Hiroshima, Meu Amor
* Manuel Augusto Araújo
9 Agosto 2018
Alain Resnais tinha realizado um notável documentário sobre
os campos de concentração nazis “Noite e Nevoeiro”.Encomendaram-lhe
outro sobre Hiroxima, um documentário sobre e contra a bomba atómica. Fazia
todo o sentido. O mundo vivia o pesadelo da ameaça nuclear, depois de os EUA
terem desnecessariamente bombardeado Hiroxima e Nagasáqui, com Truman a
declarar que «a bomba atómica é mais uma arma no arsenal da justiça» e
de ter pontuado o discurso ao Congresso em que estabeleceu o que ficou
conhecido como Doutrina Truman, com frases do tipo «Deus guiou os
Estados Unidos da América quando lançou a bomba atómica» que ainda
hoje devem fazer ficar roxos de inveja os califas do estado Islâmico, qualquer
defensor da paz e cooperação mundial estava justificadamente alarmado apesar da
União Soviética ter reposto o equilíbrio armamentista com o primeiro teste da
bomba atómica em 1949 e da bomba de hidrogénio em 1955. A corrida às armas
nucleares estava aberta. Uma espada de Dâmocles estava presa por um fino fio
sobre o universo.
Resnais decidiu não correr o risco de fazer uma variante de“Noite
e Nevoeiro”, por mais excelente que fosse. Conhecendo bem os romances
de Marguerite Duras encomendou-lhe o guião de que resultou Hiroxima,
Meu Amora primeira longa-metragem do realizador. A protagonista diz uma
frase muito perturbadora naquela época «Se podemos fazer filmes para vender
sabão, por que não para vender a paz?», premonitória dos nossos tempos
em que as estratégias de marketing invadem e substituem os debates políticos,
Trump e Macron aí estão para o demonstrarem.
«Hiroxima, meu amor» é uma história de
paixão entre uma actriz francesa que vai a Hiroxima rodar um filme sobre a paz,
e um arquitecto japonês que participou da reconstrução da cidade destruída pela
bomba. Resnais mostra-a nos corpos das vítimas calcinadas pelas cinzas,
deformados pelos efeitos das radiações. Violência sublinhada pelo obsessivo
recitativo entre os dois amantes em que ela repete que viu tudo e ele insiste
em que ela nada viu: «Sim, eu vi tudo em Hiroxima», «Não, não viste nada em
Hiroxima.» A violência desumana da bomba é excessiva para ser
visualizada.
É uma história de amor impossível, condenada pelas
circunstâncias, o arquitecto é casado tem vida estabilizada, ela abandonará o
Japão acabado o seu trabalho. Amores impossíveis em contextos políticos
complexos, nada inesperados em Duras, refiram-se O Amante, O Amor,
Moderato Cantabile que o faz sempre ainda que muitas vezes de
forma subliminar.
História de amor progressivamente substituída por memórias e
pela impossibilidade do esquecimento. As memórias recentes e visíveis do ataque
nuclear despertam as memórias vividas pela actriz na II Guerra Mundial em
França, em Nevers, sua terra natal. O romance proibido do seu primeiro amor,
tinha dezoito anos, por um jovem oficial da Wehrmacht. No final da guerra, ele
é morto pelos resistentes, a ela rapam a cabeça. Vive o opróbio e a loucura
do seu amor escondida pelos pais numa cave.
Memórias que se cruzam durante todo o filme numa relação
poética entre a catástrofe colectiva e a tragédia pessoal que Resnais utiliza
de forma extraordinária para representar e condenar a inominável dor provocada
pelo absurdo ignóbil e inqualificável que foram os bombardeamentos de Nagasáqui
e Hiroxima.
Alain Resnais em Hiroxima meu Amor,
realiza um filme superlativo em que filma o que é irrepresentável e indizível,
contestando Adorno que tinha afirmado que depois de Auschwitz os poemas eram
impossíveis. O texto obsessivo de Duras, as elipses narrativas a captar o que
parece impossível, a montagem de associações e analogias, a utilização
radicalmente inovadora do flash-back, a sucessão entre tempos rápidos e lentos,
fazem deste filme, que é um filme sobre a instabilidade de um mundo em
decomposição, um filme sem precedentes e único na história do cinema.
(publicado em Avante!, 9 Agosto 2018)
https://pracadobocage.wordpress.com/2018/08/09/hiroshima-meu-amor/
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