quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Realista não, político sim

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Ípsilon

O mais recente livro do poeta José Miguel Silva, "Erros Individuais", parte de uma viagem de férias a Florença para analisar a Igreja e o capital, a arte e a moral. No fim surge tristemente o país. Mais que um poeta realista, é um poeta moral ou do pensamento. Ele prefere o termo "político"

A páginas tantas surge, em "Erros Individuais", o mais recente livro do poeta José Miguel Silva, um poema intitulado "Profissão de Pé" que, três estrofes à frente, acaba assim: "Cancelar de vez a assinatura do mundo".
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Pouco mais seria necessário para demonstrar como é impreciso o rótulo "neo-realista" que tem acompanhado o poeta desde cedo. O humor do título, a desilusão a raiar o romantismo que grassa pelo poema e o verso final, afastam-no de uma ideia de real, que em literatura se revela em enumerações enraizadas na observação.
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Aquele último verso denuncia o grande tema que atravessa a obra de José Miguel Silva: para nos afastarmos do mundo temos de cancelar a assinatura, isto é, a renúncia ao mundo (à estrutura que rege o mundo e portanto nos dita o modo de agir) implica uma renúncia comercial (a assinatura).
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Não é por acaso que esta é a primeira nota que tocamos, visto ser uma questão premente ao próprio poeta que, meras 24 horas após falarmos ao telefone sobre o livro, enviou um mail com algumas adendas às suas declarações: "Mais pertinente do que o carácter realista da minha poesia talvez seja a sua vocação política, a sua propensão para interpelar não apenas o íntimo e pessoal, mas também o social".
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O mail acaba assim: "Isto só para dizer que me dou melhor, apesar de tudo, sob a etiqueta de poeta político do que de poeta realista".
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Se há livro na obra de José Miguel Silva que permite dar por ultrapassado o prazo de validade da etiqueta neo-realista é "Erros Individuais", cuja génese se centra numa viagem (que existiu) a Florença. Os poemas partem de uma espécie de narrador que se passeia entre a alta pintura religiosa e os turistas abonados, ponderando o equilíbrio precário entre a fé e o dinheiro, entre a Igreja e a burguesia.
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Havendo "tipos" realistas - o turista, a casa agrícola, o dinheiro - o mais premente no livro é essa espécie de reflexão monetarista e o sarcasmo ou a ironia triste que une cada verso. Acresce que ao contrário do que tem sido escrito, José Miguel Silva não toma um partido claro entre fé e burguesia: ninguém é poupado mas ninguém é dizimado; e se aqui e ali as preferências políticas, éticas e estéticas do poeta surgem claras, seria abusado traçar um perfil biográfico a partir daqueles versos visto haver um jogo de personificação.
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"Quando comecei a escrever estes poemas" - dizia-nos ao telefone de Serém, a aldeia onde reside, porque ali, segundo afirma, pode viver sem ter de trabalhar insanamente - "o meu objectivo era fazer simplesmente um recordatório da experiência vivida". O processo de recordar, sempre um inimigo da paz, trouxe-lhe à mente "o confronto entre o espírito burguês e o cristão que em Florença é tão flagrante". O tema acabou, por força maior, por se lhe impor como "o verdadeiro tema do livro".
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A vela de ignição do livro foi então a "contradição insanável" entre estas duas visões do mundo [burguesa e cristã], assinalada na própria arte, como realça o poeta: "Vês a Virgem Maria vestida como se pertencesse à alta burguesia, vês os santos vestidos como príncipes. Quando toda a mensagem cristã defende o oposto". A coexistência aparentemente pacífica entre opostos tão pronunciados causou uma espécie de comichão no poeta: "Esse convívio entre o cristão e o burguês só se faz com uma certa hipocrisia. E a hipocrisia e a duplicidade é que me incomodam".
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José Miguel não disfarça que prefere "o espírito da burguesia", porque é "individualista e materialista". Mas nesta sua assumpção não há lugar a absolutismos e há lugar também à admissão de que "o mero materialismo é empobrecedor". Pelo que o que encontrou em Florença foi o que resta de uma dupla mentira, passe a expressão: "De maneiras opostas, tanto o cristianismo como o liberalismo traíram as suas promessas".
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O objecto e o abjecto
É esta tensão (entre o reconhecimento da falência de modos de ver o mundo e da própria incapacidade de condenar por completo quem os escolhe) que move "Erros Individuais", título que, tendo em conta o que está em jogo, não deixa de ser irónico. "Quem ler o livro com atenção percebe que eu tento não situar-me em nenhum extremo. Critico um certo materialismo, grosseiro, com o qual tenho uma certa insatisfação; mas por outro lado há uma certa nostalgia das verdadeiras origens cristãs, que infelizmente não partilho".
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Há ainda um terceiro plano semiótico nos poemas: "A beleza daquela pintura". Perante o espanto estético de algo que pertence a uma ordem moral em que não acredita, o poeta coloca-se uma questão bem antiga: "A beleza tem de estar ao serviço de alguma coisa?"
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Pode parecer uma questão menor e José Miguel Silva é o primeiro a dar o exemplo de Leni Riefenshtal, que os cineastas gabam apesar do carácter hediondo do seu trabalho (e facilmente poderíamos acrescentar Céline e muitos outros à lista). Mas é, na realidade, mais complexo que isto, da mesma forma que afirmar que forma e conteúdo são a mesma coisa é um simplismo atroz.
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"Não acho que a arte tenha de estar ao serviço de nada", começa José Miguel. "O que não sei é se a beleza se justifica por si só - e o mesmo se pode dizer do conhecimento. Ou, dito doutro modo, prefiro a arte que se funda num sentido moral".
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A questão pode ser colocada de outra maneira. Imaginemos que olhamos um objecto. E o objecto encanta-nos. Depois pensamos sobre o objecto e verificamos que o que está na sua fundação é abjecto. O que fazer? "Perante um objecto belo, perante qualquer criação humana, é inevitável perguntamo-nos sobre as suas implicações políticas e morais. É como olhar para um monumento do passado e recordar que foi construído com mão-de-obra escrava, ou então pensar apenas na sua grandiosidade".
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Digamos que esta poesia é uma forma de passar do particular ao geral. O particular seria a posição pessoal de José Miguel Silva em relação a Florença, resumível assim: "Aquela pintura maravilhosa é uma forma de beleza ao serviço de uma mentira, de uma ilusão". O geral poderia ser colocado desta forma: "Tenho sempre esta dúvida: pode a estética prescindir da moral?"
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Aqui se vê que em "Erros Individuais" estão em jogo, de forma subtil, conceitos que ultrapassam o do mero realismo. Mais ainda: está-se longe de qualquer pessoalismo, longe do uso do poema como forma catártica ou biográfica - há uma proximidade quase ao registo ensaístico, que não resvala para este graças ao uso de diversos recursos quase humorísticos (como a ironia).
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Essa ausência de biografismo faz sentido no curso da obra de José Miguel Silva, mas nem sempre foi assim, ou por outra, quase sempre houve espaço para uma escrita mais pessoal.
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No seu anterior livro, "Movimentos no escuro", que não fora o descrédito a que a poesia está votada em Portugal e poderia facilmente ser considerado um livro-de-cabeceira, os poemas partiam dos filmes preferidos do poeta. Num momento inusitado José Miguel usa o FC Porto 2 - Bayern 1 da final da Taça dos Campeões Europeus de 1987 (o que já de si sintomático: o real visto como ficção, de tão implausível que é) e traça o destino de todos aqueles que, como o Porto de outrora, são pequenos: um breve fogacho de alegria e depois "felizes daqueles que guardaram a cassete". É, numa altura em que toda a santa blogosfera e todo o cronista aborrecido e burguês brada sobre uma canção tonta dos Deolinda, um dos mais importantes poemas de toda uma geração.
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"Aí há um efeito de sinceridade", diz Silva, saudavelmente portista. "Essa sinceridade", esclarece, "também acontece noutros poemas, só que nem sempre quero escrever rente às emoções. E mesmo os poemas aparentemente mais emocionais são muito trabalhados, porque as emoções são apenas o ponto de partida. No meu caso, há duas emoções básicas: desânimo e irritação"
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"Movimentos no Escuro" pode ser considerado o livro em que definitivamente José Miguel abandonou qualquer veleidade neo-realista - ele que hoje pergunta "Já vamos em quantos neos?". Se o soberbo "Ulisses Já Não Mora Aqui" era mais atreito à picuinhice mesquinha dos dias, "Movimentos no Escuro" partia de filmes clássicos para os "reescrever". A arte servia de desculpa para chegar ao real e para pensar o homem, sendo que em certos momentos, como na releitura de "Ladrão de Bicicletas", de De Sica, se raiava a pura comoção: José Miguel escrevia a história do pai, que ia de bicicleta para o trabalho numa fábrica nos arredores de Gaia - onde o poeta nasceu.
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Mas ainda assim o poeta adverte que "é muito perigoso ler os poemas à luz da biografia". Mesmo no caso daqueles em que está a falar de si e dos seus José Miguel Silva mistura "muito a biografia com a ficção".
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Esse movimento dentro da obra é agora ainda mais notório com o último livro. O próprio poeta reconhece que "ultimamente tem [-lhe] apetecido escrever mais baseado na reflexão", acrescentando que essa reflexão é "não-filosófica" visto não augurar a ser filósofo. "Não procuro uma descarga emocional", conclui.
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Talvez por isso os seus livros são cada vez menos colectâneas de poemas soltos. Aliás, admite que lhe é "difícil escrever um poema isolado". "Há quase sempre um fio condutor em mente", o que advirá não só da sua postura face ao mundo como também das leituras: "Como leitor alimento-me de todo o tipo de géneros - aliás, posso dizer que a poesia é se calhar o género que menos leio, para aí um em cada dez livros serão de poesia. Leio muita história, muita sociologia, muito romance, muitos ensaios e diários".
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Num aparte menos amargo que sincero acrescenta ter por vezes "a impressão de que alguns poetas portugueses só lêem poesia", considerando a possibilidade de "isso ser empobrecedor". Ainda assim é o primeiro a menorizar a sua vertente ensaística, usando uma espécie de auto-depreciação para se avalaiar: "Quando não se tem uma costela filosófica, o remoer e o reflectir são difíceis de distinguir", diz, com humor, uma das marcas distintivas da sua poesia.
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No entanto, na última parte de "Erros Individuais", a destinada ao regresso a Portugal, esse humor parece desaparecer, restando apenas uma espécie de retrato nulo, mesquinho e torpe da pátria, aliás próximo do que já era feito em "Ulisses Já Não Mora Aqui" que também mencionava a realidade portuguesa.
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Para um poeta que se afirma antes de mais político - no sentido menos estrito do termo - faz sentido aproveitar o fim das férias e consequente retorno ao país para olhá-lo - e retornar a, mais que um realismo, um raio-x.
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"É um país um pouco aflitivo. Havia mais razões para ser optimista há dez anos do que hoje". Mas que não se tome esse raio-x como ontologia: para o poeta "a visão de Portugal que estes poemas transmitem reflecte uma vivência presente", não uma essência da nação. Com um senão: "Infelizmente, este desencanto não sou só eu que o sinto".
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Contra todas as evidências em contrário, José Miguel Silva deixa claro que "as férias foram óptimas"
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