam contra a colonização. Para os portugueses a guerra fazia parte do quotidiano colonial, não só para conquista de mais terras, mas também para a captura de indígenas e sua conversão em escravos ou em trabalhadores forçados.

A estátua nada diz sobre isto e tão-pouco mostra que, para além de serem submetidos ao trabalho forçado, havia muitos indígenas escravizados. Convém lembrar que, para as autoridades portuguesas, a escravização de ameríndios continuou a ser legal até à segunda metade do século XVIII. Para Vieira, como para os demais jesuítas (com poucas divergências internas), a escravidão de índios e, também, de negros era aceitável desde que fossem respeitados os títulos de escravização reconhecidos como legítimos (guerra justa, comutação da pena de morte, extrema necessidade e condição do ventre materno).

Numa sociedade marcada por uma forte discriminação racial, os índios eram relegados para um dos seus escalões mais baixos. Ou seja, os indígenas cristianizados que conseguiam sair das aldeias ou livrar-se da escravidão, quando iam viver entre os portugueses só se conseguiam empregar em atividades desprestigiantes e mal pagas, ficando praticamente privados de qualquer hipótese de ascensão social. A mestiçagem estava presente, mas costumava ser ativamente escondida por todos os mestiços que tinham a ambição de ascender socialmente.

Não há dúvida de que, ao longo da sua vida, Vieira se destacou na defesa de certos povos indígenas e denunciou alguns abusos dos colonos. Contudo, é preciso notar que tais denúncias foram quase sempre uma boa ocasião – política – para Vieira reivindicar que, na relação entre colonos e indígenas, a tutora e a intermediária privilegiada, ou mesmo exclusiva, deveria ser a Companhia de Jesus, a ordem à qual ele pertencia.

A par disso, não se pode esquecer que, em vários momentos, o mesmo Vieira apelou às forças portuguesas para que atacassem e submetessem, por vezes com muita violência, os ameríndios que resistiam à invasão das suas terras, ou que recusavam o catolicismo. Aliás, e à semelhança dos seus contemporâneos, Vieira usou termos como "gentio bárbaro" ou "selvagem" para denominar os indígenas que continuavam a resistir contra os portugueses. Tais palavras, como se sabe, estavam carregadas de preconceitos a respeito dos seres humanos assim designados.

Tudo isto é factual, baseia-se na documentação existente e está plenamente demonstrado pelos estudos dos últimos trinta anos. No entanto, a escultura que pretende homenagear Vieira é completamente omissa a respeito destes factos. Ela reflete, acima de tudo, uma visão benigna da colonização portuguesa das terras sul americanas e da relação com as suas populações autóctones. Para além de nada dizer sobre estes temas, o monumento a Vieira tem também o condão de ocultar a resposta dada pelos indígenas à agressão portuguesa. Apresenta os índios como seres passivos, uma espécie de crianças que nem sequer eram capazes de se defender, carecendo de um português para os proteger. Nada mais distante da realidade. Ao longo dos trezentos anos de colonização os indígenas defenderam-se de um modo inteligente e encarniçado. A resistência – armada, e não só – dos ameríndios contra os portugueses foi muito mais eficaz do que habitualmente se pensa, e foi precisamente graças a ela que muitos desses povos conseguiram manter os colonizadores fora das suas terras durante toda a dominação portuguesa no Brasil. Além disso, muitas mulheres e homens indígenas rapidamente aprenderam a utilizar os recursos trazidos pelos portugueses a fim de com eles alcançar a liberdade ou resistir contra a opressão colonial.

Para quem estuda a história da colonização portuguesa em terras americanas, nada disto é novidade. O alcance e os limites da ação de Vieira relativamente aos indígenas são bem conhecidos, e o mesmo se poderia dizer da sua posição sobre a escravização de africanos subsaarianos. A sua concordância com a escravidão de afrodescendentes não difere daquilo que era a opinião corrente na época. Vieira não era contrário ao sistema esclavagista, defendia-o na medida em que, do seu ponto de vista, ele permitia o trânsito de pessoas pagãs para terras cristãs e, subsequentemente, a sua suposta salvação, mas sempre sob a autoridade dos seus proprietários.

As suas críticas à violência com que os senhores de escravos tratavam as pessoas escravizadas não diferem muito do que várias pessoas há muito diziam, tanto no Brasil como na América espanhola. Mas havia quem, naquele mesmo período, e ao contrário de Vieira, condenasse a escravatura. Vários dos jesuítas com os quais Vieira entrou em conflito no final da sua vida fizeram muito mais do que ele para melhorar a condição dos afrodescendentes escravizados. O mesmo se pode dizer de alguns franciscanos e, também, de capuchinhos em missão pelas Caraíbas e pela América do Sul. Comparados com estes, Vieira não se distinguiu na defesa dos afrodescendentes escravizados. Por exemplo, ao contrário de outros, não se destacou no apoio à sua importante luta para terem acesso ao sacramento do matrimónio. Foi sempre fiel à ideia de que os escravizados deveriam aceitar submissamente o cativeiro em troca da liberdade das suas almas.

Compreende-se, pois, que Vieira se tenha oposto tenazmente à cristianização dos habitantes do quilombo de Palmares. Alegou que tal equivalia reconhecer a existência dessa comunidade "rebelde" que estava há anos a resistir contra a dominação colonial portuguesa. Com esta atitude Vieira visava, acima de tudo, castigar os que pegavam em armas contra a ordem colonial e não dar esperança aos escravizados de que poderiam alcançar, pela luta, a liberdade. Para Vieira, a liberdade não devia ser conquistada pelas armas, mas sim eventualmente concedida pelos senhores.

Tudo isto são factos conhecidos, e não propriamente um julgamento acusatório de António Vieira, figura que, aliás, sempre me interessou como objeto de investigação. O jesuíta tem sido muito estudado e tem de continuar a ser estudado, pois é uma figura com uma trajetória riquíssima e, em alguns aspetos, única. No entanto, sou contra o uso abusivo de António Vieira como um "defensor dos direitos humanos". Essa ideia, lamentavelmente inscrita na placa que acompanha a estátua que foi erigida em Lisboa em 2017, está completamente desfasada dos quadros mentais da época de Vieira. Também não me parece que se deva retratar o jesuíta como um protetor desinteressado dos índios, uma espécie de Bartolomé de las Casas português, forma de dizer que, no fundo, o colonialismo português não era assim tão mau... Vieira estava ao serviço de um projeto de colonização que visava submeter o maior número possível de indígenas e mantê-los em situação de menoridade e sob a tutela da Companhia de Jesus. Quanto à ordem colonial e esclavagista que, no Brasil, foi criada pelos portugueses e doutrinalmente sancionada pela Igreja, não era nada aprazível para os índios e, muito menos, para os afrodescendentes. Vieira jamais teve como finalidade alterá-la de uma forma substantiva.

Durante demasiado tempo, sob a ditadura de Salazar e não só, vários historiadores portugueses esqueceram estes e outros factos, insistindo numa imagem fundamentalmente benigna da colonização portuguesa, no Brasil e em outros continentes. Hoje, felizmente, a situação mudou. Muitos dos que se ocupam do passado colonial português defendem uma abordagem mais rigorosa e mais bem fundamentada. E percebem, para além disso, que pior do que não falar sobre esse passado é substituí-lo por uma narrativa apologética do colonialismo português, ou por uma comemoração simplista e caricatural de figuras como o padre António Vieira.

A estátua que me levou a escrever este texto foi erigida em Lisboa há escassos três anos, e não propriamente no século XIX ou sob o Estado Novo. Há alguns dias o atual presidente da câmara lisboeta reiterou que se revia na estátua porque esta mostrava que Vieira tinha uma "dimensão humanista e de tolerância num tempo em que isso não era de todo regra". Nessa ocasião, voltou a anunciar a criação de um "Museu da Descoberta", qualificando de "gratuita" toda a polémica gerada por este seu projeto. Mais ou menos pela mesma altura, o mayor de Londres anunciava que iria promover um debate aberto, informado e plural sobre a presença, na cidade, das marcas do império britânico. Em Portugal esta atitude mais crítica sobre o passado colonial já existe em vários sectores da sociedade. Seria importante que chegasse às autoridades políticas e religiosas, bem como à sociedade civil. E seria também importante que uma análise crítica de figuras como o padre Vieira deixasse de ser vista como antipatriótica. A finalidade destas análises é contribuir para uma sociedade melhor, assente numa relação com o passado mais informada, mais plural e mais justa.

https://expresso.pt/opiniao/2020-06-25-Para-uma-visao-mais-informada-e-plural-do-padre-Antonio-Vieira

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