Entrevista -, AbrilAbril POR NUNO RAMOS DE ALMEIDA
17 DE OUTUBRO DE 2021
Feminista e jurista de renome, conversou com o AbrilAbril sobre
violência contra as mulheres e aquilo que é necessário fazer para haver uma
sociedade em que a opressão das mulheres fique na pré-história do nosso tempo.
Teresa Pizarro Beleza foi a primeira mulher a dirigir a
Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Criou a disciplina de
Direito das Mulheres e da Igualdade Social, introduzida no elenco das cadeiras
de opção da licenciatura em Direito. Foi vogal do Conselho Superior do
Ministério Público, por designação do Ministro da Justiça. Eleita, por
referência de Portugal, para o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura (CPT
do Conselho da Europa) por um mandato de quatro anos, entre 1999 e 2003, levou
a cabo missões de fiscalização das condições de detenção sob autoridade pública
em vários países, nos termos da Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura
e Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes.
Há mais assédio sexual hoje do que havia nos seus tempos
de faculdade?
Se «…os meus tempos de faculdade…» significa quando eu era
estudante universitária, a resposta é: não sei. Não tenho dados objectivos
fiáveis, estatisticamente significativos, para dar uma resposta séria. Mas, em
termos de intuição e experiência, diria que é provável que a variação
quantitativa não seja muita. A percepção e sobretudo a publicitação de
um fenómeno que todas ou quase todas as mulheres conhecem é que certamente
terão mudado. E muito.
Por que razão é que só agora as questões do assédio
sexual parecem ter-se tornado visíveis?
Não se tornaram visíveis só agora. Mas na
verdade o grau de visibilidade acentuou-se muito com um certo renascer recente
do feminismo. Simplificando, porque «feminismo» é tudo menos coisa simples
ou unitária. Há múltiplas e muito diversas correntes que cabem nesta designação
genérica. Sendo na verdade coisa antiga, o feminismo (ou os feminismos, talvez
melhor dizendo) nem sempre se centrou na atenção à violência e ainda menos ao
assédio sexual, que por vezes se fala, e bem, em outro(s), incluindo na
legislação do trabalho, por exemplo. Quando John Stuart Mill denunciava no
parlamento britânico a violência conjugal mortífera que se abatia sobre as
mulheres, ou declarava solenemente que não exerceria sobre a sua mulher os poderes
que a lei lhe concedia, caso Harriet Taylor aceitasse casar com ele, era uma
voz solitária e rara. Não por acaso autor do magnífico ensaio «The Subjection
of Women» (1869), Stuart Mill ainda é hoje – em meu entender – muito pouco
conhecido nesta sua faceta, mesmo por parte dos teóricos da Ciência Política,
quantas vezes distraídos, ou simplesmente ignorantes, em matéria de relações
de género. A União Europeia começou a tentar publicitar e combater o
problema do assédio nos locais de trabalho há muitos anos e encarregou um
investigador, cujo nome não recordo com exactidão, Michael Rubinstein, creio,
de andar pelos vários países da União Europeia antes de esta o ser,
incluindo Portugal – passa-se no final dos anos 80, se não erro –, a explicar
que o assédio existia (coisa que muitas mulheres, como as operárias, que ouvi
pessoalmente depor nessas sessões, estavam fartas de saber). A afirmar
sobretudo que era coisa ruim, não aceitável. Nós também sabíamos, mas por
timidez, vergonha ou experiência de indiferença ou desconsideração de
quem pudesse ouvir, não tínhamos o hábito de nos queixar, muitas vezes
nem de simplesmente contar.
Eu fui vítima, em jovem, quando andava muito pelas ruas, ou
nos transportes públicos (metro, autocarros), de vários actos de atentado
ao pudor (seria a designação oficial segundo a Lei Penal então
vigente) e nunca apresentei queixa, nem sequer me ocorreu. Acontece que, com
todas as variações no espaço e no tempo, as mulheres sempre foram educadas para
a submissão e simultaneamente para a sedução ma non troppo, e os
homens para o domínio e para verem as mulheres como propriedade sua, em casa,
na cama ou na rua. E por isso, as agressões verbais ou físicas que quase todas
as raparigas sofreram na rua ou no trabalho foram suportadas ou ignoradas,
tantas vezes com vergonha das próprias, porque tudo apontava para a sua culpa,
provocação. Até o Código Penal, em 1982, nas disposições sobre crime de
violação, insinuava que a probabilidade era de provocação por parte da vítima,
constituindo uma circunstância atenuante específica desse crime, um dos mais
graves e humilhantes para qualquer mulher (ou homem, aliás), alterado em 1995.
Aliás, a violação era, na versão originária do Código Penal da democracia, o
tal que que toda a Assembleia da República considerou maravilhoso e excelente –
excepto quanto ao aborto e não pagamento de salários, cuja regulação ou falta
dela foram contestadas pelo Partido Comunista –, o furto qualificado (sem
violência) era mais grave que a violação, ou seja, que ofensas corporais
graves. Isto é, o furto de um relógio valioso era legalmente mais grave do que
cortar o braço de quem o ostentava. Cortar, mesmo, arrancar, a vítima ficar sem
o dito…
Fartei-me de refilar, por escrito e oralmente, mas só em
1995 o legislador percebeu, como quem faz uma grande descoberta, o rematado
disparate, obviamente inconstitucional, que tinham feito uns bons anos antes… E
os juízes, presumo, muito entretidos na sua elaborada dogmática tese
(?), aprendida nas faculdades de direito, aparentemente não deram por nada
anos a fio. Do assédio, o legislador nunca ouvira falar, não sabia o que era,
nem fazia ideia, presumo. Acharia talvez que se tratava de amáveis galanteios
que os homens faziam às mulheres e elas até gostavam. As raras e improváveis
queixas ou os eventuais protestos viriam certamente de feministas assanhadas,
por definição«“feias» (Mário Soares, in illo tempore) e
invejosas da atenção de que as suas rivais eram objecto.
Quais são as condições sociais, políticas, educativas e
jurídicas que podem erradicar práticas e comportamentos que considerem as
mulheres uma espécie de propriedade do homem?
Uma revolução civilizacional, que faça reverter hábitos,
convicções, teorias, tradições, costumes e leis de séculos, ou melhor, de
milénios. Coisa simples, como se vê. Michelle Rosaldo, uma brilhante
antropóloga, infelizmente morta num acidente de trabalho de campo, verificou
que em todo o mundo havia uma enorme variação do que era considerado atributo
masculino e feminino, mas que uma coisa era constante: a suposta superioridade
de tudo o que estava associado ao masculino, isto é, ao homem.
Há uma série de sentenças em tribunais portugueses, umas
mais antigas (a célebre coutada do macho latino) e umas mais recentes, que
mostram um posicionamento bastante machista da justiça (por exemplo no
livro Medusa no Palácio da Justiça ou Uma História da Violação
Sexual, de Isabel Ventura.) Isso é verdade? Há algo que se deva mudar
na lei, ou apenas na formação dos magistrados?
Não era a «coutada do macho latino», mas a «coutada do macho
ibérico», se quer citar a expressão usada num Acórdão do Supremo Tribunal de
JustiçaSTJ sobre um caso de violação de duas turistas jugoslavas que pediam
boleia numa estrada do Algarve e foram vítimas de energúmenos locais. Tive
então a paciência de discutir esse caso, e semelhantes, num programa de
televisão que me granjeou o epíteto, de que muito me orgulho, de «Jurista Ás»
por parte do saudoso Mário Castrim, no seu papel de observador e crítico
televisivo. As raparigas seriam, naturalmente, culpadas da agressão brutal dos
moços, coitadinhos, que não resistiram aos seus naturais e desculpáveis
impulsos de machos de sangue quente, donos e senhores de qualquer fêmea que se
aventurasse na sua… coutada.
Sempre me interroguei sobre o que pensariam suas excelências
reverendíssimas, digo, meritíssimas, que assinaram tal dislate sob a forma de
acórdão do nosso mais alto tribunal, dos seus próprios filhos e filhas, se
acaso os tivessem. As leis portuguesas não estão mal de todo, mas podem e devem
ser melhoradas em muitos aspectos, designadamente no cumprimento das obrigações
assumidas quando da ratificação da Convenção de Istambul, de 2011. Em primeiro
lugar, uma muito diferente da actual compreensão da dignidade e liberdade de
todas as pessoas, seja qual for a cor, o sexo, o género, e por aí fora. Ainda
estamos bem longe disso, que parece tão evidente como no belo e tão esquecido
texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Jean-Michel Folon,
o genial artista belga que ilustrou uma das mais belas edições da DUDH, que
conheço (1988, ed. Fondation Folon, Bruxelas), com apoio da Amnistia
Internacional, escrevia: «Tout le monde en parle, personne ne la lit».
É altura de, a pretexto de aniversários redondos ou de
qualquer outra coisa, relê-la e celebrá-la. E, sobretudo, de a levar a sério, e
pô-la finalmente em prática.
Mas a formação dos magistrados é absolutamente essencial,
porque já se tornou por demais evidente que ainda hoje há decisões judiciais
absolutamente indignas de um país que se diz ser um Estado de direito
democrático e tem uma Constituição da República correspondente, que aliás
recebe expressamente no seu texto a Declaração Universal como ponto de
referência interpretativo privilegiado em matéria de direitos liberdades e
garantias.
Nos anos 60, as mulheres reivindicavam o seu direito a
ter a sexualidade que entendiam. Actualmente, há uma luta contra o abuso
sexual, sendo que uma reivindicação não é contraditória com a outra. Não se
verifica, no entanto, em algumas franjas do movimento feminista, uma certa
infantilização da mulher e de fazer dela sempre uma vítima? Não existe uma
séria deriva em considerar que toda a relação heterossexual se faz num quadro
de abuso estrutural?
Depende. Se com essa afirmação se quer dizer que as relações
heterossexuais existem num contexto geral de um sistema que ainda hoje se pode
descrever e caracterizar como patriarcado, então a afirmação é, obviamente,
verdadeira. Tal como se afirmar que uma relação entre um branco e
um negro nos EUA existe num contexto estrutural racista. Ou
entre um capitalista e um operário num contexto geral de classismo, isto é, de
diferenciação entre classes sociais (isto dito de forma simplista, claro, é
necessário fazer análises muito mais finas, mas não é este o lugar). Como não
reconhecer coisa tão óbvia!? Assunto diferente é o reconhecimento de que as
relações individuais – no plano micro, se quiser – podem sempre
escapar ao modelo hegemónico, em qualquer destes casos. Há quem o negue, pois
claro. Também há quem recuse as vacinas e jure que a Terra é plana, ou que
Darwin era doido, que Deus nos criou assim tal e qual, etc. Nem todos os relacionamentos
amorosos (ou outros) entre um homem e uma mulher são necessariamente violentos
e desiguais como, aliás, nem todos os casais do mesmo sexo são harmoniosos e
livres de domínio ou violência. Só quem for muito distraído, ou pouco
esclarecido sobre estas coisas, pensará que assim é. Digo eu, é claro, que não
me imagino particularmente iluminada, mas ando a estudar e a pensar nisto tudo
há muitos anos e tenho a veleidade de ter percebido algumas coisas.
Como conseguiremos criar condições para dar a palavra às
mulheres que são vítimas de assédio sexual e ao mesmo tempo garantir a
presunção de inocência dos acusados? Como é possível distinguir o quadro da
denúncia de uma «cultura de violação» com o quadro individual das
acusações concretas?
A palavra não se «dá» às mulheres. Nunca se deu, são as
mulheres que a tomam para si, como sempre fizeram, em geral, com os direitos
que lhes foram negados. Mesmo se em certos casos se pode falar numa espécie
de feminismo de Estado num país, como Portugal, em que a relativa
fraqueza dos movimentos feministas – dos movimentos sociais, em geral – se
aliou ao centramento da Revolução de 1974 na questão política, no sentido mais
estreito desta expressão, levando a que alguns avanços, na senda da igualdade
de género (como hoje tendemos a dizer), se tenham dado de cima para
baixo. O exemplo mais óbvio será certamente a Revisão do Código Civil, em
1977, aliás em obediência a um comando constitucional de igualdade e não
discriminação, sobretudo nas áreas das leis da família e sucessões.
As questões do abuso sexual e do assédio são resolvidas
por uma igualdade de poder entre homens e mulheres ou estão presas a
comportamentos biológicos e sociais que exigem mais do que uma, ainda assim
revolucionária, democratização do poder?
A «democratização do poder» é, como bem sabe, coisa
complexa. Desde logo a expressão pode soar oximorónica, porque na
democracia total não haveria poder de umas pessoas sobre as outras. Deixando de
lado a discussão de possíveis utopias ou distopias, a verdadeira «igualdade de
poder entre homens e mulheres» pressupõe que essa distinção deixe de fazer
sentido, isto é, que as pessoas deixem de ser identificadas pelo seu sexo - ou
mesmo género – como obviamente, para mim, é o caso da desacreditada raça.
Não é pelo facto de o conceito científico de raça ter sido posto em causa pela
ciência, e como tal abandonado com toda a sua lógica de superioridade e
inferioridade, que floresceu com o colonialismo e o imperialismo e perdura em
tantas sociedades e de tantas formas tão variadas e complexas que é impossível
analisar aqui, que deixou de existir racismo, com a intrínseca racialização de
grupos populacionais, como a ECRI (European Commission against Racism and
Intolerance, do Conselho da Europa) passa a vida a lembrar nos seus Relatórios
e Recomendações.
O problema é transversal a toda a sociedade ou tem pesos
diferentes nos mais cultos e menos cultos, nos mais ricos e menos ricos, nos de
esquerda ou de direita?
É certamente transversal, o que não significa que se manifeste
sempre da mesma forma ou que não haja modos e maneiras mais típicos de meios
sociais mais ou menos diferenciados, exactamente como muitos outros, senão
todos, os fenómenos sociais.
Existem progressos nesta matéria e há razões para
optimismo?
Progressos? Sim. O reconhecimento público e a sua regulação
legal, retirando pelo menos alguma boa parte da legitimidade às indiscutidas ou
quase práticas tradicionais. Se há razões para optimismo? Depende dos dias…
Será melhor dizer: pensa como inteligente, céptico e realista, age e prega como
cheio de esperança e optimismo. É que, como num plano mais geral de direitos e
de democracia já se vem infelizmente tornando óbvio, nada é adquirido, nunca.
Até os famosos «acquis», com que a União Europeia gosta de encher a boca e os
discursos, se podem esfumar de um dia para o outro. Basta olhar para Leste e
mesmo para outras bandas. Mas, como escrevia Manuel Laranjeira (por acaso um
rapaz pessimista que se matou, como se sabe) em «Comigo»:
São estes os versos com que fechei a minha dissertação de
Mestrado em Criminologia, na Universidade de Cambridge, há muitos anos. Era
sobre outro assunto, A Lei Penal na Reforma Agrária em Portugal, mas as dúvidas
sobre optimismo tinham alguma semelhança.
Alternativa? Ir com outro Manuel, o Bandeira, para
Pasárgada. «Lá moro na casa do Rei…».
https://www.abrilabril.pt/nacional/teresa-beleza-ha-decisoes-judiciais-indignas-de-um-pais-democratico
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